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Oficina Locomover: passo decisivo no atendimento a pessoas com  deficiência
Fisioterapeuta Juliana Cholakov e Evandro Alves, responsável pela adaptação das cadeiras de rodas, avaliam as estruturas de espuma na cadeira de Sophia Vitoria (Foto Ana Carolina Silveira)

Oficina Locomover: passo decisivo no atendimento a pessoas com deficiência

Com serviços gratuitos de manutenção e adaptação de cadeira de rodas e produção de órteses e próteses, iniciativa inovadora resulta de parceria da Casa da Criança Paralítica de Campinas com a FEAC

Por: Ana Carolina Silveira

Campinas, 22 de outubro de 2024

Existem aproximadamente 25 mil pessoas com deficiência motora em Campinas, o que representa cerca de 29% da população com deficiência da cidade, conforme dados da Secretaria Estadual dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Estado de São Paulo. Juliana Carlos da Silva, mãe de Sophia Vitoria Silva Guimarães, de 10 anos, sabe da importância da cadeira de rodas na vida de Sophia, que nasceu com paralisia cerebral e é usuária da Oficina Locomover, projeto inovador resultante da parceria da Casa da Criança Paralítica (CCP), de Campinas, com a FEAC.

Com as pernas e as costas acomodadas num bloco de espuma esculpido a mão e colocado sobre a cadeira de rodas, Sophia estava sorridente. Na consulta com a fisioterapeuta Juliana Ribeiro Cholakov, realizada há poucas semanas, todos os detalhes para uma nova adaptação de assento e encosto da cadeira foram pensados para a saúde e segurança de Sophia.

Inaugurada há seis anos, a Oficina transformou-se um uma política pública ao garantir o bem-estar das pessoas com deficiência física e assegurar direitos previstos na Constituição. No local é feita a manutenção e a adaptação em cadeiras de rodas de forma gratuita, com cuidados básicos, como limpeza, lubrificação das partes móveis, enchimento dos pneus, troca de peças e procedimentos mecânicos, até adaptações em encostos e apoios para correção postural. Cadeiras doadas são restauradas ou tem peças reaproveitadas para manutenção de outras cadeiras. Em agosto último, a Oficina Locomover foi ampliada com o início do processo de produção de órteses e próteses para membros inferiores (do quadril até o pé). Tudo de graça.

Neste novo processo, a Oficina ganhou instalações amplas para abrigar as diferentes etapas de atendimento aos usuários e um quadro de oito funcionários – quatro na produção, três na área técnica e um na administração. “Em cinco anos fizemos três adaptações na cadeira para acompanhar o crescimento da Sophia. Se eu buscasse esse serviço fora da CCP, pagaria no mínimo R$ 3 mil em cada adaptação. O atendimento é rápido, impecável e a qualidade do material é excelente”, explica Juliana, mãe de Sophia.

Nova Oficina Locomover (Foto Ana Carolina Silveira)

Nova Oficina Locomover (Foto Ana Carolina Silveira)

O agendamento dos usuários é feito pelo Disque Saúde (telefone 160). Em cerca de 30 dias, a CCP chama o usuário para ir até a Oficina, onde será atendido pela fisioterapeuta Juliana Cholakov. Ela avalia se o equipamento é passível de adaptação e, caso positivo, faz a anamnese do usuário e mede cabeça, apoio de tronco e largura do assento, entre outras medidas. Enquanto isso, um dos funcionários da área de produção leva a cadeira até a montagem da estrutura em madeira e ferro que receberá as novas adaptações em espuma. Ao terminar, já com o usuário na cadeira, são feitos os moldes personalizados, riscando a espuma que será cortada.

Nesse momento é avaliado se o usuário está firme na estrutura – sem escorregar – se a cabeça ou pés precisam de apoio, qual o tipo de cinto de segurança necessário. A espuma é escavada manualmente, respeitando a curvatura da coluna, cabeça e membros. “É um trabalho totalmente personalizado. Cada “dobrinha” do usuário é respeitada. Em alguns casos podemos tentar corrigir alguma postura, em outros não é possível reverter posturas já existentes, mas a adaptação ajuda a prevenir e não piorar dores”, explica a fisioterapeuta.

Com todos os acertos feitos, o usuário volta para casa com a cadeira enquanto as peças em espuma são encaminhadas a uma tapeçaria contratada pela CCP, que usa tecido automotivo – mais resistente e menos quente – para revestir todo o material. Em algumas semanas, o usuário retorna para a instalação da nova adaptação e os ajustes de cinto, altura de apoios e receber explicações à família ou usuário sobre como usar e higienizar a cadeira. No protocolo de atendimento, três momentos são registrados com fotos: quando o usuário chega, na prova da adaptação e na retirada do equipamento. A equipe da Oficina fica à disposição após a entrega da cadeira, já que o usuário precisa se acostumar com a nova adaptação.

