Por Rafa Carvalho
Neste texto, a ousadia de um lançamento de disco, de música, no formato de texto. Delineio um pouco das margens deste projeto, que vão se espraiando num mar a encher aos poucos, com partilha, sentimento, informação, canções do disco em si. E muito mais. Num horizonte, a perder de vista.
02/02/2020. Escolhi esta data (e ela também me escolhia) para o lançamento do meu primeiro disco. Meu único vacilo, foi imaginar que este seria um “lançamento convencional”. Aparentemente nada, ou muito pouca coisa, foi convencional em minha vida. E isto não tem a ver com sentir-se extraordinário, mas sim, estranho. Esquisito (uma de minhas palavras favoritas no português).
Na primeira vez que consultei um certo oráculo, a minha sorte disse: Forasteiro. E no fundo é como sempre me senti. Se me senti em casa por todas as partes do mundo em que passei até hoje, havia ainda o tempo todo, e mesmo assim, a sensação de estar um tanto “fora”. Acho que vem daí o meu fascínio pela vida maruja. Meu amor marinheiro. Que se deu muito bem também, naturalmente, com essa minha fixação pelo mar.
Vista ou largue seu colete: nós vamos navegar.
Para ser poeta e tranquilo, precisei desmontar a língua. E remontá-la mais solta. De novo. Veio daí minha coisa concreta, pra muitos ingênua (e eu penso que sim: renascer exige infância, quando tudo é fresco, puro e novidade), de testar as palavras. Um exercício que desaguou em “auto-mar”, meu primeiro livro, lançado pela Patuá em 2016, aqui no Brasil e em Angola.
Uma observação: cresci muito fora, também, do materialismo em algum sentido. Realizar coisas, assim na prática, foi bastante difícil pra mim. É como se tudo “tivesse demorado demais”. Uma lentidão que me continha. E que ainda contém, até tal ponto. “auto-mar” assim nasceu como um jorro, um livro-delírio como gosto de dizer. Um relicário singelo onde guardei experimentos tais: serei-o, all mirante, m’olhar e contra-atraque; mais minha funda relação com o mar.
E sim. Tanto a relação marinha, quanto o artesanato dos termos, vinham de antes. Eu colecionava palavras d’água. E foi assim que surgiu “nau frágil”.
Outra observação: lá em meados da década de dez, enquanto eu ainda ensaiava lançar meu projeto musical, este “nau frágil”, a pessoa e artista maravilhosa Thiago Cohen lançava já um projeto artístico homônimo. Fiquei encantado pela sincronia. Conversamos e sinto que lidamos bem com a partilha da idéia. De lá pra cá, vi mais páginas nascerem com este nome, perfis nas redes e ainda canções, versos de poemas. Aqui por Campinas vi uma peça de teatro e um corpo tatuado, pelo menos. Da mesma forma que um tempo depois de lançar meu “auto-mar” em livro, vi um show alheio emergindo e batizado igual. Enfim…
O que eu sinto, por mim, é que não quero ser reconhecido como “o inventor” de nada. Tudo já estava aí, no vento da existência. E ainda está. Por alguma razão, as coisas nos chegam, conforme as rotas que trilhamos. A fotografia foi “inventada” simultaneamente em dois pontos distantes do mundo, numa era bem pré-internet etc. A linguagem e as línguas estão aí. As palavras, as regras (seja pra serem mantidas, seja para quebrá-las) também. No caso de Thiago, sinto-nos tão irmãos que não me surpreendo em nada com uma “coincidência” dessas. Já nas outras ocorrências não sei. Não me preocupo em saber. Certamente há oportunismos, as apropriações injustas, às vezes. Mas não sou eu quem vai julgar. Cada caso vai ser sempre um caso. E a baliza disso tudo (na minha opinião que não deve contar muito) é a paz que a gente leva no peito, de estar no traço do próprio destino, seja ele qual for. Fico com a sensação de que, se há esta consciência, deitamos à noite muito exaustos e serenos, à cabeça em nosso travesseiro. Por outro lado, quando alguém segue uma rota alheia, que não é a sua, por pura cobiça, esperança falsa, inveja (ou simplesmente por estar perdido) as madrugadas de calma e fôlego manso, demoram bem mais a chegar.
