Por José Pedro Soares Martins
Campinas, 20 de junho de 2018
Um método alternativo, desenvolvido na Universidade Federal do Ceará (UFC), para tratar lesões provocadas pela doença. Descobertas feitas por pesquisadores da Universidade Federal do Pará (UFPA) e Universidade do Estado do Pará (UEPA), durante estudo na região de Tucuruí. Um novo instrumental para a detecção em menos de cinco minutos da enfermidade, construído na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Estas são apenas algumas das realizações recentes de universidades brasileiras, direcionadas para o tratamento e prevenção da hanseníase, um dos maiores desafios em saúde pública no país. O Brasil é o segundo no ranking global de casos de hanseníase, atrás apenas da Índia, o que é um claro indicador de como o país tem sérias barreiras a superar em distribuição de renda e universalização do saneamento. A hanseníase é doença infectocontagiosa e o agente etiológico é o bacilo Mycobacterium leprae (M. Leprae).
Neste cenário, as universidades têm-se tornado protagonistas centrais das estratégias voltadas para o controle da hanseníase em território brasileiro. Nas cinco grandes regiões geográficas estão em curso pesquisas, estudos e projetos implementados na esfera do ensino superior, relacionados a essa que é uma das Doenças Tropicais Negligenciadas, conforme classificação da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Números em queda, mas ainda assustam – O número de casos novos de hanseníase declinou no Brasil, de 50,5 mil em 2004 para 31 mil em 2014 e 25,2 mil casos em 2016, segundo o Ministério da Saúde. Contudo, o Brasil soma 11,6% de casos da doença, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), o que ratifica uma situação que continua assustadora. E “ainda existe uma demanda oculta, indicada por fatores como os casos em crianças”, sustenta Artur Custódio, membro da coordenação nacional do Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan).
Com efeito, foram diagnosticados em 2016 casos novos de hanseníase em 2.885 municípios brasileiros, conforme dados do Sistema Único de Saúde (SUS). Em 591 desses municípios foram diagnosticados casos em menores de 15 anos, apontando a existência de focos de infecção ativos e transmissão recente.
O membro da coordenação nacional do Morhan observa que nas áreas onde foi aprimorado o sistema de detecção, aumentou o número de casos identificados, confirmando a ocorrência da demanda oculta. Ele cita o exemplo de Palmas, capital do Tocantins, onde é implementado desde 2016 o Programa Palmas Livre de Hanseníase. No contexto do Programa, houve uma sólida capacitação dos profissionais da Atenção Primária à Saúde que atuam no município e o resultado foi a melhoria da identificação precoce de casos novos.
A média anual era de identificação, até 2015, de 157 casos. Em 2016, com a entrada em vigor do Programa e suas estratégias, foram detectados 613 casos novos. “A hanseníase continua invisível para a sociedade. Apenas com maior conhecimento sobre a doença e pressão social, haverá uma maior mobilização do setor público e privado”, completa o membro da coordenação nacional do Morhan, que ressalta o papel essencial das universidades na produção e difusão de conhecimento sobre a enfermidade, também na proposição de ações para controle e prevenção.
A OMS lançou em 2016 a Estratégia Global para a Hanseníase 2016-2020 (aqui), fundamentada nos três pilares: fortalecer o controle, a coordenação e as parcerias do governo; combater a hanseníase e suas complicações; enfrentar a discriminação e promover a inclusão. A Estratégia evidencia, igualmente, a centralidade do setor universitário nos programas e projetos direcionados para a hanseníase.
Na Estratégia, a OMS lamenta haver “uma apatia pública tangível com relação à hanseníase, que luta para se manter como prioridade na agenda política dos países. Há também ausência generalizada de uma conduta abrangente de combate à doença, que demanda colaboração entre diferentes ministérios e às vezes entre países”.