Todo o processo é documentado de forma detalhada para encaminhamento ao Sistema Único de Saúde (SUS). Mesmo as peças fabricadas internamente estão presentes na documentação. Porém o SUS paga apenas parte dos itens. Para atender às demandas de cada usuário, a CCP arca com boa parte das despesas da adaptação e manutenção das cadeiras.

Equipe de produção da Oficina Locomover - Evandro Pereira Alves, Denis da Silva Malta, Reginaldo Moreira e Gilson Eduardo da Silva (Foto Ana Carolina Silveira)

Equipe de produção da Oficina Locomover – Evandro Pereira Alves, Denis da Silva Malta, Reginaldo Moreira e Gilson Eduardo da Silva (Foto Ana Carolina Silveira)

Impactos na qualidade de vida

O trabalho da Oficina tem um impacto importante na vida dos usuários: há melhora das partes física, respiratória e renal, do alinhamento corporal, do posicionamento da cabeça e do quadril. Há melhora na capacidade pulmonar, melhor circulação sanguínea e são evitadas as escaras provocadas pelo mal posicionamento corporal. “Tudo isso muda o humor do usuário. Com uma cadeira adaptada, ele deixa de ter vergonha de sair na rua ou ir à escola, por exemplo. Ele se sente incluído”, afirma a fisioterapeuta Juliana Cholakov.

“A Oficina, considerada uma tecnologia social inovadora no município, nasceu da escuta atenta às necessidades das pessoas com deficiência e se tornou uma solução que transformou vidas. Com um impacto social profundo, a iniciativa evoluiu para uma política pública de saúde, ampliando o acesso a serviços essenciais. Desde a inauguração das instalações, em setembro de 2018, já renovamos ou adaptamos cerca de 2,8 mil cadeiras de rodas, beneficiando milhares de usuários que agora contam com mais qualidade de vida e autonomia”, afirma Regiane Fayan, coordenadora de Projetos e Mobilização de Recursos da CCP.

A gerente técnica da CCP, Sílvia Regina Nunes Felippe Bertazzoli, responsável técnica pelo projeto da segunda fase da Oficina, explica que as pessoas em situação de vulnerabilidade social são prioridade no atendimento. “A partir de um pool de financiadores, sendo a FEAC um dos principais, a segunda fase terá como beneficiárias diretas 700 pessoas com deficiência física e/ou mobilidade reduzida que necessitam de órteses e próteses, residentes em Campinas, independentemente da faixa etária”, esclarece. Os beneficiários indiretos serão 2.240 familiares, levando em consideração o critério estabelecido pela Fundação SEADE para o município (3,2 por indivíduo) e dados do Centro de Referência em Reabilitação de Sousas.

Para o presidente da CCP, Norberto Mattei, a ampliação transforma o local em uma oficina ortopédica completa. “É mais uma meta alcançada pela instituição, que este ano completou 70 anos de atividades ininterruptas, com o atendimento de mais de 18 mil nesse período. No futuro, teremos um setor de conserto de cadeiras de rodas motorizadas, pois hoje atendemos apenas os modelos manuais”, revela. A Casa oferece, em suas instalações, atendimento multidisciplinar gratuito a crianças, adolescentes e jovens com deficiência física, nas áreas de fisioterapia, fonoaudiologia, terapia ocupacional, médica, odontologia, psicologia, nutrição, serviço social e pedagogia, além de orientação psicológica e jurídica à família.

A analista da área Socioeducativa da Fundação FEAC, Viviane Machado, afirma que o projeto da Oficina potencializa a ação da CCP. “Este é um dos eixos da FEAC: o fortalecimento das organizações da sociedade civil. Neste caso, novos serviços foram trazidos para dentro da organização, capacitando-a a oferecê-los à população, de forma estruturada e seguindo os mais rigorosos requisitos de qualidade. O município não tem dados concretos sobre quantas pessoas aguardam órteses e próteses em Campinas. Mas essa parceria contribuirá muito para que a população seja atendida. Um fluxo bem estabelecido entre a Secretaria Municipal de Saúde e a CCP irá otimizar esse fluxo de atendimento. Assim, um ciclo completo se forma com esse projeto e a FEAC tem orgulho de fazer parte deste ciclo”.

Fisioterapeuta Juliana Cholakov, Sophia Vitoria, Evandro Alves e o supervisor da Oficina, Reginaldo Moreira (Foto Ana Carolina Silveira)

Fisioterapeuta Juliana Cholakov, Sophia Vitoria, Evandro Alves e o supervisor da Oficina, Reginaldo Moreira (Foto Ana Carolina Silveira)

Autodidatas e determinados

A área de produção da Oficina Locomover é o local onde as “mágicas” acontecem. Com poucos recursos financeiros, sucatas, doações e a experiência e criatividade de quatro profissionais, pedaços de metal, madeira e espuma transformam as cadeiras de rodas em equipamentos adaptados e mais confortáveis. Reginaldo Moreira, engenheiro mecânico e supervisor da Oficina, comanda a rotina que exige esforço e determinação para solução de problemas.

