Por Adriana Menezes
Inspirado na história local e na tradição cultural do Carnaval de rua, o bloco Nem Sangue Nem Areia – o mais antigo de Campinas – festejou ontem 70 anos e levou o Boi para desfilar na Vila Industrial, onde tudo começou. Não houve número oficial de carnavalescos, mas os organizadores calculam que cerca de 600 pessoas acompanharam o carro, ao som do samba-enredo que falava da “vila de ‘mil’ costumes e muitos curtumes” e do “trem que passava levando o progresso”. Criado em 1946, o bloco deixou de desfilar em 1976 e voltou às ruas em 2009, quando desde então realiza seu Carnaval de bairro no estilo mais tradicional possível.
No ano em que os blocos têm sido protagonistas do melhor da festa popular, o Nem Sangue… também contribuiu para fazer deste pré-carnaval um dos mais animados de Campinas nos últimos anos. A festa do Nem Sangue Nem Areia começou às 13h com o “esquenta” na Rua Francisco Teodoro, ao som das bandas Pipoca Moderna e Casa Caiada. Foi o tempo necessário para fazer o público dançar, suar (sob um sol escaldante) e hidratar devidamente (com água, cerveja e outras opções oferecidas por barracas e ambulantes).
O boi folião
Já passava das 17h quando os músicos da Bateria Alcalina puxaram o cortejo – no chão – acompanhando o carro de som, onde – no palco móvel – os criadores do samba-enredo cantavam. Flávia Natércia, Leandro RP, Samuel Bussunda e Diogo Nazareth venceram o concurso promovido pelo bloco (para a escolha do samba) com a música “Das Cinzas pra Vitória: Nem Sangue Nem Areia, 70 Anos de Glória e Tradição”. Muita gente acompanhou a letra e seguiu o carro de som, enquanto moradores da Vila Industrial saíam às calçadas ou olhavam pelas janelas. O boi foi junto com os foliões.
Aos 81 anos, dona Valdira Teixeira Jorge, viúva de um dos fundadores – o Zucão -, foi ver de perto pela primeira vez o Nem Sangue Nem Areia depois que ele voltou às ruas em 2009. “Muito lindo. Não pode deixar o bloco morrer”, disse dona Valdira, que nos primeiros anos do Nem Sangue Nem Areia, na década de 1940/50, confeccionava fantasias, cavalinhos e bois. “Muitas vezes amanheci na máquina de costura, daquelas de pedal ainda”, lembra sorrindo.
Lembranças
Seu filho, Sinérzio Jorge (o China), 59 anos, também festejou ontem os 70 anos do bloco criado por seu pai. “Nasci no Carnaval e sempre na Vila Industrial. Meu pai era serralheiro e fez parte do grupo que criou o bloco em 1946, quando era sucesso ‘Sangue e Areia’. Fizeram uma brincadeira com o nome do filme. Naquele tempo passava boiada no bairro, por isso o Carnaval tinha bonecos de boi. Era uma delícia. É muito bom ver que essa turma retomou tudo isso”, afirma China com pandeiro na mão.
Em 1976, o bloco deixou de sair. Somente em 2009 ele voltou às ruas, pelo esforço de um dos fundadores, Helder Bittencourt, e amigos. A atual diretoria é formada pelos jornalistas Paulo Reda, Eric Iamarino e Roberto Cardinalli, também responsáveis pela homenagem ao amigo Helder, que tem sua foto em uma bandeira do desfile e seu rosto representado em um boneco gigante confeccionado em Olinda para o desfile de 2014. Ontem o filho de Helder, Vítor Peruch, 24 anos, também festejou os 70 anos do bloco e disse que só não participou do Carnaval nos anos seguintes à perda do pai. “É importante que as pessoas do bairro também participem, porque é isso que faz o bloco não acabar nunca. Estou muito feliz.”
História local
A proposta de resgate do Carnaval tradicional, com envolvimento da comunidade e valorização da cultura local, é levada a sério pelos organizadores e bem recebida pelos carnavalescos. O professor e doutorando Cristiano Barbosa acompanhou ontem o bloco pela primeira vez. “A primeira coisa que me conquistou foi o fato de ser em um lugar histórico de Campinas; a segunda coisa foi por ter a participação da comunidade e toda essa diversidade.”
Samba-enredo 2016 Nem Sangue Nem Areia
“Das Cinzas pra Vitória: Nem Sangue Nem Areia, 70 Anos de Glória e Tradição”
(Flávia Natércia / Leandro RP / Samuel Bussunda / Diogo Nazareth)
“Vou festejar, é o dia
De homenagear
70 anos de história vou contar
Eu sou Nem Sangue Nem Areia neste Carnaval
Sou da vila industrial
O trem passava
Levando o progresso
E a segregação
Há muito tempo atrás
Viviam bucheiros
À sombra da estação (laraiá)
Vila de “mil” costumes
Muitos curtumes
Um grande sonho se realizou
Na inspiração de dramas e touradas
Foi a sétima arte que te batizou
É Carnaval, vem tourear
O nosso bloco vai passar
Olha o meu boi
Tem bonecões a girar
E o povo cantar
Vem pra rua brincar
Escola de samba se tornou
Tão linda!
Mas logo a cidade se modificou
E assim meu boi silenciou
Renasceu das cinzas pra vitória
E na memória
De muitas glórias, tradição
É ave guardiã”