Campinas, 29 de outubro de 2024
Por José Pedro Soares Martins
No dia 20 de outubro de 2024, oito pessoas (o coordenador e sete atletas) de uma equipe de remo da cidade de Pelotas (RS) morreram quando uma carreta tombou sobre a van que as transportava. O acidente aconteceu na BR-376 em Guaratuba (PR) e a equipe de remo voltava de um torneio em São Paulo. O motorista da van também morreu no acidente. Apenas um atleta que estava na van sobreviveu. A tragédia resgatou de forma muito dolorosa, nas páginas da imprensa e nas redes sociais, a epidemia que toma conta há décadas do país, a escalada de acidentes de trânsito, com milhares de vítimas fatais anuais ou com sequelas, provocando enorme tristeza para suas famílias.
As mortes por Sinistros de Transporte Terrestre (STT) representam, de fato, um dos maiores desafios em saúde pública no Brasil, mas o assunto continua sendo negligenciado ou, no mínimo, sem merecer a atenção devida. Na recente campanha eleitoral para Prefeituras, por exemplo, foi tema quase ignorado, apesar de grande parte dos acidentes ocorrer nos espaços urbanos, sobretudo das grandes cidades.
Os números falam por si. Entre 2010 e 2019, correspondente à Primeira Década de Ação pela Segurança no Trânsito, iniciativa da ONU, com especial protagonismo da Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil contabilizou 392 mil óbitos por acidentes em ruas, avenidas e rodovias. Esse contingente de mortes é equivalente à população de uma cidade como Carapicuiba, em São Paulo, ou Petrolina, em Pernambuco.
Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), assinado por Carlos Henrique Ribeiro de Carvalho e Erivelton Pires Guedes, revelou que entre 2010 e 2019 morreram em acidentes de trânsito no país 13% a mais do que na década anterior. Desta forma, o Brasil não cumpriu a meta prevista para a Primeira Década de Ação pela Segurança no Trânsito, que era de redução de 50% no total de óbitos ao final do período.
Pois os primeiros números relacionados à Segunda Década de Ação pela Segurança no Trânsito (2021-2030) no Brasil não são nada animadores. Em 2022, foram cerca de 33.894 mortes por acidentes em transportes terrestres, aumento de quase 2 mil óbitos em relação a 2019. Foram em média 92,6 mortes por dia na categoria STT em 2022, dez vezes o número de óbitos no acidente que matou oito membros da equipe de remo de Pelotas no último dia 20 de outubro. A estimativa para 2023, cujos números ainda não foram consolidados, é de um número menor de óbitos do que em 2022, mas ainda acima da faixa de 30 mil mortes.
Um estudo realizado pelo Centro de Liderança Pública, que anualmente elabora o Ranking de Competitividade dos Municípios, também confirma que os primeiros indicadores da Segunda Década não são otimistas. O Ranking de Competitividade é elaborado com base em 65 indicadores de 415 cidades brasileiras com mais de 80 mil habitantes. O estudo “Um diagnóstico sobre os acidentes de trânsito no Brasil em 2023″, assinado por Daniel Duque e Pedro Trippi, mostrou que entre 2020 e 2023 a proporção de municípios brasileiros com Morbidade nos Transportes acima de 150 por grupo de 100 mil habitantes passou de 23,70% para 29,23%. A Morbidade nos Transportes considera o número de internações por acidente de transporte por grupo de 100 mil habitantes.
Os desafios para o Brasil na Segunda Década de Ação pela Segurança no Trânsito são, portanto, de enorme magnitude. A Agência Social de Notícias elenca alguns deles, considerando os cinco eixos de ações recomendadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) no Plano Global da Década.
