Por José Pedro Martins
O Lar dos Velhinhos de Campinas tem 84 usuários, com uma idade média de 82 anos, superior à expectativa de vida do brasileiro, atualmente de 75 anos, 5 meses e 26 dias, no último levantamento do IBGE. Garantir qualidade de vida efetiva para uma população em constante envelhecimento é um dos grandes desafios coletivos para as próximas décadas, o que apenas pode ser concretizado com um novo modelo de desenvolvimento. Esta é uma das mensagens que está transmitindo a primeira edição da Mostra Mais Sustentável, que foi aberta ao público na última quinta-feira, 7 de setembro, na instituição que tem 113 anos de serviços prestados à cidade e região. Fruto da maior iniciativa voluntária do ano em Campinas, a Mostra está comprovando que os conceitos da sustentabilidade estão reinventando paradigmas na arquitetura e motivando inovações por parte dos profissionais do setor, designers e decoradores incluídos.
A IDEIA – A idealização da Mostra Mais Sustentável foi de Fernando Caparica, um engenheiro eletricista com MBA em construções sustentáveis, cellista e empreendedor. Ele já participou como voluntário em ações humanitárias no nordeste brasileiro e em áreas rurais da Uganda, mas o insight para a realização da Mostra Mais Sustentável veio quando frequentou evento semelhante em shopping center. Eram espaços modernamente planejados, com objetos sofisticados em sua composição, mas que foram todos desativados quando o evento terminou. “Não ficou nada de legado, isso é o contrário do que estipula a sustentabilidade”, comenta Caparica.
Foi então que se aliou a uma das pioneiras em questões ambientais no Brasil, a educadora Lavínia Martins Aires, educadora formada pela Unicamp, membro fundadora de organizações como Oikos e Fundação SOS Mata Atlântica. Com uma alma mobilizadora nata, Lavínia assumiu logo o desafio. Juntos, Caparica e ela passaram a convidar arquitetos, designers e decoradores, para avaliar a receptividade à ideia, que foi positiva de imediato.
Passou-se em seguida à escolha da instituição que receberia a primeira Mostra Mais Sustentável e a decisão recaiu sobre o Lar dos Velhinhos. A organização fundada como Asilo dos Inválidos ou dos Mendigos, em 1905, com o tempo passou a se dedicar a acolher idosos em sua maioria. Em 1972 o Asilo foi assim rebatizado, como Lar dos Velhinhos.
A instituição sempre dependeu muito do apoio comunitário para o seu funcionamento. Em 5 de junho de 2016, foi uma das mais atingidas pelo mini-tornado que passou por Campinas e fez bastante estrago – evento climático que, tudo indica, pode estar associado ao aquecimento global, justamente um dos dramas que o planeta precisa enfrentar com urgência, com um novo estilo de vida e um outro modelo de desenvolvimento e crescimento urbano, de fato sustentável.
O Lar dos Velhinhos reunia, desta maneira, todas as credenciais para receber a Mostra Mais Sustentável, e foi o que aconteceu. Mais de 200 profissionais se envolveram, desde abril, entre arquitetos, engenheiros, designers, decoradores e muitos estudantes, que aliás tiveram papel fundamental no processo. “A ideia era promover uma Mostra que deixasse um legado para o Lar dos Velhinhos. Esse projeto animou todo esse pessoal”, comenta Fernando Caparica, que não esconde a emoção ao ver a ação conjunta concretizada. “Foi uma honra para nós, uma grande ação da sociedade para a instituição”, afirma o presidente do Lar, Mauro Calais.
A TRANSFORMAÇÃO – Além do coletivo de profissionais, a Mostra Mais Sustentável contou, para a sua materialização, com o apoio de mais de 30 empresas e instituições, incluindo secretarias municipais da Prefeitura de Campinas (como a Secretaria do Verde, Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável), Fundação FEAC, Conselho de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo (CAU), Instituto de Arquitetos do Brasil (Núcleo Regional Campinas), Campinas e Região Convention & Visitors Bureau e e Consórcio Intermunicipal das Bacias dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (Consórcio PCJ). As empresas participaram de doações, como a ENGIE Solar, que contribuiu com um sistema de energia solar fotovoltaico, um dos componentes do legado da Mostra para o Lar dos Velhinhos. A Construtora Nadir dos Santos foi determinante para viabilizar o projeto.
