Por José Pedro Martins
Encontramos a cineasta moçambicana Isabel Noronha em uma mesa da lanchonete próxima ao Diretório Central dos Estudantes (DCE) da Unicamp, em Campinas, onde ela faz um doutorado. Manejando um laptop, ela estava feliz por compartilhar tempo e espaço com a juventude que ia e vinha dos institutos e faculdades, mas muito preocupada com dois processos eleitorais, que tomaram a sua atenção em outubro. Foram as eleições brasileiras e moçambicanas, ambas ganhas pelo partido do governo, PT no Brasil e FRELIMO em Moçambique.
Nas duas situações os resultados continuam repercutindo, com trocas de acusações e conflitos entre os partidos e projetos oponentes. A Renamo, o partido vencido em Moçambique, está pedindo oficialmente a anulação das eleições. Temendo seriamente pelo futuro da sua terra natal, Isabel contou com exclusividade para a Agência Social de Notícias a sua trajetória, uma síntese da beleza e das dificuldades em fazer cinema na África. No caso dela, apesar da segregação, da guerra e dos preconceitos.
Segregação – Isabel nasceu em Maputo, a capital moçambicana, que na época, ainda sob o domínio português, se chamava Lourenço Marques. O seu pai, médico, era natural de Goa, a cidade-estado que também estava sob o controle colonial de Lisboa até 1961, quando foi ocupada pelo Exército da Índia, onde está localizada. A mãe era moçambicana, atuando na área de Serviço Social.
Desde cedo Isabel soube o que era viver em uma sociedade segregada. “Se Moçambique não vivia em um apartheid declarado, era de qualquer modo uma situação clara de estratificação social, com a divisão geográfica e social por raças”, ela lembra. Perto da bela orla marítima viviam os brancos, de ascendência portuguesa. Depois vinham os mestiços, como os portugueses-indianos de Goa. Em seguida vinham os estrangeiros que não procediam de colônias portuguesas e, finalmente, os mulatos e negros, a maioria em situação de extrema pobreza – quadro que melhorou, mas não foi totalmente modificado, pois metade da população vive abaixo da linha da pobreza, segundo dados oficiais e das Nações Unidas.
Filha de um cidadão originário da Índia, Isabel diz que sentia nitidamente a força da discriminação. Além deste legado do colonialismo, ela conviveu com o agravamento da conjuntura política ao longo da década de 1960 e início da década de 1970, em função da luta das forças governamentais contra o avanço das forças revolucionárias da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), liderada por Samora Machel. Fundada na Tanzânia, em 1962, a FRELIMO era resultado da união de três grupos nacionalistas moçambicanos que estavam no exílio e cada vez mais assumiu um perfil socialista. A luta não era mais somente contra o domínio português, mas para a instalação de uma sociedade socialista em Moçambique.
A revolução e a guerra civil – Os combates, que eram permanentes no interior, se aproximavam progressivamente dos limites de Maputo, e a conquista da independência se precipitou com a Revolução dos Cravos em Portugal, a 25 de abril de 1974. Os revolucionários vitoriosos logo iniciaram tratativas para a independência das colônias e a 7 de setembro de 1974 foi assinado o Acordo de Lusaka, entre o governo provisório português e a FRELIMO. Desde então, 7 de setembro se tornou a data nacional de Moçambique, “mais uma grande coincidência com o Brasil”, observa Isabel. No final de 1974, quase todos os 200 mil portugueses que viviam no país já tinham regressado a Lisboa.
Isabel Noronha relata momentos de muita tensão, antes da efetiva tomada do poder pela FRELIMO. Fortes combates aconteciam nos subúrbios, Maputo ficou sitiada por três dias, período em que o pai, médico, continuava o seu trabalho e tinha que atravessar várias barreiras policiais, sem nenhuma garantia de que não seria golpeado por algum disparo.
Em 1975 Samora Machel se tornou o primeiro presidente moçambicano após a independência, mas o país ainda não alcançaria a paz. Não demorou para ter início a guerra civil, com os combates entre as forças governamentais da FRELIMO e as fileiras da Resistência Nacional Moçambicana (Renamo), uma organização anticomunista criada com o apoio do governo da Rodésia, que tinha muita similaridade com o regime do apartheid sul-africano.
Na clandestinidade – Com a FRELIMO no poder, todos os serviços foram estatizados. As casas que pertenciam aos portugueses ricos, e que deixaram o país, foram repassadas a funcionários do governo. Foi instalado um sistema de racionamento de alimentos. O Estado passou a orientar as funções dos cidadãos e Isabel Noronha tornou-se, por muitos anos, professora do que corresponderia no Brasil hoje ao ensino fundamental.
O ideário socialista era fortalecido no discurso da FRELIMO, apesar das dissidências e conflitos internos. “Os movimentos nunca são homogêneos”, lembra Isabel. Ela admite que este período deixou marcas profundas no pensamento, na cultura e no comportamento de gerações de moçambicanos. “Fomos formados na ideia de que não existimos como indivíduo, temos que ser úteis ao país”, destaca.