I – Transporte multimodal e planejamento de uso do solo
Neste eixo, o Plano Global recomenda ações como “Desencorajar o uso de veículos particulares em áreas urbanas de alta densidade, colocando restrições aos usuários de veículos motorizados, veículos e infraestrutura de vias, e fornecer alternativas que sejam acessíveis, seguras e fáceis de usar, como andar a pé, bicicleta, ônibus e bondes”. Outra ação sugerida é “Fornecer conectividade intermodal entre transporte público e esquemas de compartilhamento de bicicletas nas principais paradas de transporte público e criar conexões de transporte para percursos de bicicleta e para pedestres que reduzam o tempo total do deslocamento”.
O fomento às ciclovias nas áreas urbanas é, portanto, uma das fortes recomendações do Plano Global da OMS. Nesse sentido o Brasil ainda tem um longo caminho a percorrer. Em 2023, segundo pesquisa da Associação Brasileira do Setor de Bicicletas (Aliança Bike), foi de somente 4% o aumento da extensão de ciclovias e ciclofaixas nas capitais brasileiras em relação a 2022, com uma evolução de 4.196 km para 4.365 km. Um crescimento, portanto, de 169 km, nas 26 capitais estaduais brasileiras e Distrito Federal.
“A construção de mais ciclovias e ciclofaixas é um ponto fundamental para incentivar a mobilidade e mostra o interesse dos municípios em oferecer soluções para o deslocamento urbano”, afirmou o vice-presidente da Aliança Bike, André Ribeiro, no lançamento da pesquisa. “Proporcionar segurança e um local adequado para o uso das bicicletas pode trazer enormes mudanças positivas para o cotidiano das pessoas e das cidades, contribuindo em diversos aspectos. Que essa tendência de crescimento continue e avance em todos os municípios brasileiros”, ele completou.
Um elemento de esperança foi a sanção pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva da Lei nº 14.729, estipulando maior incentivo ao uso de bicicletas como meio de transporte nas cidades brasileiras. A Lei de 23 de novembro de 2023 introduz modificações nas Leis nºs 13.724, de 4 de outubro de 2018, e 10.257, de 10 de julho de 2001, visando ampliar a participação popular no processo de implantação de infraestruturas destinadas à circulação de bicicletas, bem como para determinar a compatibilização do Plano de Mobilidade Urbana com a ampliação do perímetro urbano. A Lei nº 13.724/2018 havia instituído o Programa Bicicleta Brasil (PBB).
Outro claro desafio em relação ao primeiro eixo do Plano Global é a ampliação do sistema multimodal, de modo a aprimorar o transporte público nas cidades e rodovias brasileiras. Estudo da Associação Nacional dos Transportadores de Passageiros sobre Trilhos (ANPTrilhos), por exemplo, revelou que em 2023 foi de apenas 4,1 km o acréscimo de trilhos no sistema metroferroviário no país em relação a 2022, bem abaixo da expectativa de aumento de 15 km. Com o pequeno aumento, a malha metroferroviária brasileira atingiu 1.133,4 km, divididos em 307 km de metrô, 536 km de trem urbano, 274 km de Veículos Leves sobre Trilhos (VLTs), 14 km de monotrilho e 0,8 km de people mover, números bem abaixo das necessidades dos milhares de brasileiros que demandam transporte coletivo para chegar ao trabalho.
País de dimensão continental, o Brasil tem de fato enormes obstáculos a enfrentar no sentido de construir um sistema multimodal de transporte coletivo seguro e barato. Na Amazônia, distâncias enormes podem ser cobertas apenas por barcos, muitas vezes em condições precárias. Em todas as regiões, brasileiros procuram encontrar suas próprias alternativas de transporte, como os barcos-ônibus em muitos pontos do Nordeste, como na Paraíba.
II – Infraestrutura viária segura
O Plano Global da OMS sustenta que “a infraestrutura viária segura é essencial para reduzir os traumatismos no trânsito. A infraestrutura viária deve ser planejada, projetada, construída e operada a fim de permitir a mobilidade multimodal, incluindo o transporte público/ compartilhado, e andar a pé e de bicicleta. Deve eliminar ou minimizar os riscos para todos os usuários da via, não apenas para os motoristas, começando pelos mais vulneráveis”.