“Não podemos onerar a Casa pedindo peças ou novas ferramentas. Cada usuário é único, as medidas são personalizadas. Procuramos então desenvolver muitos itens internamente, num aprendizado constante, com o material que temos à mão, sempre buscando o melhor para os usuários”, afirma o supervisor. Aos 16 anos, Reginaldo foi guardinha e, depois, auxiliar administrativo, permanecendo quatro anos na Casa. Em 2019 retornou para trabalhar na Oficina e começou a costurar assentos, encostos e cintos, muitas vezes desmanchando os itens que chegavam danificados para aprender a fazer novos. Concluiu a faculdade, certo da necessidade de um engenheiro mecânico atuar na Oficina. “Este serviço exige muita produtividade e dinamismo. Estamos sempre aprendendo e produzindo. No início, comprávamos mensalmente 200 pequenas barras de ferro usadas na adaptação das cadeiras, cada uma a R$ 15. Hoje fazemos aqui por R$ 0,80 a unidade. Fabricamos formas em madeira que podem ser reproduzidas em série e fazemos até ferramentas especiais”.

Hoje a Oficina realiza entre 45 e 50 manutenções e 15 adaptações de cadeiras por mês, mas a capacidade produtiva é de pelo menos 120 manutenções e 80 adaptações. “Temos uma limitação provocada pela falta de recursos financeiros”, explica Reginaldo. O “braço direito” de Reginaldo, responsável pelos cadastros de usuários, além de toda a documentação dos atendimentos e encaminhamento ao SUS – o que garante o pagamento pelos procedimentos – é Nayara Moreira da Rocha, que chegou à CCP como Jovem Aprendiz, e hoje atua como secretária.

A produção de órteses e próteses na segunda fase da Oficina deverá ampliar a receita da Casa. Novos desafios foram colocados para o time, que fez treinamentos externos e agora inicia o desenvolvimento das peças. “É um aprendizado em tempo recorde: o usuário é atendido pela fisioterapeuta, coletamos o molde de gesso chamado de negativo e, com ele, fazemos o molde positivo que permitirá moldar a órtese em plástico com o formato do coto de uma perna, por exemplo”, esclarece.

Por tudo isso, a habilidade manual é um diferencial de quem atua na produção. Evandro Pereira Alves, que atua na adaptação de cadeiras, ingressou na Oficina há três anos e tem uma habilidade impressionante para cortar metal e blocos de espuma. Desde que começou a trabalhar no local, só viu desafios em sua rotina. “Não há um curso, um manual para tudo o que produzimos aqui. Conseguimos fazer itens que melhoram a vida das pessoas e todo dia temos um novo aprendizado. O usuário com boa postura começa a enxergar melhor, comer e dormir melhor. Para nós, é uma sensação muito boa. Quando eu explico a alguém o que faço na Oficina, todo mundo diz que é um serviço bonito.”

Denis da Silva Malta trabalha há seis anos na adaptação de cadeiras e é um profissional versátil: costura, faz tapeçaria, troca peças, organiza o local, responde pela limpeza, faz consertos. “Procuramos dar o melhor atendimento aos usuários, resolvendo os problemas existentes. Muitas vezes o próprio serviço de adaptação nos ensina o que deve ser feito. O trabalho nos leva a ter um olhar mais atento à pessoa com deficiência”.

Com longa experiência em uma multinacional de metalurgia e curso de mecânica aeronáutica, Gilson Eduardo da Silva completa quatro anos de atuação na Casa. Em 2022 deixou os serviços de manutenção da instituição para atender ao chamado da fisioterapeuta Silvia Bertazzoli e ingressar na segunda fase da Oficina. Sua função atual é de assistente ortopédico, mas Gilson é múltiplo: na sala de gesso, construiu um tanque e um sistema que impede o despejo de resíduos na rede de esgoto. Está instalando um sistema de exaustão e ventilação em uma das salas de corte do plástico. Maneja ferramentas com destreza. Não há desafio que Gilson rejeite. “Tenho a convicção de estar no local certo, no momento certo”, acredita.

Para a mãe de Sophia Vitoria, que convive com muitas mães de crianças com deficiência física, a Oficina é um alento a todos que precisam de cadeiras de rodas. “Vejo crianças tortas ou atrofiadas que não tem cadeira adaptada ou porque o trabalho de adaptação não é bem-feito. O que a Oficina e a Casa fazem é nos acolher e garantir que nossos filhos tenham equipamentos de qualidade e em pleno funcionamento, com liberdade de ir e vir, primordial para qualquer ser humano”.

 

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Organização sediada em Campinas (SP) de notícias, interpretação e reflexão sobre temas contemporâneos, com foco na defesa dos direitos de cidadania e valorização da qualidade de vida.