Por José Pedro Soares Martins
No estuário do rio Paraguaçu na Baía de Todos os Santos, Bahia, vive um boto-cinza com uma característica física que o difere dos demais indivíduos da mesma espécie. Na região dorso-lateral da cabeça, ele apresenta uma marca que, de longe, parece uma coleira, embora, na realidade, provavelmente seja sequela de uma rede de pesca que deve ter prendido o corpo do animal e, ao longo dos anos, o machucado. Com esse perfil, o Coleirinha, como foi batizado pela ong VIVA, tornou-se o mascote da luta naquela região do litoral baiano pela proteção dos botos-cinza (Sotalia guianensis), espécie considerada como vulnerável e encontrada em vários pontos da costa brasileira.
VIVA é sigla de Viver, Informar e Valorizar o Ambiente, uma organização não-governamental criada em 2015 por um grupo de ativistas preocupados com os riscos para a população de botos da Baía de Todos os Santos, particularmente na altura do município de Salinas da Margarida. “Os botos-cinza estão sofrendo vários tipos de agressões, por exemplo, pelo enorme trânsito de embarcações. Nos períodos de verão, pessoas com jet-ski vão para cima dos filhotes”, adverte o biólogo Luciano Raimundo Alardo Souto, presidente da VIVA.
Outras ameaças são derivadas da alta carga de poluição na Baía de Todos os Santos. O biólogo Luciano nota que há sinais de que botos da região têm sido atingidos por um fungo associado a grande volume de poluição e que antes era encontrado somente nas proximidades da Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, e do Porto de Santos, no litoral paulista.
A presença intensiva de plástico no mar é outra ameaça permanente, observa o presidente da VIVA. “Já resgatamos muitos animais mortos com plástico no estômago. Várias espécies são ameaçadas pelo plástico, como as tartarugas marinhas”, acrescenta.
Outro risco constante é a pesca predatória, que tem aumentado na Bahia e em todo litoral brasileiro e causa de muita captura acidental dos animais. “Os botos ficam presos nas redes e não conseguem se soltar. Foi provavelmente o caso do Coleirinha, que monitoramos há bastante tempo e apresenta essa marca na altura do pescoço”, diz Luciano.
A VIVA monitora atualmente uma população de mais de 100 botos-cinza. A ong desenvolve ações de foto-identificação, bioacústica e nas áreas de comportamento e etnobiologia.
De modo a envolver a comunidade local na proteção dos botos e demais espécies encontradas na altura do estuário do rio Paraguaçu, a VIVA passou a desenvolver campanhas de educação ambiental com a população de Salinas de Margarida, como no caso dos pescadores e das marisqueiras. Outro eixo de atuação é a proteção e replantio do manguezal, o berçário da biodiversidade na região. (Ver reportagem “De olho na maré, com o coração no mangue“, na ASN)
Uma cidadã que é presença constante nas atividades da ong VIVA em defesa do manguezal de Salinas da Margarida é a pescadora Eunice Maria Costa, há mais de 50 anos vivendo do mar. “Todos seres vivos precisam um do outro em prol da sobrevivência de um e do outro”, diz Eunice, que afirma estar muito preocupada com o que está vendo. “É preciso fazer um estudo muito profundo sobre o mangue e todo o ambiente da nossa região, para ver porque está diminuindo o tamanho dos mariscos e porque eles estão diminuindo de população”, avisa a pescadora/marisqueira.
O biólogo Luciano Souto, conhecido na região como Raiz, assinala que as ameaças contra os botos e a biodiversidade em geral na Baía de Todos os Santos indicam a urgência de maior investimento em estudo e medidas de proteção na região. “Não é só a visão do paraíso. Temos situações muito preocupantes que devem ser olhadas e tratadas com muito mais atenção”, completa o presidente da VIVA, a ong que está animada com o lançamento oficial do Coleirinha, mascote que se torna personagem central do esforço pela conservação dos ameaçados botos-cinza.
