Por Rafa Carvalho
São incríveis as “coincidências” da vida. Incrível é uma palavra que não gosto. Precisamos urgentemente acreditar nas coisas críveis. E parar de acreditar no que, simplesmente, não é. Fiz este texto no dia seguinte ao assassinato de Marielle Franco. Na época não publiquei. E no texto original, que se segue, não a chamei pelo nome. Aprendi com minhas mais velhas e suas crenças, hoje também minhas, que não se chama uma pessoa morta pelo nome. Quando ela está recém atravessada. Pro lado de lá. Para que a alma não se distraia de seus caminhos de então. E siga. Aonde quer que seja. Hoje, sete meses após seu feminicídio, digo. Marielle. Seu nome. Das “coincidências” da vida, nesse texto, eu falo que qualquer um de nós, no fundo, pode morrer assim. E me reencontro com esse texto aqui, pouco depois de ter uma arma apontada pra minha cabeça. Disparada. Quase consumando o fato. Outra “coincidência” é esse texto parecer ainda mais atual agora, do que foi em março. Por todo nosso contexto político. Publico esse texto sem ódio. Como quem reza por um dia, em que as “coincidências” da vida, terão muito mais a ver com a própria vida, que com a morte. Enquanto isso, viver significa não estar só. Pelo amor. Sou Rafa. Fiquei vivo. E esse é meu nome.
Aconteceu numa noite de Sarau da Dalva. Outra metrópole. Maior. Mais badalada. Tão abalada quanto. Tudo tão amedrontador. São tempos difíceis, não são, vó? Sempre foram.
As mesmas estrelas no céu. Tanto lá, como aqui. O mesmo céu sobre o Brasil e o Hemisfério Sul. Dalva, certamente entre elas. Vênus. Feminina. Amor. Aqui, numa encruzilhada, mesmo bar em que se abriga a roda de samba no Maneco, mulheres nutriam a noite. Quadros de Olga, voz de Lucina, tambores. Crochês de Neydoca, versos de Sandra, Kátia, Flávia, Sabrina. E de tantas mais. Aline produzia, Sil atendendo. Hyara e Maria aprontavam jilós e mais jilós. Caldos tantos. Tudo. E a senhora, vó. A senhora lá em cima. A senhora lá embaixo. A senhora junto. Sem corpo. Poesia sem voz. Um silêncio.
Enquanto no Rio de Janeiro. No Rio de Lucina e Patricia, que estavam aqui. Lá. Na Lapa. Perto de onde foi o Zicartola, com Dona Zica e Angenor fazendo samba e outros alimentos mais, nos duros tempos de Ditadura. Lá, na Lapa de hoje – sem Ditadura vigente, em teórico estrito senso – ela saía da Casa das Pretas. Roda de Conversa. “Jovens Negras Movendo as Estruturas”. Nós aqui comovendo, vó. Constelando. Ela lá, com mais jovens negras. Movendo as estruturas. A Lucina terminava de cantar às nove e meia. Terminava com voz e tambor. Eu a acompanhando. Honrado. E o verso dizia: hoje catei na areia as conchinhas do Mar… Depois deitei na areia e o Mar serenou…
A Lucina não cantou “Canto de Árvore”, vó. Porque a canção pede um silêncio, um respeito que as pessoas ainda não têm, nesse nosso processo daqui. Essa serenidade. E logo depois que Lucina cantou a última – já havia ventado forte – o céu despencou na chuva grossa. Consistentemente. Batendo no zinco de todo o nosso barracão. Nove e meia, vó. A Lucina parava de cantar aqui. E lá, um outro carro emparelhava. Ao dela, vó. E disparava. Vó. Só nela, três, quatro tiros. Fora os outros. Balas da “Justiça”, vó. Balas dos “mocinhos”. Balas do “Poder” que protege a pátria amada idolatrada, vó. Salve, salve. Dalva, minha vó, os tiros pegaram na cabeça. A sua cabeça, vó. A senhora lembra? A sua cabeça desmiolada, como ficou a dela. A senhora que disseram louca. A senhora que levaram, internaram, amarraram. A senhora que deram jeito de matar em vida, vó. Louca. Alegre e farrista demais para uma mulher. Atrevida demais para uma mulher. Vidente demais para uma mulher. Revolucionária. E viva demais, para uma mulher.