Paraísos tropicais, inferno para os portadores de hanseníase – Amazônia e Pantanal são lembrados de forma recorrente, na mídia brasileira e internacional, pelas suas exuberantes características naturais. São verdadeiros paraísos em biodiversidade e recursos hídricos. Entretanto, justamente as regiões Norte e Centro-Oeste são aquelas de maior incidência de hanseníase, o que as configura como um inferno para os portadores da doença. São 30 casos por 100.000 habitantes no Centro-Oeste e 29/100.000 na Região Norte, seguidas do Nordeste (19), Sudeste (4) e Sul (3/100.000), segundo a OMS e Ministério da Saúde. Nessas regiões é fundamental o papel das universidades como produtoras de conhecimento e de propostas de ação sobre a enfermidade.
É o caso de um estudo realizado na microrregião de Tucuruí, pelos pesquisadores Leandro Araújo Costa, da Universidade Federal do Pará (UFPA), Cláudio Joaquim Borba Pinheiro e Silvio Henrique dos Reis Júnior, da Universidade do Estado do Pará, em parceria com Juliana Henrique dos Reis, do Centro Universitário Estácio do Ceará (estudo aqui).
O conjunto de pesquisadores analisou o perfil epidemiológico da hanseníase na microrregião de Tucuruí, no Pará, entre 2010 a 2014. Naquele período foram notificados 1.786 casos na microrregião, o que a colocou na segunda posição em notificações no estado e em terceiro na Região Norte. No ano de 2010 foram 95,53 casos por 100 mil habitantes.
Um dos dados mais preocupantes, apurados no levantamento, feito a partir de pesquisas de campo e no Sistema de Informação de Agravos de Notificação, foi o registro de 214 casos em menores de 15 anos de idade no período estudado, correspondendo a 12% do total. Para os pesquisadores, os dados indicaram que a região de Tucuruí permanecia no perfil de hiperendemicidade, com muitos casos entre menores de 15 anos e também de incapacidade, demonstrando o “descontrole da doença na região”.
O Dr.Leandro Araújo Costa, da UFPA, conta como se interessou pela temática da hanseníase: “A princípio, quando ainda acadêmico de enfermagem da Universidade do Estado do Pará, em uma atividade acadêmica semestral, tive o primeiro contato com o tema, e a partir de algumas leituras iniciais, percebi que ainda se tratava de um problema real no país. Então decidi por investigar como estava a situação da doença na região em que eu morava, e comecei minhas pesquisas a partir dos dados do Sistema Nacional de Agravos de Notificações”.
Para o especialista, a busca ativa a respeito da hanseníase “tem sido bastante eficaz nos últimos anos, o que em parte é responsável pelo aumento nas notificações”. Entretanto, ele afirma perceber que “ainda há uma cultura muito intensa em abandonos de tratamento, baixos índices de educação, além de fatores sociais e econômicos que são peças do quebra-cabeça da transmissão e desenvolvimento da doença”.
No Centro-Oeste, onde se destaca a abundância de vida no Pantanal, e onde está a maior incidência da hanseníase, a situação é igualmente grave. Como demonstrou o caso de uma criança de 11 anos, Daniel Rodrigues Santiago, que morreu em Sorriso (MT), no primeiro dia de 2018, de hanseníase multibacilar. O Mato Grosso somou 2.658 casos novos em 2016, sendo o estado líder em notificação.
Também na região as universidades estão atentas e executando pesquisas sobre a enfermidade. É o caso de um estudo conduzido pela coordenadora do curso de Medicina da Universidade Estadual de Mato Grosso (Unemat), Denise Cortela, que apontou ser fundamental, no tratamento dos pacientes com hanseníase ou curados, o acompanhamento odontológico. Se o portador tiver problemas dentais, o quadro clínico pode ser muito agravado, concluiu o estudo.