Papel importante teve, igualmente, o Escritório Modelo de Arquitetura e Urbanismo A4, da Universidade São Francisco (USF), campus de Campinas. Como explica a professora Renata Góes, orientadora do Escritório, o objetivo do A4 é exatamente proporcionar atividades práticas aos alunos, por meio de projetos que contribuam com instituições sem fins lucrativos, como o Lar dos Velhinhos. “Foi um prazer e uma grande responsabilidade para a Universidade São Francisco contribuir com essa Mostra, que espelha um novo patamar alcançado pela arquitetura e em benefício de instituição tão importante”, destaca o reitor Joel Alves de Sousa Júnior. “Projetos com esse perfil são muito bons como campos de estágio e de inovações”, ele completa.
Gisele Stocco foi uma das alunas do Escritório Modelo A4, da USF, que participaram do projeto, abrangendo entre outros itens a setorização dos espaços do edifício que foi o foco da ação dos arquitetos e demais profissionais envolvidos. Era uma construção que servia mais ou menos como depósito e passou por grande metamorfose, para abrigar toda a área administrativa do Lar, deixando os espaços antes ocupados por ela para as atividades-fim da instituição. “É muito bom participar de um trabalho concreto de nossa profissão, ajudando a comunidade e ao mesmo tempo pensando no planeta e nas próximas gerações”, diz Gisele, resumindo a essência da Mostra. O Escritório Modelo também planejou o pós-Mostra, como serão usados os espaços requalificados.
OS AMBIENTES – E na lógica da Mostra, todo o material de entulho das obras de remodelação foi utilizado na pavimentação de uma rua interna, antigo sonho do Lar. Água de reuso, destinação correta de resíduos e acessibilidade total, utilização de material e mão-de-obra local, outros componentes essenciais em um projeto de sustentabilidade, foram observados.
Novo edifício preparado, 32 arquitetos e outros profissionais prepararam seus ambientes para a primeira Mostra Mais Sustentável. Logo na chegada, a bilheteria foi concebida por Fábio Tarossi e o mural do grafite, por Biel Siqueira. Por sua vez, o espaço de convivência, que permanecerá no final do evento e emprega, entre outros materiais, o bambu que existe há anos na instituição, é assinado por Sônia Stecca e José Carlos Gabrielli. O palco, por Isabella de la Volpe.
O jardim e fachada do espaço administrativo foram obra coletiva, de Ana Tayra Schwartzmann, Helena Overmeer, Marília Ferraz Ribeiro e Matheus Mehler, que também estiveram juntos no desenho do alpendre e galeria. O estar corporativo é de Marcela Mendes. A sala de reuniões, de Adriano Stancati e Daniele Gaurdini. O coworking, de Desirée Garcia e Erlon Tessari, igualmente assinando a sala da presidência.
Os banheiros do escritório têm a concepção de João Rangel Crissiuma e Stella Crissiuma. A área de dinâmica de grupos, de Trinity Projetos (Felipe Niiya, Katia Costa Rocha, Mariana Niiya). A Sala de Imprensa do Vovô e da Vovó, de Julia Rodrigues. O Living, de Otto Félix, um dos grandes entusiastas e primeiros incentivadores da Mostra. O acolhedor Café da Vovó, de Carolina Stevanatto, Kelen Polano e Lydia Bonini. Bem ao lado, os banheiros do café, por Mariana Oliveira.
E seguem os ambientes. A lavanderia, por Gabriela Soldera e Vitor Bonduki. A sala de jantar, por Álida Weidman e Erica Gonçalves. O home theater, por Aline Alves e Darci Vanucci. O quarto das avós, por Isabele Lattaro. O quarto dos netos, por Michelle Moreira. A área de estar com amigos, pela FKSA: Ana Maria Coelho, Felipe Karam e Selma Rubim.
Dois banheiros diferenciados foram concebidos: o acessível, por Daniel Gouvêa e Flávia Gouvêa; o verde, por Fábio Zanelatto e Marlene Weissberg. O quarto de hóspedes leva a assinatura de Bruna França e Fernanda Danelli. O ateliê dos avós, de Beatriz Nakamura, Camila Figueiredo e Sayuri Fukuoka. O ambiente de música e bar, de Caio Ghizzi e Fernando Consoni.
