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COVID ANIVERSÁRIO, VOVÓ!
Vó Irene em sua festa, fotografada por Rafa Carvalho

COVID ANIVERSÁRIO, VOVÓ!

Por Rafa Carvalho

Este texto é publicado hoje, marcando minha retomada à constância semanal desta coluna (que tecnicamente nunca existiu de fato, por causa da poesia e seus contratempos) depois de uma boa licença paternidade. Atualizei o segundo parágrafo para festejar o aniversário de Marcelino Freire, querido amigo, que é realmente hoje. Mas, o texto em si, foi escrito já há alguns dias. Vovó é do início de março e, a comentada festa, deu-se por ali, com o Corona ainda se estabelecendo, antes das medidas mais recentes e todo este estado de quarentena e contenção em que estamos. Eu, contudo, já estava atento aos riscos vindo de além-mar, por conta do acompanhamento, da viagem marcada, das circunstâncias pela Europa e dos eventos, como a Primavera Literária, dos quais eu participaria, todos atualmente cancelados. Boa leitura a todas! E que este momento sirva para nos aproximarmos um pouco mais, das aproximações mais reais entre nós.

Revelado o mistério sobre o novo Corona Vírus.

Marcelino Freire, aliás aniversariante do dia (viva, saúde e alegria, meu amigo!), me ensinou a importância de fisgarmos a leitora já na primeira frase do texto. E por falar em isca, ascendente em peixes, sou cercado de piscianos. Marcelino mesmo, por exemplo. Isto tem aumentado com o tempo. Talvez seja eu ascendendo e alcançando maiores cardumes. Mas este texto não será sobre astrologia, fiquem tranquilas.

Fato é que minha vó Irene fez aniversário esses dias. 84 anos. Vovó foi boia fria, lavadeira, passadeira, empregada doméstica. Fazia sabão de cinzas pra vender e o que mais houvesse de ser, pra sobrevivência da família. Meu avô passou a vida sob um feitiço forte. Eram sete crias de barriga mais uma adotada, oito ao todo, do coração, para cuidar. Mais vovô, que deu trabalho nesse encanto.

Essa Irene sofreu, viu. Parece que a vida inteira se deu no deserto. Uma quaresma lascada. Doída. Lembro de visitar o seu barraco, na infância. Vovó comia uns tipos estranhos de insetos para complementar a nutrição da casa. Eram saudáveis. E grátis. E estranhos, pra mim. Aquele suspense aumentava ainda mais, porque ela guardava esses bichos numa lata com temas egípcios, que achou no lixo de alguém, ali do extremo leste da capital paulista. Eu pensava ser algo de múmias, aquele hábito. Faraós, coisa assim.

Vovó é filha de uma espanhola linda, feita lá, parida aqui, com uma viagem incerta de barco no meio. Andaluza de olho azul. Dolores. Que se foi demente. Aos 89, se não me falho. Seu pai era um baiano negro lindo e forte de quase dois metros de altura. Neto de benguelenses, filho de escravizados. E Irene casou com um filho dum italiano, com índia Caingangue pega no laço. Isto nos deu uma forte matriz ancestral, indígena, africana, sofrida. Mas também temos muito a essência boêmia. Ciganos. Raízes ibéricas, mouras, mediterrâneas. Sofrimento e potência, por todos lados.

O que isto quer dizer? Nada muito claro, exceto que falamos alto, gargalhamos, amamos vinho e cerveja, gesticulamos com uma amplitude descomunal, tudo isto simultaneamente, sem falar no quanto comemos. E temos filhos. Mesmo aqueles de nós que por algum motivo se distanciaram destes fundamentos, quando nos juntamos, tudo estoura vindo à tona em todas.

Nós crescemos pobres. Nasci filho de migrados a São Paulo. Moradores de ocupações urbanas. Barrancos de serra deslizando. Comedores de insetos esquisitos. E fubá. E o que mais houvesse. Se houvesse. Quando entrei na universidade pública, a gente não sabia nem como ou o que comemorar direito. Depois vieram alguns anos de um governo ainda muito errado, numa perspectiva minha. Num sistema todo condenado, político, econômico, construído e já truncado há séculos. Desdobramento grilado das capitanias hereditárias. Nessa terra de ninguém: senhores, coronéis.