Com o agravamento da guerra civil, as posições políticas também se acirravam. Existiam praticamente três opções na época. Servir o Exército, atuar em uma profissão indicada pelo Estado ou servir nos chamados “campos de reeducação”, para quem não queria optar pelas duas primeiras alternativas. Os candidatos aos “campos de reeducação” eram os rebeldes, os considerados “improdutivos”, segundo Isabel Noronha.
Ela não chegou a ir trabalhar em um desses campos, porque “não foi apanhada”. Ou seja, passou a viver praticamente na clandestinidade, por um razoável período. Durante muitos meses morou longe dos pais e irmãos, em uma casa que permanecia fechada o dia todo. Ela não acendia luzes e saia durante curtos momentos para conseguir comida.
Fazendo cinema – A trajetória de Isabel Noronha mudaria em um dia, no início da década de 1980, quando encontrou na rua um grupo que estava envolvido na produção de “O tempo dos leopardos”, primeiro longa-metragem moçambicano, em co-produção com a Iugoslávia. Estavam juntos o cineasta Camilo de Sousa (seu futuro companheiro), o jornalista Machado da Graça e Luis Patriquim, que assinaria o roteiro.
Do encontro surgiu o convite para Isabel participar da produção, mas havia uma grande barreira. Ela era uma “improdutiva”, e não conseguiria o emprego, a menos que aceitasse uma condição: teria que obter um laudo psicológico indicando que tinha sofrido um esgotamento nervoso, e por isso não pôde trabalhar anteriormente. Assim foi feito e ela se tornou assistente de logística da produção moçambicano-iugoslava, que teve direção geral de Zdravko Velimorovic.
Era 1985, o auge da guerra civil, comida, roupa e outros objetos de uso cotidiano estavam extremamente racionados, e Isabel tinha que se virar para encontrar o que a produção demandava. Uma dificuldade adicional, mas não menos relevante, as filmagens foram feitas na Ilha de Inhaca, um paraíso tropical, mas onde os recursos eram ainda mais escassos que na capital. As peças de roupas militares eram obtidas junto à população, em troca de cigarro. Detalhe: a equipe ficou hospedada em um local que havia servido de prisão colonial.
Isabel conta que faltava comida algumas vezes, e a fome era saciada com o consumo de Xidiba Ndota, um aguardente cujo nome pode ser traduzido como “o que derruba o homem”. “As garrafas ficavam em meu quarto”, lembra ela, que chegou a ser expulsa da produção, quando, um dia, conseguiu viajar em um helicóptero das Forças Armadas para uma festa em Maputo. Mas acabou reintegrada, quando pediu desculpas aos superiores.
“O tempo dos leopardos”, admite Isabel, foi a “escola da vida do cinema” para ela. Como auxiliar de logística, aprendeu muito. Depois dessa experiência, mergulhou de vez no cinema. Samora Machel morreu em 1986, novos momentos de instabilidade, mas veio finalmente o Acordo Geral de Paz, assinado a 4 de outubro de 1992, em Roma, pelo presidente moçambicano Joaquim Chissano, o líder da Renamo Afonso Dhlakama e representantes dos mediadores. A Renamo tornou-se um partido a partir daí, participando das eleições.
Filmes de Isabel Noronha – Além de atuar no Instituto Nacional de Cinema (INC), Isabel foi uma das fundadoras da primeira cooperativa independente de Video ( “Coopimagem”) e da Associação Moçambicana de Cineastas. Além do cinema, dedicou-se à academia, tornando-se licenciada em Psicologia Clínica e Aconselhamento pelo Instituto Superior Politécnico Universitário (ISPU), onde deu aulas em Psicanálise, Psicologia Social, Orientação Vocacional, Psicologia das Emoções, Psicologia da Personalidade, Psicologia da Comunicação. É mestre em Saúde Mental e Clínica Social pela Universidade de Léon, na Espanha, e atualmente faz um doutorado em Antropologia na Unicamp, em Campinas.
Como cineasta assinou os documentários “Assim na cidade”, “Sonhos guardados” e “ Ngwenya, o crocodilo” (eleito o melhor documentário de África, Ásia e América Latina pelo Festival de Milão), os três com temas associados à construção social e da identidade moçambicana.
Em 2008 começou uma nova linha de pesquisa cinematográfica, com filmes sobre temáticas sociais, como a “Trilogia das Novas Famílias” ( Prémio Kuxa –Kanema, melhor filme moçambicano de 2007). A partir daquele ano atuou, junto com a brasileira Vivian Altman ( realizadora de animação), em trabalho de pesquisa mesclando filme e animação, o que resultou nas obras: “Mãe dos Netos,” ( 2008), “Salani” (2010) e “ Meninos de Parte Nenhuma” ( 2011). Em 2010 dirigiu “Maciene, para além do sonho”, um documentário sobre um projeto comunitário de produção de artesanato com base em recursos naturais
Em 20011, co-realizou com Vivian Altman, Firouzeh Khosrovani ( Irã) e Irene Cardona ( Espanha) o documentário/animação “ Espelho Meu”, sobre a auto-imagem de mulheres de diferentes culturas, nos quatro continentes, que ganhou o primeiro prêmio no festival DocumentaMadrid 2011 e Mujerdoc 2012.
