Por Rafa Carvalho
“Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará!” (João, 8:32)
Curiosamente, dos doze discípulos, só o João morreu de velhice. Não é que não tenham tentado impedi-lo. Convenhamos. Dizem que chegou mesmo a ser lançado ao fogo. Ou seja: tentaram sim. Atentaram contra a sua vida apostólica. Mas escapou. Sobreviveu a isso, de algum modo. Ao exílio depois, em Pátmos. Escreveu por lá o Apocalipse. E certamente viveu um apocalipse seu. Assim como cada um de nós, se já não carregou, ainda há de carregar a própria cruz. Contudo, o que ficou da história foi isso. Só o João sobrevivente. Esse que acusam ser Maria Madalena, no quadro. O amado de Jesus. E, talvez, o mais feminino entre os apóstolos.
Preciso lembrar desse Oriente: quando digo Feminino, quero dizer Yin. Mas, indo adiante: será que foi a verdade? Que João conheceu, e que o libertou? Será que foi essa verdade, do versículo, que provocou a exceção? Bom, vamos voltar para alguns detalhes bíblicos. O olhar para Bíblia pode ser tão seletivo quanto o olhar para o mundo, à vida. Tão sínico quanto justificar o termo “socialista” na bandeira do partido nazi alemão. Tão burro quanto criticar o Comunismo ou qualquer outra coisa, sem saber o que essa coisa é. Tão hipócrita, quanto abominar o vermelho: única cor que nos une de fato. Todas: somos vermelhas por dentro. No sangue, como o sangue derramado do Cordeiro.
Conta a Bíblia, sagrada, que Jesus entrou no templo em Jerusalém, administrado pelos fariseus, e que saiu virando mesa, cadeira. Tudo. Que expulsou dali as pessoas que agiam como vendedores e cambistas da Casa do Senhor, uma vez que essas estavam desvirtuando o seu sentido, tornando-a, conforme o próprio texto: um covil de ladrões.
Agora: sim, nosso estado é laico. Ou deveria. As pessoas deveriam ser respeitadas, sem dúvidas. Cada qual, no seu livre arbítrio – que, aliás, é um conceito bíblico. E também, numa perspectiva cristã, o único juiz possível seria Deus. Logo, não deveríamos sair por aí julgando a tudo e a todas com tanta autoridade, nem fazer nada além de seguir o exemplo deixado por Cristo, em tudo que nos ensinou, falando: e fazendo.
Jesus tinha um fundamento principal, que, pra quem tiver olhos e coragem de ver, é óbvio: combater a hipocrisia, em primeiro lugar. Com isso, Amar. E, por Amor: curar, trabalhar, partilhar. Evoluir. E conviver. Viver com… em co-moções humanas, pelos nossos direitos de graça, nossa responsabilidade conjunta, e tudo, o que nos pareça impossível. Daí vem um irmão e pergunta: como combater a hipocrisia pode vir antes do Amor? E a resposta é simples – e não é hipócrita: com hipocrisia, não há Amor, meu irmão.
E nisso. Nesse Amor, e em tudo o que dele viria. No respeito e todas suas demais derivações. Vivem as bases pra uma sociedade mais justa. A corrupção nasce dentro da gente. E é dentro de cada qual, que ela começa a ser extinta. O contrário não funciona. Nunca funcionará. Tomé disse isso, coitado. Mas, por ter apresentado indícios de algum materialismo dialético em sua fé cristã, foi queimado uma segunda vez, após a sua morte, pela Igreja.
A Igreja. Que como Instituição, sempre deu um jeito de controlar o ser humano, quando o que Jesus veio fazer aqui, encarnado, foi justamente o contrário: libertar o povo. Quando o mesmo João orientou que confessássemos nossas falhas para sermos perdoados, por exemplo, não mencionou nenhuma necessidade de intermediários. Se Cristo voltou aos céus, mas deixou em seu lugar o Espírito Santo como nosso intercessor, não haveria necessidade de um clérigo mediando nossas confissões. Mas era interessante para a Instituição, entendam. Controle, censura, tráfico de informação. Influência.
A instituição Igreja nunca trabalhou pelo poder de Deus. Trabalhou sempre pelo poder do homem. E só de alguns homens, em detrimento da dominação de outros tantos. Homens, mulheres. Crianças. Se dizemos “Deus acima de todos”, estamos dizendo do Amor acima. Regendo tudo. Tido que a Bíblia garante: Deus é Amor. Mas não é o Amor, que fundamenta o projeto de mundo dos caras, que normalmente usam lemas como esse, para manipular seus rebanhos. É poder. Ganância. Presunção. Esses caras, não põem nem o próprio Deus acima deles próprios, ou de seus particulares interesses.
Pra Jesus, a Igreja era o povo reunido. Não a Instituição. Instituir, normalizar, não foi idéia Sua. E aí, num princípio que seja verdadeiramente cristão, onde estaria a Igreja hoje? O que é á Igreja? A verdadeira Igreja? Onde está o povo reunido? Como o estão conduzindo? E o que fazem com ele?