O BOTO-CINZA É ENCONTRADO (E AMEAÇADO) EM QUASE TODO LITORAL BRASILEIRO
O boto-cinza é um mamífero da ordem Cetacea, subordem Odontoceti, da família Delphinidae. Consta que o primeiro exemplar identificado, no século 19, era originário Guiana Francesa, daí o nome científico Sotalia guianensis, dado durante a classificação por van Bénéden, em 1864.
Originalmente pensava-se que o gênero Sotalia contemplava 10 espécies, mas estudos posteriores chegaram a três espécies, nomeadas conforme a sua distribuição geográfica: S.fluviatilis na bacia amazônica, S.guianensis no litoral Norte e Nordeste do Brasil e S.brasiliensis no litoral Sudeste, sobretudo na altura da Baía da Guanabara, no Rio de Janeiro.
Novos estudos foram feitos, utilizando-se técnicas de DNA e morfometria craniana, e chegou-se finalmente à conclusão de que são duas espécies, a Sotalia fluviatilis na bacia amazônica e Sotalia guianensis no litoral brasileiro, do Norte e Nordeste até o Sul, na altura de Florianópolis (SC).
Na Amazônia, o saber popular batizou o boto-cinza de Tucuxi e, no litoral, de boto-preto e boto-cinza, em razão da coloração acinzentada, embora rosados logo depois do nascimento. O animal do sexo masculino atinge entre 1,70 e 1,75 metro (e no máximo 2,20 m) e o feminino, entre 1,65 e 1,70 metro. O boto-cinza alimenta-se de peixes, lula e camarão e chega a ter 80 quilos de peso, atingindo até 30 anos de idade. O dimorfismo é muito presente e a reprodução ocorre ao longo de todo o ano. O período de gestação e amamentação dura 12 meses.
Embora ainda faltem recursos e sempre haja risco de cortes em pesquisa científica no Brasil, o boto-cinza vem sendo estudado em alguns pontos do litoral. Importante projeto de monitoramento e estudo vem sendo desenvolvido pelo Laboratório de Mamíferos Aquáticos e Bioindicadores (Maqua), da UERJ, no Rio de Janeiro.
O Maqua foi fundado a 2 de março de 1992, poucos meses antes, portanto, da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio-92). A decisão sobre a escolha do nome foi tomada em uma reunião no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), de um grupo de estudantes interessados em pesquisar e proteger os cetáceos, inicialmente da Bahia da Guanabara. Com o tempo o Maqua tornou-se importante centro de referência em pesquisa.
A expectativa é a de que a Década da Ciência Oceânica, ou Década do Oceano, estabelecida pelas Nações Unidas para o período 2021-2030, seja importante oportunidade para a ampliação dos investimentos em pesquisa a partir de projetos como o da ong VIVA, em Salinas da Margarida (BA).
DÉCADA DA CIÊNCIA OCEÂNICA OU DÉCADA DO OCEANO
A ciência que precisamos para o oceano que queremos. Este é o lema da Década da Ciência Oceânica, ou Década do Oceano, que as Nações Unidas promulgaram em decisão em 2017 para o período de 2021-2030.
Sob a coordenação da Comissão Oceanográfica Intergovernamental (COI) da Unesco, a Década terá entre os seus propósitos: Mobilizar cientistas para atuar em prioridades do oceano tendo em vista a Agenda 2030, dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável; Unir ciência, políticas e diálogos sociais por meio de: acesso a dados, informação e comunicação; Sintetizar pesquisas existentes e definir tendências, lacunas de conhecimento e prioridades para pesquisas futuras; Sintetizar os resultados e desenvolver soluções orientadas aos usuários; Fomentar novas pesquisas conjuntas e cooperação nas bacias oceânicas e entre elas; Novas estratégias de pesquisa sobre o oceano projetadas em conjunto com as partes interessadas.
Em síntese, a Visão da Década é desenvolver o conhecimento científico, construir infraestruturas e promover parcerias para um oceano sustentável e saudável. Maiores informações no site oficial da Década da Ciência Oceânica: https://oceandecade.org