Resta-me contar o que “nau frágil” significa para mim, então. Na vida. E como nome deste projeto.
Para mim, viver: é mar. Tudo nesta Terra veio disso. “nau frágil” nitidamente faz alusão ao ato de naufragar. Mas não fala exatamente isto. Diz antes da fragilidade duma embarcação. Pois bem, para mim, eis o balanço: somos todas como barcos, boiando nossa existência… terrena. À deriva ou à sorte de ventos, marés; como sob a responsabilidade de nossos próprios lemes, remos, velas, âncoras. E somos frágeis. Inegavelmente, somos muito frágeis. Quase como se o naufrágio fosse mesmo nossa tendência máxima… fracassar nessa vida. Só que ao mesmo tempo, há um mistério no íntimo desta oportunidade – como na canção: uma força, estranha, no (m)ar – que de repente se manifesta e reverte todas as previsões pra nós. Algo sobre-humano (e quem sabe também: submarino) que nos sustenta a barquinha em toda a imensidão além. Talvez algo de que derivamos. Quem sabe algo onde ainda devemos chegar. Algo de “fora”. Mas, que estranhamente, vem de dentro. Confuso como a minha sensação de não-lugar. De ser e não ser daqui… marinheiro só.
E hoje eu acredito, mais que nunca, que esta força só se revela maior mesmo, quando assumimos a fragilidade com que estamos vivos. “nau frágil” é isso: um disco feito com quatorze canções, que fui compondo, enquanto a água me compunha. Que traz fragilidades nossas: saudade, apego, morte, paixões, vaidades, ânsias… mas se atraca nessa força e surpreende. Quebra as arrebentações, os quebrantos, aprende… triunfa.
Um trabalho que já leva 6 anos até aqui. Começou em 2014, comigo reunindo canções do mar de lá, do início. E experimentando. A primeira apresentação foi em Goiânia. Num cerrado seco a de repente mil quilômetros da costa mais “vizinha”. Minha primeira emoção: foi tocar ao ar livre, num quintal, sem qualquer preocupação climática com a chuva… e ver chover no meio do som, como fosse o mar nos vindo tocar, de algum jeito à sua benção onde fosse. Logo depois fui pra Cuba. De Cuba à Bahia. E da Bahia à Angola. Pesquisei Brasil, África e Caribe. Nossas polirritmias, os ritmos sagrados e profanos das praias e às regiões ribeirinhas dos países. Seus temas, histórias. Pesquisei lugares, pessoas, costumes. Peneirei em água doce e na salgada. E foram saindo canções. Experimentei formações. Fomos de apresentações solo a duetos, trios, quartetos… até quinze pessoas no palco. Toquei no Rio Grande do Sul. Troquei com o Rio Grande do Norte. Passei pela costa mediterrânea com a barquinha, remando em violões emprestados, meu ocean drum e o tambor do Recife, de tronco escavado, que levei no braço, Itália, Grécia… Turquia.
Fiz um filho. Vi ele dado por morto no ventre. Depois nascer ao Renascença cantando já comigo à Iemanjá e à Oxum. Vi atirarem em mim numa areia marinha do Sergipe. E o tiro à queima-roupa se perdendo alheio. Lancei dois livros, também eles: sobre o mar. Vi Brumadinho padecer do mesmo absurdo que já era em Mariana. Vi o óleo no Atlântico nosso, a terra queimando aqui e bem longe. E tantas outras coisas, que não queria ver.
Enquanto isso, o primeiro batimento cardíaco de meu filho, gravado num telefone celular, me ensinava a encontrar a força que um tambor deve ter. E fui aprendendo… como é ter uma casa. Aprendi um Brasil profundo, minhas raízes, matrizes. Cada pau da minha canoa. E que as pedras viajam, no tempo. Aprendi que não aprendia nada, ainda. Vi tantas coisas que não é preciso falar. Como falo outras, que nem é preciso ver.