Jesus era um defensor dos direitos humanos. Não dos direitos protocolados numa organização qualquer, não os direitos burocratizados num papel, forçados a existirem por isso. Mas sim, os direitos evidentes. Nítidos. Implícitos na Vida. Não há registros de Cristo ficando pistola com pobre, moribundo, indigente. De Cristo priorizando dinheiro ou lucro. De Cristo desrespeitando o ambiente, a Natureza, os outros seres vivos do planeta. Um ou outro registro do homem revoltado que há, são sempre contra instituições e pessoas poderosas, doutoras e prósperas através de crimes, senhoras e sábias, na aparência, por hipocrisia.
Lembrando de Cristo no templo. Se ele estivesse encarnado hoje. E entrasse numa fazenda, um latifúndio. Seria pra tirar o povo, as famílias sem chão, tentando ocupar um pedaço de Terra pra plantar o próprio alimento; ou pra tirar o latifundiário descendente de grileiro, posseiro, pistoleiro, e tudo isso ele mesmo, corrompido, forçando a terra, desrespeitando os ciclos, botando seu rendimento acima de tudo? O que Jesus viraria? Um bote de refugiados no Mediterrâneo, ou um navio militar de primeiro mundo que, criminosamente, sai de seu território pra jogar lixo radioativo às escondidas, nas águas profundas do mar da Somália?
Tomé foi escolhido por Jesus. Aliás, Judas Iscariotes também. Algum cristão moderado falaria que Jesus errou? Ao escolher um traidor? Enfim. A Bíblia enfatiza Tomé em uma passagem, na qual o apóstolo parece ter cometido um erro de fé. Pedro, a pedra, comete inúmeros erros na Bíblia. Mas sai dali ileso. Enquanto que, Tomé, vira quase um vilão.
Por quê? Talvez o arquétipo, ou o esteriótipo de Pedro, fosse mais conveniente de se promover àquela época e ainda hoje. Por esses que contam a história, ou permitem que ele seja contada dessa forma e não de outra. Tomé talvez tenha tido uma das jornadas mais interessantes, após a morte de Cristo. Ele talvez tenha tratado de assuntos importantes. Coisas revolucionárias. Que tenham ficado de fora da Bíblia. Talvez Tomé tenha falado de ego, coisas que depois Freud falaria. Talvez tenha falado de individuação, coisas que depois seriam abordadas por Jung. Talvez ele tenha falado de iluminação, como os budistas já falavam. Talvez ele tenha falado de autonomia, palavra que sempre aterrorizou nossos sistemas colonialistas de domínio e exploração do outro. Talvez Tomé tenha insinuado que podemos encontrar todas as respostas dentro de nós mesmos. Que o caminho seja olhar pra isso, pra dentro. E destruir as próprias corrupções. Seguir livre assim, de si. Sem negar-se. Pronto para o Amor. Não só passivamente. Como alguém que espera seu Cristo passar, trazendo a benção. Mas ativamente. Empoderado, protagonista. Cada qual de nós. Juntos. Como ensinados pelo Mestre que podemos, a exemplo seu, operar nossos próprios milagres. Em prol, uns dos outros. Como Jesus, que fez pelo povo. Que não só andou sobre as águas, como demonstrou, a Pedro que ele também poderia, se quisesse. Pensando assim, Tomé, talvez, não fosse mais materialista dialético que o próprio Cristo. Afinal, por que estaríamos num mundo material e num contexto de dualidade, se não fosse preciso lidar com tudo isso?
Há uma parcialidade. Essa que impede um fazendeiro de se sensibilizar com a filhinha de um preto, que tem a mesma idade e humanidade que a sua própria. Uma parcialidade que Jesus não tinha. E que um governo de nação não deveria ter. Um Fascismo, que não pode salvar ninguém. Nem quem mata, nem quem será morto. Funciona assim: a mulher que rouba um litro de leite pro filho faminto vai presa, por crime de bagatela. Passa anos ali, no cárcere, à deriva de nossa falha justiça, que venda os olhos apenas arbitrariamente. Um homem desesperado faz um empréstimo no banco, pra pagar um tratamento da filha doente, que com uma síndrome rara vai morrendo à espera do SUS, às liberações dos medicamentos de altíssimo custo; e assim se condena a uma vida inteira de inferno adiante, pelos juros e aumentos sem perdão de sua dívida. Um político, completamente ciente de seu dever, sua responsabilidade social numa democracia representativa que o elegeu, perante juramentos e uma série de outras firulas, ante a indicadores e demonstrativos, rouba, trama, articula, organiza o crime, conforma quadrilha, se consuma um corrupto do pior caráter. Ele mesmo vota seu aumento de salários, ele mesmo vota por seus benefícios. Não bastando, ele se envolve nessas falcatruas todas. E, ainda não contente, ele mesmo lança um projeto de lei, pra ele votar, onde o político condenado passa a poder se arrepender e pedir perdão publicamente – como se tantos dentre esses tivessem qualquer honra, ou compromisso com a própria palavra – e sair ileso. Sem cadeia, reelegível, com os benefícios de seus roubos já muito bem lavados, distribuídos em outros nomes e paraísos fiscais estrangeiros, irrecuperáveis. Prontos pra próxima, pra depois se arrependerem e pedirem perdão. De novo. Enquanto tudo isso acontece, o homem do remédio da filha não dorme mais. A mãe da bagatela, não vê seu filho.