Neste eixo, o Brasil também contempla várias barreiras a superar. A pesquisa anual da Confederação Nacional dos Transportes (CNT) referente a 2023 indicou que 67,5% das rodovias brasileiras apresentavam extensão na categoria de regular, ruim ou péssima. Por outro lado, somente 32,5% tinham extensão classificada como boa ou ótima. “A realidade que o estudo expõe reforça o que a CNT vem defendendo há anos: a necessidade de continuar mantendo investimentos perenes e que viabilizem a reconstrução, a restauração e a manutenção das rodovias”, afirmou o presidente da Confederação, Vander Costa.
O professor da Faculdade de Engenharia da Unicamp, Celso Arruda, especialista em segurança viária, entende que “o governo não providenciou estradas mais seguras, exceto naquelas dadas sob concessão”. Ele nota que “pelo memorial de concessão as empresas têm que obedecer metas para termos rodovias mais seguras”. O docente considera que algumas rodovias brasileiras, sob gestão concessionada, alcançaram “o nível internacional de excelência, enquanto as que não estão sob concessão continuam em estado precário”.
Arruda observa que em países desenvolvidos os programas de concessão estipulam que os usuários podem ter duas opções de tráfego, uma, mais rápida, pelas rodovias pedagiadas, e outra, menos rápida e sem pedágio. E isto não ocorreu nos programas implementados no Brasil, onde o usuário tem apenas a opção da rodovia pedagiada, lamenta o professor, para quem, portanto, o país tem muito a avançar em termos de infraestrutura viária.
III – Segurança do veículo
O Plano Global da Organização Mundial da Saúde estipula que “os veículos devem ser projetados para garantir a segurança dos que estão dentro e fora deles. Para melhorar a segurança do veículo, diferentes recursos podem ser integrados ao projeto do veículo a fim de evitar sinistros (segurança ativa) ou para reduzir o risco de lesões aos ocupantes e outros usuários da via quando ocorre um sinistro (segurança passiva). Embora diversos tipos de soluções tecnológicas tenham sido desenvolvidos, elas foram introduzidas nos países de maneira diferente, e o que é integrado como “equipamento padrão” em veículos novos difere entre os países”.
O Brasil tem registrado avanços em termos de segurança dos veículos nas ruas e rodovias. Em janeiro de 2014, entrou em vigor a obrigatoriedade de que todos os automóveis novos no Brasil passassem a contar com airbag duplo frontal (para o motorista e o passageiro da frente do veículo) e freios ABS. A obrigatoriedade seria para os zero quilômetro fabricados a partir daquele ano, sendo permitida a circulação de carros de outros anos sem os dois equipamentos. Desde 2010, entretanto, muitos veículos já saíam de fábrica com os dois equipamentos, em importante medida para a melhoria da segurança veicular.
Prevista no Código de Trânsito Brasileiro desde 1997, a Inspeção Técnica Veicular não tinha sido ainda regulamentada. A regulamentação acabou acontecendo com a Resolução 716 do Conselho Nacional de Trânsito (Contran) de 8 de dezembro de 2017, estipulando o prazo de 31 de dezembro de 2019 para que todos órgãos de trânsito dos Estados e do Distrito Federal começassem a exigir a inspeção técnica veicular periodicamente.
Por outro lado, permanecem dilemas em termos da frota utilizada pela população de mais baixa renda. O citado estudo do IPEA apontou que a imensa maioria (mais de 90%) da proporção de mortes por acidentes acontece entre a população com até 11 anos de escolaridade, correspondente à população de menor renda. A proporção de óbitos entre a população com 12 anos ou mais de estudo, correspondente à população com mais alta renda e com veículos mais novos, é de 8,5%. Cerca de 60% das mortes foram entre a população com até 7 anos de estudo.