Mesmo assim, foram anos um tanto mais justos, de melhoras. Na Bahia paterna, de que não falo aqui, chegou água e um bocado de coisa importante, instaurando alguma dignidade no local. Aqui, veio a alvenaria ao invés das madeiras improvisadas e dos latões. Vieram acessos, computador, internet, telefone e carro. Vieram primas e primos pelas faculdades também. Se não públicas, particulares, mas graças a programas estatais de acessibilidade e alguma democratização.

Enfim, veio algum equilíbrio, ou então: um ainda desajuste, porém menos insano. Mas esse tempo se foi. Vieram todos os golpes que foram, simplesmente: o absurdo da parcialidade da justiça no Brasil. A minha família, sempre completamente alheia ao processo político, votou nisto daí. Sim. Tudo numa grande confusão envolvendo a corrupção da espiritualidade, a ignorância da subconsciência e o esquecimento fortuito de como a vida havia sido antes. Em síntese se pode arriscar que houve bastante assistência, fundamental sem dúvidas, mas que não alcançamos um princípio firme da emancipação popular, nem triscamos a autonomia da gente.

Isso tudo veio vindo, com o tempo. E veio também a demência de Irene. E veio também a pandemia. Corona vírus. E veio um mundo inteiro de fake news, o tempo todo, nos últimos anos. E vem um desespero crescente, não só agora. Um défice de afeto. Afetado ainda por uma doença que nos impede o contato. E veio um sistema econômico – e mais que de economia, falo dum sistema de pensamento humano – falindo, com suas cartadas, sempre trapaceiras, finais. E por isso: mais apelonas do que nunca.

Veio a quarentena, no meio da quaresma que também veio. Veio o carnaval que já se foi… se é que isso um dia vai. Vieram as águas de março. As erosões nas serras. A lama. E com elas, a festa de Irene.

A gente nunca sabe se este nosso aniversário atual, será também o último. Nunca mesmo. Às vezes, alguém pra quem o médico deu só mais seis meses, sopra ainda uns vinte bolos pela frente. E já houve estudante com nem vinte, tropeçando sozinho parado num ponto, de ônibus, batendo com a nuca e acabando já ali sua vida. Nem vinte. Não mais que de repente.

E eu não sei o que vai ser de vovó. Seus remédios são fortes. A rede que forma a nossa falta de consciência hoje em dia envolve tantas variáveis, que não posso entrar nelas aqui, sem perder a esperança de manter fisgada uma leitora até o final deste texto de internet. Mas senti que nestes três meses, o intervalo entre nossos dois últimos encontros, minha vó mudou.

Irene agora fala muito, muito baixinho. Como se nós, e não mais ela, estivéssemos surdas. Irene sorri mais. Como se anjos estivessem removendo os pesos de suas costas… eu nunca havia visto tanta serenidade no olhar de minha vó. Talvez seja a morte próxima. Talvez seja um alívio. Sussurrando, ela me alega que os seus pensamentos a atropelam. Um invade o outro, antes de ela dizer o primeiro. E que assim, ela se perde. Vovó inventa coisas. Narra. A cigana analfabeta que aprendeu a ler com a Bíblia sendo a criadora, enfim, de suas histórias. Ela canta. Ela fala ainda, mas bem menos, em Deus. Como se já estivesse tanto nele, que o verbo fosse inútil além da carne. E ela acessa as memórias da infância. Conta coisas tão, mas tão preciosas. Mas as conta pra ninguém.

Ninguém ouve mais Irene. Como se tudo fosse demência. Como se toda a paciência faltasse. Como enfim não fizesse mais sentido. Só que, de repente, vai ver, nunca antes tenha feito tanto, quanto agora faz. Minha vó, uma pisciana, isolada do cardume. Eu aqui, ascendendo a peixes, corro para escrever minhas histórias. Independente dos ouvidos familiares do futuro. Talvez nossos milagres se manifestem em outra casa, em outro tempo, não sei. Mas, assim como este texto não é sobre astrologia, ele também não é sobre mim.