A pesquisa coordenada pela professora Denise Cortela já virou política pública. Em fevereiro de 2016 o Ministério da Saúde editou a Portaria 149/2016, estabelecendo “Diretrizes para Vigilância, Atenção e Eliminação da Hanseníase como Problema de Saúde Pública, com a finalidade de orientar os gestores e os profissionais dos serviços de saúde”. Entre as Diretrizes está a indicação de que os pacientes com hanseníase devem ser encaminhados pelos profissionais de saúde para tratamento bucal.
Tratamento inovador – No Nordeste, terceira região brasileira com maior prevalência de hanseníase, universidades também estão promovendo pesquisas e ações sobre a doença. Um exemplo é o estudo divulgado em março de 2018, do Grupo de Pesquisa “Biotecnologia Molecular de Látex Vegetal” da Universidade Federal do Ceará, liderado pelo Dr.Márcio Ramos, do Programa de Pós-Graduação em Bioquímica. O trabalho evoluiu para o desenvolvimento de uma biomembrana, confeccionada com proteínas vegetais de alta capacidade de cicatrização e que demonstrou ótimos resultados no tratamento de lesões em plantas do pé de pacientes.
O professor Dr.Márcio Ramos explica que a pesquisa para o tratamento de feridas plantares em pacientes pós-hansênicos é conduzida pelas equipes da professora Dra.Nylane Maria Nunes de Alencar, do Programa de Pós-Graduação em Fisiologia e Farmacologia, a sua própria equipe, do Programa de Pós-Graduação em Bioquímica, ambos da UFC. “Este grupo ainda inclui vários outros laboratórios e seus pesquisadores líderes locais e envolve outras instituições”, observa o Dr.Ramos.
Ele nota que a pesquisa com hanseníase envolve ainda o Centro de Dermatologia Dona Libânia, unidade de saúde pública do Estado do Ceará, onde os pacientes com a doença e suas complicações recebem atendimento. A médica dermatologista Dra.Maria Araci Pontes Aires é a responsável por todos os procedimentos realizados nos pacientes. “Na Bioquímica realizamos o estudo molecular da matéria prima utilizada para produzir a biomembrana. Na farmacologia a biomembrana é confeccionada. No Dona Libânia a biomembrana é aplicada nos curativos dos pacientes e todo o acompanhamento é realizado”, resume o professor da Universidade Federal do Ceará.
O Dr.Márcio Ramos responde à indagação sobre quais áreas deveriam receber maior atenção e investimentos em pesquisa sobre hanseníase, considerando a realidade brasileira e sobretudo a nordestina: “Dentro de um universo complexo e multifatorial nos quais os problemas de saúde persistem na população brasileira, está a ausência de uma política de Estado contínua que possa definir prioridades e garantir financiamento mínimo para que as ações não sejam descontinuadas, os resultados perdidos e as equipes mudarem seus focos de trabalho”.
Diagnóstico rápido para hanseníase – Muitos estudos e pesquisas em hanseníase também têm sido realizados no âmbito das universidades do Sudeste e Sul, regiões brasileiras com menor incidência da doença, mas nas quais o número de pacientes continua elevado. Um método barato, rápido e indolor para a detecção da hanseníase foi por exemplo desenvolvido pela biomédica Estela de Oliveira Lima, no Laboratório Innovare Biomarcadores da Unicamp, em Campinas (SP).
Orientado pelo professor Rodrigo Ramos Catharino, o trabalho da biomédica resultou no desenvolvimento de método envolvendo a colocação de uma plaqueta de sílica de 1 centímetro quadrado sobre a pele da pessoa que se submeterá ao teste. Após o período de um minuto, suficiente para a absorção, pela plaqueta, das substâncias com as quais ela entra em contato, o material é inserido em um tubo com metanol. No tubo as substâncias que foram absorvidas acabam sendo dissolvidas. Em seguida o líquido resultante é levado para análise em um espectômetro de massas de alta resolução. No aparelho podem ser rapidamente identificadas as moléculas presentes.