E finalizando, o espaço de estar com jogos é de Maxwell Geraldi. A varanda de saída, de Lourdes Abbade. O tech lounge, de Juliana Le Grazie. Na área externa, a praça da Mostra é de Alexandre Galhego.
Tem mais dois, que sintetizam o sentido da Mostra Mais Sustentável. A biblioteca, que guarda os saberes letrados da humanidade, espaço sagrado do conhecimento, leva a assinatura de Eduardo Mestriner e Raphael Calais. Dois jovens arquitetos, que se preocuparam muito em não deixar resíduos. A biblioteca foi projetada em módulos, de fácil transporte quando necessário. “A economia de materiais é cada vez mais importante”, diz Eduardo. “A sustentabilidade tem sim futuro, ela é vital”, completa Raphael, que destaca a contribuição de Vagner Mariano, da MRP, para a concretização do projeto.
Ambiente contíguo, o staff lounge é assinado por Greice Souza e Patrícia Andrade, que usaram iluminação led, madeira de reflorestamento e tinta não-tóxica, entre outros elementos afinados com a sustentabilidade e a biofilia. “É trazer o externo para o interno, de uma maneira leve”, explica Greice. Patrícia lembra de dois objetos especiais que integram o ambiente, um livro-mesa (ideia que veio do Oriente, onde às vezes há muita gente para pouco espaço) e uma bicicleta que, movendo-se, gera energia. A cara de novos tempos, no Lar dos Velhinhos de Campinas.
O QUE É SUSTENTABILIDADE – O marco histórico da sustentabilidade é a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Eco-92 ou Rio-92, de junho de 1992, no Rio de Janeiro. Dela se propagou o conceito de desenvolvimento sustentável, alicerçado no tripé economia, meio ambiente e sociedade.
Mas os conceitos hoje denominados sustentáveis já estão presentes há tempos na arquitetura. São muitos exemplos, mas basta citar Ebenezer Howard (1850-1928), um dos sonhadores do urbanismo anarquista, que inspirou movimentos como o da Cidade Jardim (exemplificada em projetos como de New Earswick, Letchworth, Hampstead, Welwyn Garden City e uma parte de Manchester, na Inglaterra) e o do Planejamento Regional, estimulado sobretudo por Patrick Geddes (1854-1932).
O ideário de Geddes é muito marcado pela preocupação com os limites dos recursos naturais de uma área que seria urbanizada, bem de acordo com o que defende o ecologismo contemporâneo. “O planejamento deve começar, segundo Geddes, com o levantamento dos recursos de uma determinada região natural, das respostas que o homem dá a ela e das complexidades resultantes da paisagem cultural”, cita Peter Hall, no monumental Cidades do Amanhã, Editora Perspectiva, São Paulo, 2002,, página 165).
Mas foi a partir da Eco-92 que os conceitos vêm se consolidando, inclusive para proliferação de notícias ruins dando conta da devastação ambiental resultante de um desenvolvimento e crescimento urbano desordenados. E assim, paulatinamente, a sustentabilidade se enraiza na arquitetura. Projetos com esse perfil estão espalhados pelo planeta.
Observadora e militante há tempos nesse território, Lavínia Martins Aires, como outros do setor, entende porém que o ideal da sustentabilidade deve ir além para prosperar. “É importante, fundamental, a dimensão espiritual, que não se limita a esta ou aquela religião. Mas da espiritualização, de ver a vida além do material, de valorizar a cultura, o bem estar, coisas intangíveis e essenciais”, define.
Pois a Mostra Mais Sustentável sinaliza que o universo espiritual, da cultura, mais e mais envolve e seduz o complexo terreno da sustentabilidade. Os emblemas mais claros são as duas esculturas assinadas por Ricardo Cruzeiro, o artista plástico que entre outras de sua vasta obra concebeu os Epicuristas, que podem ser apreciados nos jardins do Museu de Arte Contemporânea de Campinas (MACC).
Cruzeiro levou para o Lar dos Velhinhos “Florânima” e “O Céu e a Terra”. Florânima, ele mesmo explica, é a “união de Flora, Animal e/ou Ânima (alma). É um totem de personificação e reverência aos reinos vegetal e animal”. Já “O Céu e a Terra”, que vai permanecer na instituição quando terminar a Mostra, como mais um legado do evento, é uma escultura em alumínio de ferro-velho com pátina inspirada nas tonalidades de cores encontradas na oxidação do bronze.