Inquietação – Com esta densa contribuição ao cinema moçambicano e africano, Isabel Noronha se firmou como uma das grandes realizadoras do continente. E ela está muito preocupada com o futuro do país e da África.
Ela sabia que, qualquer que fosse o vencedor, o vencido não receberia muito bem os resultados das eleições moçambicanas. E não deu outra: a Renamo, o partido formado na oposição armada à FRELIMO, contestou o pleito, que deu a vitória ao candidato da situação, Filipe Nyusi, atual ministro da Defesa, com cerca de 57% dos votos. Afonso Dhlakama, da Remano, teve cerca de 36% dos votos e Daviz Simango, do Movimento Democrático de Moçambique, aproximadamente 7%.
Não se sabe se haverá conflitos armados, mas de qualquer modo Isabel está inquieta. Ela entende que o país transitou para a direita, com o avanço de teses neoliberais e consequentes privatizações e enriquecimento de poucos.
A AIDS continua um grande desafio. São 1,5 milhão de infectados, em uma população de 22 milhões de pessoas. Estima-se que 85 crianças nasçam diariamente com o vírus HIV no país, onde a taxa de prevalência é de 11,5%, contra 0,5% no Brasil.
A “Trilogia das novas famílias” é o retrato desse enorme drama. Os filmes de Isabel mostram a realidade dos novos arranjos familiares criados a partir da tragédia da AIDS. O corpo político e biológico dominado por um novo tipo de imperialismo, o da doença ligada à miséria e ao estigma.
Papel do Brasil – Inquietação também como futuro da África, vítima de nova onda mundial de preconceito, na esteira do Ebola e outros fatores. “O Ebola não pode ser motivo para alimentar a xenofobia”, adverte a cineasta.
Para ela o Brasil, por sua ligação histórica com a África e presença cada vez maior no continente, tem um grande papel no futuro hemisférico. O Brasil é parceiro de Moçambique, acaba de enviar para este país, por exemplo, uma máquina para produzir antirretrovirais (a única na África).
Mas Isabel lamenta que a imagem brasileira tenha sido afetada, em parte, por mudanças econômicas e geopolíticas nos últimos anos. “As festas durante os períodos mais críticos tinham muita música brasileira, muitos intelectuais brasileiros foram para Moçambique durante a ditadura, nós líamos os ´Subterrâneos da Liberdade´ de Jorge Amado com voracidade, a feijoada é muito conhecida”, lembra a cineasta.
Mas hoje essa imagem positiva mudou um pouco, ela nota, pela forte presença de empresas brasileiras no país e no continente, com uma postura agressiva de exploração, principalmente na área da mineração, apontando para uma espécie de neocolonialismo.
O racismo é um dos grandes males do século 21, entende Isabel Noronha. É neste panorama que ela defende uma postura cada vez mais vibrante e de liderança do Brasil contra a intolerância e a favor da cultura da paz e da diversidade.
Em Campinas, desejando o melhor para o seu sofrido país, e também para o Brasil onde vive no momento, com saudade do marido e da família, Isabel Noronha continua projetando sonhos.
Gostei imenso de ler o artigo sobre Moçambique pós Independência e relato do percurso de Isabel Noronha. A experiência que aqui relatou é verdadeira e preocupante, se o desenvolvimento do Brasil foi travado pelos avanços neoliberais ajudados por uma “esquerda” que ignorou o povo brasileiro e governou o Brasil durante 13 anos com o enriquecimentos dos seus dirigentes sem servir ou se preocupar com a causa pública, o caso de África e concretamente Moçambique ainda é mais gritante, bem relatado aqui por Isabel Noronha de modo isento e real o que não é hábito ( infelizmente), hoje em dia.
Aqui fica o meu desejo de sucesso à Isabel nesse seu esforço para ajudar o seu país, salientando as suas últimas palavras e preocupação ao afirmar ” O Brasil tem um papel importante em África, mas deve ter cuidado com a sua postura Neocolonial ” referindo-se às mineradoras e ao modo como têm actuado em Moçambique. A este respeito saliento o facto de o Brasil ainda lutar pela sua procura de identidade, e que a consciência política e desenvolvimento deste gigante está longe de chegar a muitas áreas do seu território, nomeadamente o Norte e Nordeste do Brasil. Foi agradável poder ler e tomar contacto com a realidade de Moçambique espelhada nas palavras de Isabel Noronha.