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Mestiço
Situações do gambá tupiniquim (colagem por Rafa Carvalho)

Mestiço

Por Rafa Carvalho

para vocês dois, no sumidouro dos seus nomes

Com esta carta, crônica, poema – vocês podem chamar do que quiserem – peço a licença para abrir um hiato. Tô me ausentando por um tempo das redes sociais, talvez também desta coluna, não sei – tudo agora, é um imenso não saber. Do amanhã ninguém tem certeza, mas espero que todas fiquemos bem. E para não largar a mão de ninguém nesta última leitura, esta carta é para dois colegas de profissão, ambos suicidados. Um branco, saltando do alto pro mundo. Um negro, que se enforcou em casa. Os textos que aparecem nas entrelinhas deste são: “O gambá e o homem” de Victor Heringer; e “Súplica” de nossa mãe Noémia de Sousa. Escrevo com todo o respeito. E com todo amor a estes dois poetas. Saudades deles e do que sempre sonhei que pudéssemos ser.

 

Qual é a sensação durante a queda?

 

Do mais alto que pulei, sem metáforas, foram 15 metros –
havia uma piscina embaixo.
Machuquei a cara olhando pro chão, pro limite.
E as mãos, tentando parar; segurar o impossível.

 

Vocês não acham engraçado que tenhamos tanto pudor em falar do suicídio?
Essa estranha mania nossa, social, de pensarmos que:
se não falamos, não existe.

 

Ou que se falamos, existe: paz, utopia; esperança…

 

falar, fazer
ser, parecer

 

…que dualidades terríveis, não são?
Como não ser um gambá gordo desengonçado equilibrista?
Como não cheirar mal a esses humanos?
Como ser um gambá
assim?

 

Eu sei, eu sei
We don’t fit in

 

Mas, pensando aqui
nessa morte que se morre enfim, voando
há uma certa dignidade branca;
livre
diferente da corda no pescoço.

_

Qual a sensação durante a corda no pescoço?

 

Se a senti, fora das metáforas – em que é constante
–, foi por vaga aproximação apenas.
(hoje meu filho, vez em quando, me estrangula sem querer,
pisando os doze quilos da inocência sobre minha garganta

 

e eu deixo;

 

deixo quase além da conta, pra sentir:
o limite; a vontade de não mais conter o impossível)

 

Infelizmente é uma morte bem preta essa.

 

Longe
dos direitos humanos
à dignidade… de voarmos livres

 

sem esse sufoco.

_

No final, a vida é o que é
a gente é o que é

 

mas o que a gente parece
o que a gente aparece
depende, não é?

 

Às vezes se parece ou aparece melhor
por uma questão alheia à nossa essência…

 

não é bem um quem somos,
senão: quem podemos ser
neste mundo?

 

O que tem protocolo para ser notado…
O que tem gabarito para ser legítimo…

 

E assim soamos mais ou menos dignos,
mais ou menos humanos,
mais; ou menos

.

Querendo ou não,
alguns gambás são mais aceitáveis que outros…

 

É a vida, mas
no caso de vocês: a diferença,

 

os privilégios ou não,

 

em nada questionavam, para mim, suas essências.

 

Sinto a falta do que os dois ainda trariam pra esse mundo.

 

Tão diferentes… tão maravilhosos.
Algumas diferenças tão justas,
outras: tão desgraçadas.
É… e vocês deixaram toda essa complexidade aqui;
pra gente.
E porque é complexo, vocês continuam junto. aqui.
E nós por aí, também.

 _

Qual é a sensação?

 

Todo poeta, em lato senso, é de alguma forma:
um suicida.
Eu: me suicido desde a infância.
Minhas primeiras lembranças da vida: são de suicídios –
este termo que não podemos dizer, pra que não exista.

 

Ironicamente trabalhei com os guarani e terena
para evitar o suicídio entre jovens indígenas;
e no Japão
para evitar o suicídio infantil.
(Como se eu o tivesse evitado
comigo.)

_

Talvez vocês me entendam:
vivemos uma grande e enorme crise dos conceitos…

 

de termos.

 

Vivemos
a extinção dos gambás
gordos desengonçados equilibristas

 

tupiniquins
e os outros todos.

 

Mas, falemos um pouco dos tupiniquins:

 

eles não são preto e branco como Pepé Le Pew
como os tabuleiros de xadrez da Noémia
preto ou branco como no fascismo
e no racismo, não: eles são

 

pardos.

 

Pardos como diz-se de todos os gatos à noite.
Pardos como eu em meu registro geral.
Pardos como o que não se nomeia

 

Eu prefiro dizer-me mestiço.

 

Não sou o primeiro nem o último da fila.
Visitei já os lugares altos.
Nasci com uma corda no quarto.

 

E em síntese:

 

nem para a morte finda-se a dualidade.

 

Artistas se inspiram, se motivam mutuamente, se imitam:
é natural…

 

Por mais que sonhemos com essa originalidade,
absurda: tudo, em sermos humanos,
começa
e termina
com a mímese

 

(imagem e semelhança)

 

Não há nada de original em desistir do mundo.
Mas compreende-se bem: cada vez mais
as inspirações para tanto ficam

 

ARREBATADORAS

 

E como julgar alguém por querer regravar
uma pérola já tão regravada
de uma velha bossa
nova?

 

Eu regravaria também, se pudesse…

 

Mas não sou mais o bastante para a corda.
Não sou ainda o suficiente pras alturas.

 

Como se o mestiço pardo
se equilibrasse desengonçando
sobre o jogo de xadrez que a mãe nos cita

 

É triste ter todos os lados –
nada mais humanamente –
e por isso parecer assim
em cima;
do muro.

 

É difícil morrer.
É difícil viver.
Fácil mesmo, só escrever esta carta, poema

 

– de canhota

 

– depois de quebrar a mão direita socando uma parede.

 

Sinto a falta do que eu ainda traria pra esse mundo.
Sinto a falta de vocês.

 

Tudo é noite e o fio, entre os postes de luz.
Minha casa é térrea, meu filho brinca
pisando em minha garganta.

 

E os gambás,
lutando, desengonçados,

 

pra sobreviver

Sobre Rafa Carvalho

Rafa Carvalho é poeta apesar de tudo. Em 15 anos de carreira, são 21 países, por quase todos continentes, trabalhando com Arte, Educação e fazendo de tudo, porque tudo é o que a Poesia pode ser. E, para quem acha que Poesia não é profissão, ele já trabalhou de garçom em inúmeros estabelecimentos, na demolição civil escandinava como imigrante parcialmente legal e, atualmente, está desempregado.