Aprendi também um sentido muito mais intenso pra “pirataria”, em música. E logo virei contar mais disto, por aqui. Continuo frágil. Não venci nenhum edital pra gravar o disco. Não tinha um vintém no alforje pra empreitada, que foi sendo feita toda entre improviso, escambo, suspense. Sigo sendo um cantor jovem. Inexperiente. Amador. Um corpo estranho no palco. Com uma imensidão inteira pra aprender.
Tive a sorte de achar, aos trancos e barrancos, uma tripulação musical maravilhosa de que também volto logo pra falar melhor. Vi alguns acontecimentos que eu julgava grandes, passarem lavados na peneira, sem qualquer importância. E vivi a honra da companhia de amizades e as maestrias de gente como meus irmãos Sabuká Kariri-Xocó, Juçara Marçal, Izabel Padovani, Rodrigo Campos, Mauricio Pereira e Toinho Melodia.
Tinha mapa, rota e cronograma. E aí, no comecinho deste ano vinte, acordei um dia sem conseguir sair tão bem da cama. Era o baço, parando de funcionar. Dei conta de que lá se vão nove anos sem férias. “Coincidentemente”, desde quando comecei a trabalhar inteiro com arte; a viver disto (isto tudo porque nós, artistas, não trabalhamos, tá ok?). Dei conta de que vinha negligenciando meu corpo, essa barca. E fazendo as mesmíssimas coisas que eu tanto critiquei nos que vieram antes de mim. Precisei fazer uns tratamentos, de sangue, fígado, rins.
Isso tudo acabou sendo bom. Mas atrasou meu roteiro. Empacou as burocracias de se lançar um disco (ou um single que fosse). E só demonstra mais essa fragilidade nossa a que refiro. No mar, quando fazemos algo, por mais que haja esforço, estratégia e engajamento em nossa parte: é porque o mar nos deixa. O vento, a terra, o céu. Só por isso. E se não deixam, não há mesmo nada que possamos fazer pelo inverso. Bem simples.
Então é isso: este texto é um lançamento. Um lançamento textual de um disco de música. Estranho, é. Mas também, com uma história dessas, como não ser? E que sentido teria ser convencional a partir daqui? É isto mesmo. Eu não podia perder a data. E não perco. O que se lança aqui: é a barca. Ela e toda a sua fragilidade. A música só vem já já. No devir certo do vento. Nas ondas sonoras de uma plataforma digital. Em breve. Embarque…
No começo de tudo, o grande artista cubano Rafael Cáceres expunha parte de seu trabalho em Campinas, quando dei de cara a uma gravura sua, onde um homem atravessava a pé um mar, levando seu barco em suas costas. Chorei ali com o sentido. E depois de poucos meses, fui parar em Cienfuegos, exatamente na oficina deste meu xará, quando conversamos mais e ele me a presenteou pra que fosse uma das capas no projeto. E foi também lá em Cuba, que o Diogo Zacarias, irmão e meu parceiro na viagem, fez este retrato (que não é de costas, mas sim: da costa – seu personagem principal é o mar). A foto foi feita na Ilha de Santa Maria, em sua praia “dos pobres”, a única com livre acesso, que não está cercada às contenções de nenhum resort exclusivo.
(E algo me faz acreditar que: nas praias dos pobres, o mar é mais forte, mais santo).
É a imagem que usei como foto de autor em “auto-mar”. Várias pessoas já me perguntaram, distraídas: “e esta mulher, quem é?”. Gosto disso. Dessas dualidades todas. E é nesse meio que eu quebro a garrafa e disparo de vez o lançamento:
Está lançado o meu “nau frágil” (que não é meu, é nosso). Que não é meu, nem nosso, mas de nossas mães. Está lançado. Como uma rosa branca… ao mar.
E se alguém quiser o mergulho, ao vivo e antes das plataformas, neste sábado, dia 8 de fevereiro, de graça e amplamente livre no Sesc Campinas, a partir das 16h30, estaremos lá: eu, a tripulação e quem mais quiser… embarque.