“A própria escolaridade reduzida, e, consequentemente, o menor nível de renda deste grupo, torna-se um fator de risco para ocorrência de sinistros de transporte em função do maior uso de veículos com manutenção precária, problemas com falta de habilitação e equipamentos de segurança, maior circulação em áreas mais pobres com poucos equipamentos de segurança de trânsito, além do maior uso de motocicletas de baixa cilindrada nesta faixa, que são veículos mais vulneráveis em termos de proteção ao motorista”, alertam os autores do estudo do IPEA.
IV – Uso seguro da via
O Plano Global da OMS observa que “excesso de velocidade, direção sob o efeito de álcool, cansaço do motorista, direção distraída e o não uso de cintos de segurança, sistemas de retenção para crianças e capacetes estão entre os principais comportamentos que contribuem para lesões e mortes nas vias. Por conseguinte, o projeto e a operação do trânsito levam em consideração esses comportamentos através de uma combinação de legislação, fiscalização e educação”.
No Brasil, um dos maiores desafios em termos de uso seguro das vias se refere às condições de tráfego para os motociclistas. Realizado com base em dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM-Datasus), do Ministério da Saúde o estudo “Balanço da Primeira Década de Ação pela Segurança no Trânsito”, do IPEA, revelou que, em relação à década anterior, a proporção de mortes em atropelamentos caiu de 28% para 19% no período de 2010 a 2019. Essa queda mostra que houve algum sucesso nas ações para redução de atropelamentos nos centros urbanos, como os limites de velocidade em algumas vias, a aplicação de multas por excesso de velocidade e as campanhas educativas.
Por outro lado, entre 2010 e 2019 a proporção de mortes por acidentes com motocicletas representou 30% do total de óbitos, em comparação com os 17% da década anterior. Foram quase 120 mil mortes por acidentes com motos entre 2010 e 2019, um número equivalente ao da população de cidades como Itatiba ou Barretos, no interior de São Paulo.
“As políticas econômicas privilegiaram o aumento no número de motos, com a redução de impostos e incentivo à criação de fábricas, por exemplo na Amazônia”, observa Otaliba Libânio de Morais Neto, que representou o Brasil na Conferência de Moscou pelo Ministério da Saúde e agora atua como professor e pesquisador na Universidade Federal de Goiás, junto ao Instituto de Patologia Tropical e Saúde Pública. A Primeira Conferência Ministerial Global sobre Segurança no Trânsito, realizada em Moscou, Rússia, entre os dias 19 e 20 de novembro de 2009, é considerada um marco em termos de avanço da agenda global sobre segurança viária.
O especialista nota que a motocicleta foi “uma alternativa que a população encontrou para a mobilidade, principalmente nas regiões Norte e Nordeste, em razão dos custos e do transporte coletivo de baixa qualidade”. E acrescenta que, “por ser um veículo inseguro e muitas vezes mal utilizado, a consequência é o grande número de mortes”.
De fato, o crescimento da frota de motocicletas chegou a 250% na Região Nordeste e a 240% na Região Norte, no período de 2007 a 2019, enquanto a população dessas regiões cresceu cerca de 10% e 15%, respectivamente, segundo dados do IBGE e Abraciclo.
Dados da Seguradora Lider, por outro lado, confirmam que a maior vítima de acidentes fatais com motocicletas é o próprio condutor, ao contrário do que ocorre com os acidentes com outros tipos de veículo. Entre 2008 e 2018, 144.523 indenizações foram pagas no caso de mortes do condutor em acidentes com motos, enquanto o mesmo tipo de acidentes levou a 30.732 indenizações pagas por óbitos do passageiro e a 24.498, no caso de pedestres. Já os acidentes com automóveis resultaram, no mesmo período, no pagamento de 95.190 indenizações pagas por mortes de passageiros, 55.677 por óbitos de pedestres e 66.078, por óbitos do próprio condutor.