Não. O perdão de que falou João é um perdão de Deus. Não eximindo a ninguém de suas responsabilidades sociais, com suas irmãs, seus irmãos. E é um arrependimento real, não da boca pra fora. De coração. Um coração que vai ser coerente com o sentimento, em suas ações futuras. Não é manipulação de massa. Condução de ovelhinha boba que vai, com as outras. Não é à toa que Tomé e Tomé. Que Pedro é Pedro. Pau é pau, pedra é pedra. Mamata é mamata. Torre é torre. Bispo é bispo. E peão: é peão.
Mas não vamos falar de Tomé, já que ele seria facilmente rejeitado por um dito cristão. Vamos falar de Jesus. Pra ver se alguém o rejeita. Jesus foi contra o apedrejamento de Maria Madalena. Entrou na frente e disse: aquele que nunca errou, que atire a primeira pedra. Ele ali foi contra a violência. Foi contra o feminicídio. Foi contra o julgamento e contra a hipocrisia – olha ela aí! Jesus também foi sábia e positivamente irônico. Contra as medidas precipitadas, no calor do momento, dos hormônios explodidos e da flor da pele. Foi a favor do perdão, da redenção. E do Amor. Agora me digam: onde é que vemos isso hoje? Em qual plano de governo? Em qual líder ou representante do povo?
Uns discípulos tentaram impedir algumas crianças de chegarem até o Mestre e ele os repreendeu. Disse que era pra deixarem vir, sempre, as criancinhas, porque delas é todo o reino dos céus. Cristo, segundo a Bíblia, rei dos reis, senhor dos senhores, príncipe até dos mais altos céus, foi quem disse. Que o reino é delas. Das crianças. As mesmas crianças que hoje ficam enjauladas numa super-nação cristã, com um hino nacional lindo, cristão. E mais um monte de coisa dita cristã, que não serve pra nada, além de aparência. Essa aparência hipócrita, que o Cristo tanto abominava. E que, se ressurreto, ele fatalmente abomina, ainda.
Entende? Os fariseus sempre existiram. E seguem aqui. Nos templos das nossas religiosidades. Nos templos das nossas democracias. Nos templos que serviriam para a nossa segurança. Saúde, formação e desenvolvimento. O Estado é laico, deveria ser. Mas a vida é sagrada. Tudo que se destina a cuidar da Pólis, nossa vida em sociedade, nossa política, deve ser sagrado. No entanto tudo hoje é corrompido. O que, nesse nosso tempo, não virou um covil de ladrões? Que instituições resistiram? Quais poderes?
O nome de Deus continua em vão. A confiança americana em Deus, está nas notas de dólar. O louvor brasileiro, a Deus, está nas notas de real. Nada me convence de que Jesus não amaria os gays. De que Jesus não amaria as mulheres, as grávidas, a esquerda, os professores, a classe operária, os aposentados. Não posso imaginar Jesus espancando um viado. Quando nos foi dito pra ensinar as crianças nos caminhos em que elas devem andar, esse caminho sempre foi o Amor. Ou não é isso, que Deus é? Jesus não estaria preocupado com kit qualquer coisa. Estaria sim se ocupando da dignidade, e da coerência, que cada qual de nós se deve. Nos foi dito pra sermos, o exemplo pra essas crianças. Não para as impedirmos, de conhecer qualquer coisa. Nem a terem seus livres arbítrios violentados. Nós nos esquecemos. Da quantidade de crianças mortas, que achavam os esconderijos das armas de seus pais em casa, e se matavam. Brincando de ser como seus pais. Imitando o exemplo, e os gestos, de seus pais. Eu ainda creio, que a única coisa que virava Jesus no Jiraya, era a hipocrisia.
Falar que ama e não amar: é hipocrisia. Por exemplo. E o que sobra além da hipocrisia é a vida. É o que é. O que dá. É como nós, humanos, vamos galgando. Pouco a pouco, dia a dia. Como Maria Madalena. Como todo mundo que já errou. Como Pedro, que foi pedra, que é tido como o primeiro papa – embora curiosamente não tenha sido celibatário. Que fez um monte de merda. E nem por isso, foi rejeitado por Jesus. Nem Tomé. E nem o próprio Judas Iscariotes, que só se rejeitou a si mesmo. O que sobra sem a hipocrisia, é uma experiência terrena pura. Com toda sua impureza. Pronta pra ser, o que precisar ser. Sem meias verdades. Com toda dor e delícia, desse mundo dual, que é a Terra.
…
(Continua)