Vó, a senhora nunca viu uma favela. No sertão isso tem outro jeito de ser. Né? Mas é, também. Agora, a senhora não acha que os morros, à noite, com as luzinhas todas aleatórias – ou não. Com os contornos dos morros desaparecendo no escuro. A senhora não vê que as favelas se parecem à noite com as constelações? Ela vinha de uma dessas, vó. Constelação de Maré. Olha que nome bonito. Baía de Guanabara, vó. Mar, maresia.
Mataram ela, vó. Como mataram o Toninho daqui. A Patrícia de lá. Tantas e tantos mais e além. Nós sabemos, mas não podemos dizer, vó. Que por aqui a “Justiça” se faz em muitas instâncias. Todo mundo é inocente até que se prove o contrário. A menos que se roube um leite para os filhos no mercado. Aí a bagatela é crime na certa. Na cela. Mas a “Justiça” cega é generosa e olha pelos seus. Protege os seus, vó. Os bilhões não valem um litro de leite tipo C. Aqui, vó, todo mundo é culpado. Até que se mate o inocente. E que se elimine as provas. O incômodo. Ameaças. De quê? De uma Justiça sem aspas, talvez.
A senhora louca como foi, vó, não entenderia. Por aqui, tudo anda muito dual. E ironicamente, vó, tudo é muito isso, de “selfie”. Gente estrela indivíduo que não constela. O “hashtag”, vó, “jogo da velha”, vale mais que a dignidade. Todo mundo erra. Só não, quem fala. Quem diz primeiro. Ou escreve. Quem julga nunca errou, vó. Nem precisa de juiz.
As pessoas falam dela agora, vó. Muitas, sabendo ou não, só por si. Por si e só. Curtidas, joínhas, palminhas de aplausos, notas. Estrelinhas, status, histórias. “Compartilhamentos”. E eu, vó, digo isso no limite. Eu homem. Eu artista. Eu jovem que apoio parte da carreira nas redes sociais. Eu que já fui injusto com muitas mulheres negras. Muitas mulheres. Eu que já fui muito injusto. E que, provavelmente, sigo sendo. Eu, humano. Vó, como é que se faz pra se tentar o melhor nessa vida, pra nós e pro mundo, sem ter que ser perfeito já de antes?
Sem que entre a perfeição e o absoluto imprestável não haja nada? Como, imperfeito e afim, haver um caminhar possível? Se a diversidade é tudo que há, como é que se faz pra ser diverso e estar junto? Tudo racha, vó. Tudo rompe. Só não a casca desse mundo velho, para parir o novo. Só não a superestrutura que protege os maiores responsáveis e articuladores disso tudo. Só não ainda tudo isso. #SomosTodos, vó. É tanta gente só, dizendo o mesmo. Só dizendo. E pouca gente a fim de mergulhar no fundo Mar de si, vozinha. Vai ver. Daí não dá pra mergulhar mais fundo em nada. A não ser no inútil, vó. É não mergulhar no fundo Mar do outro, da outra. Vó. É não mergulhar no fundo Mar de nós. Do mundo. Aí é tudo raso, vó. É dissidir com todos, para não ter que decidir consigo. E assim, como dizer #SomosTodos, vó?
Eu não tinha idade para votar no Toninho, vó. Mas votaria. Fiz campanha na escola, aos pais e vizinhos, vó. A ele que, escolhido, não pôde exercer. E voltei do Rio correndo uma vez, vó, só pra poder votar numa presidenta que, escolhida, não pôde exercer. E se eu votasse lá, minha vó, no Rio, teria provavelmente votado nela. Que escolhida, também não exerceu.
Vó, como é que o Brasil lhe cuidava naquele manicômio? Como é que ele lhe representava ali? Naqueles eletrochoques, vozinha? Como é que essa “Justiça” nos cuida, me diz? Esse Brasil assim, é justo? Vó. Como é que “Ordem e Progresso”? Como é que é isto, iluminado ao Sol do novo mundo, deitado eternamente em berço esplêndido? Mãe? Gentil? Como?
Como é democracia, vó? Representativa? Legal? Como é que Polícia Militar serve enquanto instituição e alto escalão? Como é que a Federal? E o exército? E as Forças Armadas? E as balas na cabeça dela? Nas chacinas? As armas no crime organizado? As táticas e códigos do crime organizado? Vó, eu queria acreditar que dos Poderes do Brasil, ao menos o da Natureza e o do Povo tenham jeito ou solução. Ainda.
…(continua na semana que vem)