Por Rafa Carvalho
“Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará!” (João, 8:32)
O estado de minha literatura não é laico. Portanto, aqui vai. João, o filho de Zebedeu era o amado de Jesus. Conhecido assim até os dias de hoje. É o cara que na Última Ceia do Da Vinci, acusam ser Maria Madalena. Talvez fosse mesmo o mais feminino dos apóstolos. Nota: quando digo Feminino, expresso Yin. Algo energético bem maior, que um entendimento raso da sexualidade ou ideologia de gênero. Talvez, um conceito oriental demais pra nós. É estranho. Pois essa cultura judaico-cristã ocidental, nasce mesmo no Oriente. Eu sei, olhando assim, com essa perspectiva, o termo parece até um acidente. Ainda mais considerando os paradeiros de muitos dos apóstolos, após a crucificação de Cristo. E dele próprio, antes dela.
Se bem que, quem saberá com certeza, desses destinos? Não é tão simples. E, sem dúvidas, uma questão de fé. Mas não uma fé em Deus. É necessário uma fé no homem. Nas bocas que dizem. Que não foram caladas, nem se calaram. E quiseram, por algum motivo e com algum contexto, contar a história. Se nós não estivemos lá, vendo, como quis Tomé. Só nos resta crer. Nas histórias que alguém nos conta.
Vou listando adiante, uma ou outra curiosidade. Muitos cristãos juram total lealdade e obediência à Bíblia. Livro que, todavia, quase nenhum deles leu, até hoje, inteiramente. Curioso, né? Amar tanto um livro e não lê-lo. É como amar sua esposa e não ser amável com ela. Não tocá-la. Não percebê-la. Soa no mínimo incoerente. Chamamos a Bíblia de espada. E aí, é como ter uma espada pendurada em plenos tempos de guerra. À parede, de enfeite. Enfeitando a casa. Ou como lutar só com seu cabo. Por desconhecer-lhe o fio. A lâmina.
Seguindo: confiar na Bíblia inteiramente, é confiar inteiramente numa série de tradutores, por um imenso percurso atravessando uma infinitude de idiomas, pulando língua em língua, revisão a revisão, por mil e setecentos anos. Desde o Primeiro Concílio de Nicéia. Haja fé nas pessoas! Isso de certa forma me anima. Demonstra que o povo de Deus é capaz de confiar em seus semelhantes, mesmo que não sejam parentes, amigos. Mesmo que não se saiba se partilhavam da mesma fé, ou se fossem só poliglotas trabalhando. Mesmo sem saber se entre eles havia algum intelectual ateu de sacanagem, ou um que não conhecesse tão bem o hebreu, quanto jurou. Tá certo que lá em Mateus, 5:18 diz que antes do céu e a terra deixarem de existir, nem uma só letra ou vírgula serão tiradas da Lei, sem que tudo aconteça. Mas pensem: isso não garante a integridade do texto. Garante sim, o cumprimento da Lei. Uma lei divina, que está para além das besteiras humanas. E que antes de um fim, nessa Terra, se há de aplicar. Independentemente do quanto tentemos manipular as letrinhas miúdas, dos nossos contratos e acordos com a Vida.
Agora, como poeta, não há como não gostar da Bíblia. Aliás, o poeta é. Ele mesmo, quase, um profeta. Com menos letras. Menos letrado, talvez. Mas, tô com o Leminski em achar que o velho testamento é uma baita antologia de poemas. Mais uma coisa curiosa aqui, é que muitos textos do velho testamento foram escritos em hebraico ou aramaico, línguas semíticas. Provavelmente algumas passagens do novo, também – o próprio livro atribuído a Mateus, por exemplo, citado ali em cima, é um de que não se sabe, ao certo, a origem linguística. O hebraico, como lembra o poeta em seu “Jesus a.C.”, é um idioma flexional. Até hoje gera discussões entre os pesquisadores da tradução, quanto a trazer ou não em seus verbos, as dimensões precisas do tempo. O aramaico bíblico, por sua vez, é composto apenas por dois tempos verbais: o perfeito e o imperfeito. Logo: como, com dois tempos verbais, se distingue passado, presente; e futuro?