A casa na serra está cheia de neblina, garoa… serração. Um frescor extremo invade as frestas de tudo. Irene com 84 completos, compondo um grupo de risco importante. Ela não faz idéia do que seja Corona. Como não faz idéia do que sejam Fé, Asafe, Caleb, seus bisnetos mais recentes. Como às vezes não faz idéia de que seja Rafa, um neto, Marta, uma filha, um nome de marido ou duma mãe. A casa está cheia de bebês. Há outros piscianos na festa. Todos eles babam sobre o bolo, meu filho inclusive. E pessoas dão os dedos cheios de frango e linguiça umas pras outras, sobretudo pras crianças. Bebem no mesmo copo. Se abraçam, choram, bebem as lágrimas umas das outras. Minha vó rejeita o resto do prato e pede que eu coma escondido aquela sobra em seu lugar me passando de pronto sua colher. E todo mundo enxuga as mãos na mesma toalha, o mesmo guardanapo. E partilhamos os garfinhos insuficientes ao bolo. Alguém tira remela de alguém. Lambe de improviso o golfo duma criança. Meu irmão, de dentro do seu espectro autista, espirra três vezes seguidas sem levar o cotovelo a lugar algum. E ninguém convidou o álcool gel.

Dona Irene só sorri. Fala muito baixinho mas está feliz. Contou pra mim que fizeram duas festas para ela este ano, encabulada: Eu não tenho nada para dar, para as festas, mas se vocês quiserem fazer duas, podem fazer. Algo nela se sente bem com essa lembrança, essa presença. Ela fica tentando ir pra lá e pra cá, cuidando que todas comam. É importante pra ela que todas comam. Que cubramos nossas bebês do sereno. E cada vez mais, que cada qual seja como é. Ouvi isso dela nesta festa algumas vezes.

Pensei em não fazer esta viagem, pelo Corona. E pensei grande. Em todas nós e, em Irene, principalmente. Mas fomos. E estando lá, como conter tudo isso? Àquilo que resistiu gerações, mais que qualquer vírus? E afinal, como conter o incontível?

Pois então: o mistério do Corona Vírus? É isto, um mistério. Este texto, para variar, não responde nada. É triste ver minha vó assim. Mas também é feliz. É terrível ver minha família assim. Mas também é esperançoso. É assustador (não) ver este vírus espalhando suas consequências, mas também parece haver uma dádiva nisto. A vida, este mistério dialético. Ao menos do que é humano, na Terra.

Fiz um ritual com meu irmão Hugo Jamioy, poeta indígena latino-americano de onde hoje são ditas terras colombianas. Para a tribo de sua esposa, hoje também sua tribo, tudo humano, e terreno, está imerso em dualidade: positivo e negativo. Isto não difere do que achei pelo mundo, no contato com tantas práticas aparentemente distintas de espiritualidade.

Neste ritual, nós curamos. Curamos a nós e ao mundo, num trabalho muito simples de equilibrar essa característica vital. Há também, como em tantas outras práticas, uma louvação a este mistério. E é isto. Há algo que não percebemos na vida. Mas precisamos viver. Talvez seja isto a fé. A fé que está dentro do real afeto. Se alguém pegou ou passou Corona Vírus ontem, nesta festa, não sei. Se foi o último aniversário de Dona Irene, também não sei. Nem saberei o que vai ser do mundo. Só sei que como família menor, não pudemos nos dar ao luxo da morte, nem quando uma senhora atravessava a geada paranaense com um bebê tuberculoso dito morto numa caixa de sapatos. Essa bebê acabou de ver nascer seu segundo neto.

E só sei também, que como família maior, já atravessamos muita coisa nesse mundo. Precisamos olhar à Terra como uma Irene, uma vó, uma mãe. Uma matriarca, que não está louca, embora tenha seus motivos. E que nos tem a dizer. Precisamos ouvir. E também precisamos deixar de ser tão prepotentes. Aceitar nossa mísera habilidade ainda em lidar com o mistério. Parar de tentar dar conta do que não damos. Mas, por outro lado, dar conta do que sim podemos: as palavras que proferimos, por exemplo. As intenções que projetamos. As energias que ajudamos a circular pelo planeta. As ondas, positivas ou negativas, que vibramos.

Irene talvez seja a mulher mais rígida que já conheci na vida. Hoje ela sorri serena e suspira baixinho: cada qual precisa ser como é…

Feliz aniversário, vovó!

Sobre Rafa Carvalho

Rafa Carvalho é poeta apesar de tudo. Em 15 anos de carreira, são 21 países, por quase todos continentes, trabalhando com Arte, Educação e fazendo de tudo, porque tudo é o que a Poesia pode ser. E, para quem acha que Poesia não é profissão, ele já trabalhou de garçom em inúmeros estabelecimentos, na demolição civil escandinava como imigrante parcialmente legal e, atualmente, está desempregado.