“Este triste quadro é resultado da forte expansão da frota de motocicletas no Brasil ocorrida nos últimos 25 anos, além do aumento vertiginoso dos serviços de transporte de mercadorias e pessoas utilizando motocicleta, entre outros fatores”, comentam os autores do estudo do IPEA. É evidente que ações mais eficazes relacionadas à segurança dos usuários de motocicletas é uma das medidas mais urgentes para a proteção da vida no trânsito no país, considerando a Segunda Década de Ação pela Segurança Viária, já em curso e correspondente ao período 2021-2030.
V – Resposta pós-sinistro
O Plano Global da OMS alerta que “o atendimento pós-sinistro e a sobrevivência são extremamente susceptíveis ao tempo: atrasos de minutos podem fazer a diferença entre a vida e a morte. Por essa razão, o atendimento apropriado, integrado e coordenado deve ser propiciado o mais rápido possível após a ocorrência de um sinistro. Os mecanismos para garantir que as ações apropriadas sejam tomadas incluem um sistema de alerta (por exemplo, um único número de telefone de acesso universal) conectado a profissionais pertinentes, que por sua vez são capazes de enviar rapidamente os serviços de emergência apropriados com pessoal treinado e os equipamentos necessários através de ambulâncias ou, às vezes, helicópteros, quando necessário”.
No Brasil, têm avançado as medidas para melhoria do atendimento pós-sinistro, embora muitas melhorias ainda possam ser feitas. Houve por exemplo o fortalecimento, expansão e regulamentação do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU 192), pela Portaria nº 1010 de 21 de 2012.
Entre as atribuições do SAMU está a de realizar o atendimento médico pré-hospitalar de urgência, tanto em casos de traumas como em situações clínicas, prestando os cuidados médicos de urgência apropriados ao estado de saúde do cidadão e, quando se fizer necessário, transportá-lo com segurança e com o acompanhamento de profissionais do sistema até o ambulatório ou hospital.
“Muitas vezes é o SAMU quem chega primeiro ao local do acidente”, observa Morais Neto, lembrando que muitos municípios ainda não contam com Corpos de Bombeiros. Ele entende que é possível uma maior integração das ações entre SAMU, Corpo de Bombeiros e outros órgãos, em benefício de melhorias ainda maiores no atendimento às vítimas de acidentes de trânsito. A integração evitaria, por exemplo, a duplicidade no atendimento. Nos pronto-socorros e hospitais também houve avanços no tratamento às vítimas, acredita o especialista.
Bom caminho a percorrer
Existe, em síntese, um bom caminho a percorrer para que o Brasil alcance as metas propostas para a Segunda Década de Ação pela Segurança no Trânsito. Ainda permanecem lacunas de gestão a serem preenchidas, como a de uma agência independente de pressões políticas, fortalecida e com recursos humanos e materiais para atuar em esfera nacional.
A criação de uma autarquia, com o nome Denatran e com “personalidade jurídica de direito público, autonomia administrativa e financeira”, chegou a ser objeto de um Projeto de Lei do Executivo, de número 5453/2005 e assinado pelos ministros Olivio Dutra (Cidades) e Paulo Bernardo (Planejamento). O PL foi discutido e aprovado por todas as Comissões da Câmara dos Deputados e encaminhado a 16 de março de 2007 para a Mesa Diretora do Senado Federal. Não houve prosseguimento da discussão no Senado, ao longo de toda a Década de Ação para a Segurança Viária, e o Projeto de Lei foi arquivado ao final da 54ª Legislatura, conforme publicação no Diário do Senado Federal, Ano LXIX – Sup. I ao nº 210, de 23 de dezembro de 2014. Com isso, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, assinou a 18 de março de 2019 o arquivamento do projeto.