O teste foi aplicado em dois grupos, um de indivíduos saudáveis e outro composto por portadores de hanseníase em estado avançado. As moléculas identificadas no material coletado dos indivíduos doentes apresentaram padrões de morte celular e resposta inflamatória. Foram identificadas ainda duas moléculas específicas do bacilo Mycobacterium leprae, o agente etiológico da doença. Os pesquisadores já estão trabalhando em etapas mais avançadas, para verificar a validação da metodologia em todas as manifestações da hanseníase.
Na Região Sul, é menor a incidência da hanseníase, mas também são múltiplos os estudos e pesquisas sobre a doença. Na Universidade Federal de Santa Catarina, é rico o acervo de teses com vários aspectos relacionados à enfermidade.
Já em 2008, por exemplo, Patrícia Vieira Martins defendeu a dissertação de mestrado “Hanseníase, exclusão e preconceito: histórias de vida de mulheres em Santa Catarina”, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública (aqui). No trabalho, ela relatou “um pouco da atuação no combate à doença e as articulações realizadas em torno de hospitais de isolamento, especificamente no Hospital/Colônia Santa Teresa, localizado em São Pedro de Alcântara, Santa Catarina”. Como conseqüência desse tratamento “excludente” ao longo dos anos, destacou Patrícia Vieira Martins, “foi construído um certo repúdio em torno da doença, o que acarretou um profundo estigma social ao mais simples contato e às suas possíveis conseqüências, uma vez que o doente, na maioria das vezes, apresentava deformidades ou lesões ulcerantes”.
Perspectivas futuras – A narrativa é a mesma em relação a essa doença bíblica, hoje considerada como uma doença negligenciada, que continua trazendo dor e preconceito para milhares de brasileiros. As universidades prosseguem, na atualidade, o trabalho de pioneiros como o Dr.Reynaldo Quagliato, que trabalhou durante anos na Unicamp e hoje dá nome a importante Centro de Estudos localizado em Bauru, também no interior paulista.
O trabalho de pessoas como a professora Denise Cortela, da Unemat, já resultou em política pública. Mas nem sempre é assim em relação às pesquisas feitas em universidades brasileiras sobre a hanseníase.
Para o Dr.Márcio Ramos, da Universidade Federal do Ceará, “as melhores pesquisas brasileiras ainda predominam no interior das universidades. É preciso que a sociedade desperte interesse para as universidades para entender melhor como o ensino e a pesquisa delas impacta sobre a vida social de todos nós”.
O líder do Grupo de Pesquisa “Biotecnologia Molecular de Látex Vegetal” da UFC entende que as Universidades e suas atividades “estão irradiadas em toda a sociedade, mas isto não recebe, por parte dos setores de divulgação, o devido mérito. Neste ponto eu interpreto que as mídias formalizadas deveriam contribuir para engrandecer o conhecimento e o mérito dele para uma sociedade”, pede o professor.
A presença e importância das universidades nas ações de prevenção, controle, tratamento e, por que não, erradicação da hanseníase continuarão centrais nos próximos anos. É o que estipula a própria Estratégia Global para Hanseníase, da OMS. “A pesquisa básica destinada a estudar a transmissão da hanseníase e desenvolver novas ferramentas de diagnóstico, os esquemas profiláticos e as novas pesquisas terapêuticas e operacionais com participação de todos os parceiros para identificar estratégias de implementação e intervenções inovadoras devem receber sólido apoio”, defende a OMS.
“Novas ferramentas, com uso de e-learning (aprendizagem eletrônica) e telemedicina, também serão exploradas sempre que pertinentes e disponíveis”, prevê a Organização Mundial da Saúde. A OMS também pede que os currículos das escolas de enfermagem e medicina, assim como os currículos educacionais, incluam a hanseníase “para gerar uma conscientização mínima dos trabalhadores da saúde, inclusive nos países de baixa endemicidade”. O Brasil pode avançar muito mais, sempre com o apoio fundamental das universidades.