A escultura é uma mescla de ave com serpente. No relato de Cruzeiro: “Pássaro em grego significa mensagem do céu. Para os taoistas representa a leveza, a liberação do peso da matéria. Para os brâmanes significa a alma liberta do corpo. Órus, o falcão egípcio, era o próprio Deus Sol. Na maioria das culturas sua simbologia está ligada à pureza do mundo espiritual. Em oposição à ave, representando o mundo terrestre, temos a simbologia da serpente ou o mundo material. A serpente é associada à matéria encarnada, ou seja, a vida fisiológica com seus processos instintivos”.
Em poucas palavras, na poesia esculpida de Ricardo Cruzeiro, terra, fogo, água e ar, os ingredientes básicos da vida, o horizonte perfeito da sustentabilidade, ainda um ideário em construção e muito longe de ser seguido e aplicado com a magnitude que as urgências do planeta demandam.
A Mostra Mais Sustentável permanece até 12 de outubro no Lar dos Velhinhos de Campinas, rua Irmã Maria Santa Paula Terrier, 300, Vila Proost de Souza. De quarta a sexta, das 14 às 20 horas, e sábado e domingo, das 12 às 20 horas. Os ingressos custam R$ 32,00 inteira e R$ 16,00, meia. Do Shopping Unimart, nos finais de semana, haverá traslado gratuito com ônibus elétrico, mais desconto de R$ 4,00 para quem usar este transporte gratuito.
A LIÇÃO QUE VEM DA CULTURA
A sustentabilidade não pode se limitar a questões tecnológicas, meramente científicas. É algo mais, deve transcender objetos, materiais, conceitos em voga, que podem se tornar apenas modismos. Essa lição fica evidente no discurso da arquiteta homenageada pela Mostra Mais Sustentável, Nora Tausz Rónai.
A sua biografia é ela mesma um exemplo de resistência e superação. Nascida em Fiume, então na Itália, hoje território da Croácia, a 29 de fevereiro de 1925, Nora conviveu na infância com os horrores do fascismo de Benito Mussolini.
Membro de uma família judia, foi proibida de frequentar a escola. Para fugir da barbárie nazista, ela e família fugiram para o Rio de Janeiro. No Brasil, casou-se com o escritor, filólogo e tradutor Paulo Ronái, com quem teve duas filhas, a crítica e musicista Laura e a jornalista Cora Rónai.
Com esse background, Nora Ronái tornou-se uma arquiteta diferenciada, muito preocupada com as questões da cultura e do espírito. E assim que ela entende ser a sustentabilidade também um resgate, um repensar sobre a concepção e execução de um projeto.
Ela cita o caso do pé-direito alto, na sua opinião um emblema, com seus 4 ou mais metros, de preocupação com a ventilação e o bem estar no ambiente interior. Por questões de ordem econômica, para não dizer de preocupação excessiva com os lucros, o pé-direito foi diminuindo, diminuindo, até os atuais 2,6, 2,4 metros. “Para que alguém lucrasse mais, o pé-direito diminuiu, a ventilação também, e com isso passou-se a usar ar condicionado, com muito uso de energia”, lamenta a arquiteta.
Nesse sentido, se a sustentabilidade é inovação, também pode ser retorno a algumas técnicas que transpiravam sabedoria. Nora Rónai é um emblema de como a vida pode ser intensa, rica, muito bem vivida, apesar de todos obstáculos que ela inevitavelmente apresenta a todos.
Aos 93 anos, continua muito ativa e produtiva. Em agosto de 2014, ela espantou o universo esportivo ao ganhar seis medalhas de ouro de natação no Campeonato Mundial de Masters no Canadá. Continua nadando e escrevendo livros. Mais do que isso, ela tem escrito páginas de esperança. .
Mais sobre sustentabilidade:
“O ponto de mutação”, de Fritjof Capra, Cultrix, São Paulo, 1991
“Ecologia Cotidiana: Como transformar nuestra miopía depredadora en acto de reverencia por la vida”, de Miguel Grinberg, Editora Planeta, 1994
“Agenda 21 Local para uma Ecocivilização”, de José Pedro S.Martins, Editora Komedi, Campinas, 2005
“Terra Cantata – Uma história da sustentabilidade”, de José Pedro S.Martins, Editora Komedi, Campinas, 2007