Outra lacuna a ser preenchida em termos de gestão é em termos da municipalização do trânsito, prevista no artigo 24 do Código de Trânsito Brasileiro. Entretanto, em agosto de 2024, dos 5565 municípios brasileiros, somente 1921 tinham concluído todos os procedimentos para a municipalização, integrando-se portanto ao Sistema Nacional de Trânsito, de acordo com dados da Secretaria Nacional de Trânsito (Senatran) do Ministério dos Transportes. O Rio Grande do Sul apresenta a maior proporção de municipalização. Dos 497 municípios gaúchos, 488 municipalizam o trânsito. Minas Gerais, por outro lado, que tem 853 municípios, conta com apenas 97, ou pouco mais de 10%, com trânsito municipalizado.
“É muito importante que os municípios se empoderem, pois podem ser muito efetivos em questões como redução de velocidade. E os resultados são fantásticos quando estados e municípios atuam em conjunto, como ocorreu por exemplo em Campo Grande”, comenta Otaliba Libânio de Morais Neto.
No dia 15 de dezembro de 2020, o Conselho Nacional de Trânsito (Contran) emitiu a Resolução 811, estabelecendo novos procedimentos para a integração dos municípios ao Sistema Nacional de Trânsito (SNT). A medida entrou em vigor em 3 de maio de 2021.
Alguns fatos e iniciativas recentes sinalizam avanços, pelo envolvimento de vários setores no tema. A sociedade civil tem feito a sua parte. Em março de 2024 teve início um projeto conjunto da Organização Panamericana da Saúde (OPAS) e Polícia Rodoviária Federal, com participação do Programa de Pós-Graduação em Transportes da Universidade de Brasília (UnB) e Senatran. O projeto, que tem recursos do estipula a qualificação da coleta e tratamento de dados sobre fatores de risco nas rodovias federais brasileiras.
Ao final do tempo previsto para o projeto, todos os policiais federais rodoviários brasileiros deverão estar capacitados a identificar e documentar os fatores de risco nas rodovias, contribuindo para as políticas públicas necessárias para a melhoria da segurança no trânsito. A iniciativa, “além de fortalecer a integração entre instituições que atuam na segurança rodoviária do Brasil, permitirá a qualificação da informação para subsidiar intervenções eficazes e em tempo oportuno, com ações embasadas em evidências”, afirmou o assessor para a segurança viária da OPAS, Victor Pavarino.
Outro passo relevante aconteceu em maio de 2022, quando, por unanimidade, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou constitucional a Lei 11.705/2008, conhecida como a de Lei Seca. Portanto, o STF deu parecer negativo à Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.103, que havia sido impetrada pela Associação Brasileira de Restaurantes e Empresas de Entretenimento (Abrasel), contra o presidente da República, questionando a Lei.11.705/2008.
“A mensagem do STF é histórica: a Lei Seca é constitucional, é legal e salva vidas’, comemorou o deputado federal Hugo Leal (PSD/RJ), autor da Lei.11.705/2008. A Lei foi editada um ano antes da Conferência de Moscou. Os primeiros resultados positivos da Lei Seca foram expostos na histórica Conferência por Otaliba Libânio de Morais Neto, na época chefe do Departamento de Análise de Saúde do Ministério da Saúde.
O Brasil tinha chegado à reunião de Moscou com números cada vez mais assustadores. Em quase cinco décadas, o número de mortes anuais em acidentes de trânsito havia aumentado mais de dez vezes, saltando de 3.356 em 1961 para 38.469 em 2009, segundo dados do Denatran e DATASUS.
Entre 1961 e 2000, o número de feridos nesses acidentes saltou 15 vezes, de 23.358 para 358.762, de acordo com as mesmas fontes. Em cinco décadas a proporção de mortes por 100 mil habitantes cresceu cinco vezes, indo de 4,6 em 1961 para 21,8/100.000 em 2010. Hoje é de cerca de 16 por 100 mil, com os avanços já conquistados.
