Por Rafa Carvalho
Peço contato.
Querida, como está tudo desse lado? Parabéns, a propósito! Noventa anos não é pouca coisa. Nem o é esta saudade utópica, que sinto. Meu insensato arrependimento de não ter chegado antes. Eu seria seu debutante da física quântica, novelas. Toparia os vinhos mais repentinos dentre todos, os pelos dos cachorros. O cheiro neles, da chuva. O cio das idéias. Ai, como eu lhe queria ruiva, rugas e as falanges ativas. Quando cheguei ainda se farejava seus rastros. À Casa do Sol. A casa de uma forma feminina do Sol. O portão que não mais existe. A paranoia dos condomínios que vai engolindo este seu Xangrilá.
Não gosto de escrevê-lo com Sh, dois l’s, cê bem sabe. Acho rude. Aliás, não há graça nisso… de eu lhe escrever bem daqui? Quem poderia imaginar que seríamos vizinhos, no fim? Ouço seus cães uivarem à noite. Mas agora ouço este baterista que não cessa. Pelo menos ele não está no início, tem ritmo. Talvez até prefira seu pedal duplo, do metal, que as trilhas das festas nas chácaras alugadas aos domingos. Tenho pena dos músicos contratados. Às vezes, sinto raiva de quem inventou o videokê. Mas é isso, não é? O que somos…
Pra ser sincero o baterista está quase sumindo ao fundo dos fagotes de Boismortier. A substância desse som me lembra alguns dos seus escritos. Você, cara, teve a sorte da riqueza. E sabe que eu implico com isso. Não seria um mérito, seria? Ao mesmo tempo, você merecia a alcunha de uma bon vivant (qual o feminino para o termo?). Não era a suposta boa vida desses acumuladores, amargosos nos seus SUV’s brancos, pretos ou prata. Suas casas com decorações caríssimas e feias. Suas naturezas mortas. Com muros dentro dos muros, portarias aquém das portarias. Cães de guarda maltratados e famintos no quintal. Enquanto spitz e shih-tzus reluzem swarovski na sala de jantar. As coisas vão um pouco sem graça, vazias, lotadas. Um tanto da vista já virou cimento. O mais perto de vizinhança a que se chega é por um grupo no Whatsapp onde se avisa que a polícia está fazendo blitz no seu posto antes da entrada. A água do poço tem tido o gosto branco do cloro. Nosso galo resolve cantar às duas na madrugada… e tenho receio do que podem fazer os colecionadores de armas por todos os lados.
Eu sei, você fez o que devia. Pra viver tranquila, inquieta só mesmo dos mistérios. Sem aquilo de meu Deus, como pagar a conta este mês? E a despesa? Sem a necessidade de tomar Bavária. Góes. Podendo comprar os livros da Cia. Das Letras. Edições grossas, de colecionador, com capa dura, boxes. Assinar os jornais, as revistas, se inscrever nas coisas da alta cultura.
E pelo menos você dividia. Botava a fartura na mesa pra nem se sabe quantos convidados. Fora os pastores alemães, a centena de cães que levava o orçamento das rações lá pra nem se imagina o que. Sua obra também foi levada assim, Hilda. Pro inimaginável, além. Que legado! Um relicário desses… poxa. E generoso, sim. Você quis falar com o mundo inteiro. E até com os outros mundos. Deu-se a isso com o que tinha. Íntegra. Talvez aí nossas histórias tão distintas começassem com essa avizinhação a que chegamos.
Teríamos jogado sinuca no bar do Roni? Teríamos ido juntos à padaria de chinelos com meias em junho? Você iria sempre no Sarau da Dalva! Sem dúvidas que iria. Olga também acha isso. Meu carvalho segue num vaso, aqui em casa. Não o plantamos na sua pois Balalaika o arregaçaria na primeira noite de caça ou escavações. Penso no que já contei pra Figueira. Pedir, agradecer. Mijar como quem reza. É bom contar com sua cumplicidade, não importa o que julguem esses vivos. Não fiquei triste quando seu fantasma não veio naquele dezembro. Você foi minha primeira convidada morta prum evento literário, lembra? Assumida no programa e tudo, anos antes.
Nunca lhe tinha escrito uma carta, no entanto. Quem escreve cartas hoje em dia? E onde estão os vivos, para lê-las? Sua Flip ficou marcada pelo maior porre dos últimos tempos. Abracei bêbado o Xico Sá, mas sabe, sinto que você tinha uma conexão com as linhas das horas que custa muito aos notáveis se ter. Talvez cê mapeasse melhor os fluxos da vida… uma bruxaria mesmo. Menos amarrada à praça pública dos esteriótipos. Dada pra muito, mas não aos critérios padrões clichês das tantas classes. Você parecia querer explodir as bolhas. Não rolou, eu sei. Mas no mínimo não teve que dormir com essa. Não levou isso pro túmulo. Morreu num mundo que ainda não fosse o seu. Nem que já estivesse pronto. Como ainda não é, Hilda, como ainda não estamos.
Mas talvez nos custe mesmo essa fidelidade canina à humanidade em curso. Roendo os pés dos empilhamentos. Até que tudo venha a ruir. Roendo ossos… sim. Você, mesmo rica e farta, roeu cá seus ossos, querida. Eu sei. Afinal nem tudo se compra e nós nos esquecemos disso. Não conseguimos ter aquilo que não se vende, pois deixamos de conhecer e praticar os outros meios. E hoje, Hilda… hoje compramos fetiches, reedições, adesivos, camisetas, discos, ímãs, broches, cadernos, canecas, porta-copos, caixas, tecidos, selos, cacarecos os mais diversos. Mas onde é que se compra um espírito alfabetizado nos seus signos?
Essa coisa branda que se quer estoura a tudo, qualquer cerca? Essa fazenda constante, esse templo de pedra? Você botou o Sol em Touro, Hilda. Mas Áries chamuscou os seus cabelos, seus pelos pubianos com certeza. Você me botou noviço. Aprendi a amar amando. E quem aprende? É mais como seguir se queimando até que haja carne ainda. Você não me ensinou a nada, dona. Só me encheu de chispas… até que eu já não pudesse nada diferente do tentar.
Só queria deitar num crochê do seu colo hoje, cheirando a cinzeiro, à quarentena, nesse outono. Mostrarmos simbolicamente os dedos do meio pra tudo onde eles caibam no mundo. Em riste, Hilda Hilst. E assistirmos juntos ao último episódio de Avenida Brasil, em reprise, nesse vale a pena ver de novo.