Desse modo, talvez, o que chamemos profecia nem seja profecia. Seja mais um relato presente da época. Uma memória do que já aconteceu. Talvez tudo sejam constatações de nossos padrões cíclicos. Humanos, desumanos. E sendo oriental demais, mais uma vez: que diferença isso faz?
Mas, vamos em frente. O livro de João talvez tenha sido escrito por João. Talvez tenha sido escrito em grego – ou koiné, sua forma popular na época. E talvez tenha sido escrito em Éfeso, na própria Grécia. Digo muitos “talvezes”, porque, afinal, é isso. Saber, nós não sabemos. Nós não estivemos lá, pra afirmar de outro jeito. E se estivemos, vamos ter de assumir a hipótese da reencarnação. O que seria outro abuso de nossa “orientação”. Assim, só nos resta crer. Ou: não crer. Eis a questão.
Contudo, sendo escrito em koiné, não corremos o risco que correríamos, caso o livro fosse traduzido de hebraico ou aramaico. Embora em grego haja o tal do “aoristo”. Um tempo verbal indefinido, que pode sim gerar confusão. É, essa coisa de comunicação pós Torre de Babel é complicada. Mas, indo assim mesmo adiante, o que será que João quis dizer com isso: “conhecereis a verdade e a verdade nos libertará!”?
Hoje, muitos de nós, idolatramos Jesus. Sim, eu me incluo nisso. À época, muitos ali também o faziam. Os poderosos, os ricos, os políticos, os militares, em grande maioria: não. Esses repudiavam o Cristo. E perseguiam. Ao Cristo e aos cristãos. Pausa. A idéia, de traição, é tão antiga quanto a Bíblia. De Gêneses ao Apocalipse. Ela sempre existiu. Subversão. Sempre existiu. Gente-cobra. Lobo em pele de cordeiro. Tudo isso, sempre existiu.
Como não falar dos fariseus? Também eles sempre existiram. E hoje ainda existem como nunca. Aos montes. Nada mudou. Jesus ainda morre e ressuscita todo dia. Crucificações acontecem todo santo dia. Com outras formas de morte e tortura, na prática. Como foi com os apóstolos, aliás. Quase todos torturados e mortos. Esfolados. Marcos foi arrastado até seu corpo despedaçar. Filipe e o Tiago de Alfeu foram apedrejados à morte. Simão foi crucificado mesmo, como Cristo. André foi crucificado em “X”. Pedro, crucificado de cabeça para baixo. Tomé, Barnabé, foram queimados. Lucas, enforcado. Mateus, Matias e o Tiago irmão do João, tiveram suas cabeças arrancadas.
Tudo isso. Sempre existiu. Escravos, piratas, nativos, bruxas. Qualquer tipo de gente considerada alheia ou desertora. Demonstração de poder. Roma fez isso. O Império Britânico fez isso. Nossos colonizadores portugueses, fizeram isso. Hitler fez isso. Trump faz isso. E também aqui, antes de 1500, uma tribo fazia com a outra. Quem pode mais, demonstra. E assim, no mundo que gira, quem já foi crucificado, um dia crucifica. Quem já foi apedrejado, um dia apedreja. Na primeira chance que tem, o torturado tortura. Quem foi queimado, bota fogo. Olho por olho, dente por dente. E todo mundo fica cego. É assim que, mil anos depois dessas mortes descritas, a Igreja fez igual, ou muito pior, com a Inquisição. É assim que, hoje se faz, o que ainda se faz. Ainda. E lá se foram dois mil anos.
É uma questão do humano. Está em todos nós, como a sombra que todo corpo projeta quando exposto à luz. Numa fazenda escravagista, negros se rebelam. Matam pela fuga o senhor, a senhora e sua filha de sete anos. Entre todos fazendeiros da região, uma enorme comoção se instaura. Uma pobre criança de sete anos. Meu Deus. Então acusam seus escravos de monstros, justificando a matança. O sangue que se irá derramar. E as pretinhas de sete anos que são violentadas, estupradas, afastadas de suas famílias, forçadas ao trabalho escravo, açoitadas e submetidas a condições desumanas, diariamente, não causam neles comoção alguma. É por isso. Que você vê um judeu, votando hoje, em um fascista.
…
(Continua)