Diante dessa trágica contabilidade, a Conferência de Moscou representava uma grande oportunidade para o Brasil firmar uma agenda de ações estratégicas pela segurança no trânsito. Entretanto, apesar de ser uma Conferência Ministerial, o país não teve ministros na capital russa. A delegação brasileira foi chefiada pelo deputado federal Hugo Leal, autor do projeto que resultou na Lei nº 11.705, a Lei Seca.
De qualquer forma, desde Moscou o Brasil se firmou como uma liderança internacional na busca de enfrentamento da violência no trânsito. A Segunda Conferência Ministerial Global sobre Segurança no Trânsito aconteceu em Brasília, nos dias 18 e 19 de novembro de 2015. A Conferência de Brasília representou avanços em relação ao encontro de Moscou, em 2019, como pode ser verificado nas declarações finais dos dois eventos.
Por exemplo, na Declaração de Moscou a palavra “risco” foi mencionada apenas uma vez, sendo estes dos riscos apontados para a ocorrência de acidentes de trânsito: velocidade; beber e dirigir, cinto de segurança, mecanismos de retenção para crianças; capacetes; veículos velhos sem manutenção ou dispositivos de segurança; infraestruturas que não protegem pedestres; ausência ou insuficiente fiscalização e atenção ao trauma.
A Declaração de Brasília, por sua vez, cita a palavra “risco” onze vezes, acrescentando, em relação à Declaração de Moscou, as “condições médicas e medicamentos que afetam a direção segura; fadiga; uso de narcóticos, drogas psicotrópicas e substâncias psicoativas; telefones celulares e outros aparelhos eletrônicos e de mensagens de texto; distrações visuais nas vias”, segundo estudo comparativo realizado por Victor Pavarino, da OPAS/OMS.
A Terceira Conferência Ministerial Global sobre Segurança no Trânsito foi realizada em Estocolmo entre 19 e 20 de fevereiro de 2020, portanto pouco antes da explosão mundial dos casos de Covid-19, o que permitiu a presença de 1700 delegados de 140 países na capital sueca. A Declaração de Estocolmo aponta para a convergência das temáticas ambiental, da saúde e da segurança viária, em consonância com a Agenda 2030 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.
Com efeito, relacionar as demandas da sustentabilidade com os propósitos da Segunda Década de Ação pela Segurança no Trânsito, em termos de agravamento das mudanças climáticas, representará um desafio cada vez mais especial para o conjunto dos países, inclusive o Brasil. As enchentes históricas ocorridas no Rio Grande do Sul, no início de 2024, deixando um saldo de ao menos 180 mortes, atingiram pelo menos 200 mil veículos, como um dos indicadores de como as cidades precisam estar mais preparadas para os eventos climáticos extremos.
Ampliar as alternativas de transporte coletivo vão repercutir na redução de acidentes de trânsito e também na menor emissão de gases de efeito-estufa que agravam o aquecimento global. O mesmo em termos da ampliação das ciclovias, com repercussão direta na melhoria da saúde das pessoas e no microclima nas cidades.
De modo geral, o que cidadãos e cidadãs esperam é a significativa qualificação das condições de segurança viária na Segunda Década de Ação. O sentimento dos brasileiros é sintetizado pelo depoimento de Antônio dos Reis Pereira, motorista profissional desde 1982.
Conhecedor profundo pelo contato diário com o trânsito nas cidades pequenas e grandes e nas rodovias, Pereira diz que a segurança no trânsito pode sim melhorar no país. “Falta uma fiscalização mais rigorosa, para infrações mais graves tipo excesso de velocidade e uso de celular no volante”, afirma. “Também percebo que falta infraestrutura e sinalização mais clara nas ruas e rodovias, além de orientação, educação no trânsito. Eu focaria de fato na prevenção, e não apenas na punição”, completa o motorista, que costuma dizer que o tanto que viajou pelo Brasil daria para dar várias voltas ao mundo ou ir diversas vezes até a Lua.