Proliferação de boatos. Recomendação das autoridades sanitárias para se evitar aglomerações e contatos físicos. Suspensão de aulas nas escolas. Indicação de medicamentos que efetivamente não curam nem previnem a doença. Parece a descrição do cenário atual, marcado pelos horrores da Covid-19, mas na realidade foi o que aconteceu durante a vigência da Gripe Espanhola, como ficou conhecida a outra pandemia que o mundo vivenciou há um século e que deixou seus rastros em Campinas, mobilizando a área da saúde e a vocação solidária local, como tinha ocorrido durante a Febre Amarela no final do século 19.
As estimativas são de que a Gripe Espanhola, provocada pelo vírus influenza, matou mais de 40 milhões de pessoas em todo planeta, entre 1918 e 1919, quando ainda estavam abertas as feridas provocadas pela Primeira Guerra Mundial. Foi provavelmente a pandemia mais letal já registrada na história. No Brasil, onde moravam em torno de 30 milhões de pessoas, foram cerca de 300 mil mortes e ela teria chegado ao país em setembro de 1918, a bordo do navio inglês “Demerara” que, vindo de Lisboa, fez escalas em Recife, Salvador e na capital federal, Rio de Janeiro. Logo a doença se espalhou e chegou aos grandes centros urbanos.
Em Campinas, durante algum tempo, cultivava-se a esperança de que a cidade estava livre da Gripe Espanhola. Falava-se que a cidade era portadora de “lisonjeiro estado sanitário”. Mas não demorou para que a pandemia chegasse na Campinas que ainda se recuperava, de alguma forma, da Febre Amarela do final do século 19.
No dia 19 de outubro de 1918, o jornal “Diário do Povo”, que tinha sido fundado por Álvaro Ribeiro seis anos antes, publicava orientações do diretor do Serviço Sanitário do Estado, Dr.Arthur Neiva: “Não fazer visitas.
Tomar cuidados higiênicos com o nariz e a garganta: inalações de vaselina
mentolada, gargarejos com água e sal, com água iodada, com ácido cítrico,
tanino e infusões contendo tanino, como folhas de goiabeira e outras.
Tomar, como preventivo, internamente, qualquer sal de quinino nas doses
de 25 a 50 centigramas por dia, e de preferência no momento das
refeições. Evitar toda a fadiga ou excessos físicos. O doente, aos primeiros sintomas, deve ir para a cama, pois o repouso auxilia a cura e afasta as complicações e contágio. Não devendo receber absolutamente nenhuma visita”. Muitas dessas recomendações na realidade não tinham feito prático, mas era o que se considera efetivo diante dos conhecimentos existentes.
Os primeiros registros de casos de infectados foram feitos no dia 24 de outubro, junto à Delegacia de Saúde de Campinas. Dois dias depois o prefeito Heitor Penteado assinava Lei Municipal, após a devida aprovação pela Câmara Municipal, nestes termos: “Art.1º – Fica a Prefeitura Municipal autorizada a tomar todas as providências que forem necessárias para evitar a invasão e propagação da gripe pandêmica que ameaça a população do Município, trazendo em tempo oportuno ao conhecimento do Legislativo as medidas que forem adoptadas. Art.2º – Para cobrir as despesas relativas a esses serviços, fica a Prefeitura Municipal autorizada a fazer as necessárias operações de crédito, caso a verba “Eventuais”, do corrente exercício não seja suficiente. Art.3º – Revogam-se as disposições em contrário”.
A área da saúde foi rapidamente mobilizada. A Santa Casa de Misericórdia, a Beneficência Portuguesa e o Circolo Italiano, que já haviam atuado com destaque no atendimento às vítimas da Febre Amarela, se prepararam para receber os doentes. A Gripe Espanhola, inclusive, influenciou para acelerar os planos do Circolo Italiano de construir um hospital próprio, que seria de fato inaugurado em 1920, sendo o antecessor da atual Casa de Saúde de Campinas.
Outras instituições se articularam, como a Escola Correa de Melo, a Maternidade de Campinas (que havia sido inaugurada pouco tempo antes, em 1916), o Hospital da Companhia Mogiana (inaugurada em 1875), o Posto Diocesano de Socorro aos Pobres, o Posto de Assistência dos Empregados da Companhia Paulista (inaugurada em 1872) e até a sucursal, então muito atuante, do jornal “O Estado de São Paulo”.
Na Vila Industrial, o bairro operário-ferroviário da cidade, a mobilização foi igualmente intensa. Estavam atentos o Hospital da Companhia Mogiana (inaugurada em 1875) e o Posto de Assistência dos Empregados da Companhia Paulista (inaugurada em 1872). Ainda na Vila Industrial, um Posto Popular foi estruturado, sob a liderança de J.I.Lacerda Werneck e Manoel Freire, um dos mais antigos e tradicionais moradores do bairro. Na Vila Industrial e em toda cidade foi intensa a atuação de voluntários, sobretudo na arrecadação e distribuição de alimentos aos mais vulneráveis, exatamente como tem ocorrido durante a pandemia de Covid-19.
No começo de novembro aconteceria a primeira morte, do estudante Rafael Eugênio. O surto ficou mais intenso nos últimos dois meses de 1918. Remédios populares eram propagados e até enxofre era queimado dentro de residências. No final, foram registrados mais de 7 mil casos de Gripe Espanhola em Campinas, o que correspondia a cerca de 7% da população na época, correspondentes a 85 mil pessoas na população atual, de 1,2 milhão de habitantes. Morreram 209 pessoas de influenza em Campinas.
Sociedade Amiga dos Pobres, Asilo dos Inválidos e, entre a população negra, a Sociedade Dançante Familiar União da Juventude, foram algumas das entidades que se mobilizaram para providenciar o acolhimento dos flagelados pela Gripe Espanhola. Os cortiços que ainda resistiam no centro da cidade eram um convite às doenças tropicais. A pandemia contribuiu para reforçar as ações públicas e particulares pela melhoria das condições sanitárias em geral em Campinas.
Fruto desse panorama, no dia 7 de dezembro de 1923, ano em que foi aberta a Seção de Assistência Médica, a Prefeitura municipalizaria a Companhia Campineira de Agua e Esgotos, que era um empreendimento particular e foi transformada imediatamente na Repartição de Água e Esgotos (RAE), embrião da futura Sanasa. Dois anos depois, em 1925, seria fundada a Sociedade de Medicina e Cirurgia de Campinas, com a participação de muitos médicos que atuaram no combate à Gripe Espanhola.
Em razão dos impactos que provocaram, a Febre Amarela e a Gripe Espanhola foram determinantes para impulsionar mudanças e melhorias no panorama social e sanitário de Campinas. A expectativa é a de que o mesmo aconteça no pós-Covid-19.