Por José Pedro Martins
Campinas, 6 de outubro de 2016
O Brasil está à beira do precipício de um retrocesso histórico na Educação e outras áreas sociais, comprometendo as gerações futuras e a inserção do país no cenário internacional de uma forma soberana, livre e afinada com a era do conhecimento. Esta é a avaliação de um número imenso de pesquisadores, educadores e organizações do setor, diante da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 241 apresentada ao Congresso Nacional pelo governo do presidente Michel Temer. O desmantelamento do Plano Nacional de Educação 2014-2024 é um dos efeitos práticos da PEC 241 para o setor, avaliam os opositores da medida. A área da Saúde, prioridade número um em todas as pesquisas de opinião, também será muito afetada pela PEC 241, em votação nestes dias no Congresso Nacional.
A PEC 241/2016 estabelece um novo regime fiscal, proposto pelo presidente Michel Temer e pelo ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, indicando que nenhum investimento nas áreas sociais pode ser superior ao reajuste inflacionário do ano anterior. Essa forma de definição dos orçamentos para as áreas da Educação e Saúde, entre outras, valeria por 20 anos, ou seja, incidindo em todo o tempo restante do Plano Nacional de Educação 2014-2024. Educadores, pesquisadores, universidades e organizações têm feito enorme mobilização para barrar a PEC 241, mas isso não parece ter sensibilizado o governo Temer e a sua base aliada no Congresso Nacional. A PEC 241 pode ser votada ainda nesta quinta-feira, dia 6 de outubro, em Comissão Especial na Câmara dos Deputados e, se aprovada, será levada a votação em plenário (da Câmara e Senado) na próxima semana, apesar das várias advertências quanto a sua possível inconstitucionalidade, além do impacto severo nas áreas sociais.
Violação de cláusula pétrea – Um incisivo alerta sobre as consequências legais da PEC 241 foi dado por Paulo Sena, assessor Parlamentar da Câmara dos Deputados e considerado um dos maiores especialistas em Direito e financiamento educacional no país. Em estudo sobre o tema, Sena observa que a PEC 241 visa alterar o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), de modo a instituir o chamado “novo regime fiscal”.
Sena cita então o artigo 104 da PEC 241, que estipula: “A partir do exercício financeiro de 2017, as aplicações mínimas de recursos a que se referem o inciso I do parágrafo 2º e o parágrafo 3º do art.198 e o caput do art.212, ambos da Constituição, corresponderão, em cada exercício financeiro, às aplicações mínimas referentes ao exercício anterior corrigidas na forma estabelecida pelo inciso II do parágrafo 3º e do parágrafo 5º do art.102 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias”.
Para o especialista, ao propor a mudança do ADCT e fixar nova norma (aplicação do ano anterior corrigida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo – IPCA) de cálculo dos mínimos constitucionais de Educação e Saúde, o governo federal “não apenas muda a regra, mas atinge e fere princípio sensível, e assim viola cláusula pétrea” da Constituição brasileira, que acaba de completar 28 anos.
É a Constituição Federal, comenta Paulo Sena, que prevê que a vinculação de recursos da receita de impostos à manutenção e desenvolvimento do ensino, estabelecida no citado artigo 212, “não é apenas uma regra de locação, mas é, também e principalmente, um princípio constitucional. Um princípio constitucional sensível, na expressão de Pontes de Miranda”, diz Sena, se referindo a um dos grandes juristas brasileiros.
“Uma vez desrespeitado este princípio”, continua o assessor legislativo, “ocorre a mais grave sanção no Direito Constitucional: a decretação de intervenção federal. Se a própria Federação, como forma de Estado, é objeto (art.60, parágrafo 4º, I) de cláusula pétrea, sanção da gravidade da intervenção federal não pode ter outra natureza”.
Sena completa: “A constatação de que a vinculação é um princípio constitucional, que enseja a intervenção federal (art.34, VII, “e”, CF), sob a qual sequer pode ser apreciada qualquer emenda constitucional (art.60, parágrafo 1º, CF) leva à conclusão inescapável de que se trata de cláusula pétrea. Cláusula pétrea violada pela PEC 241, de 2016″.
Impactos no orçamento – Além de violar uma cláusula pétrea, na visão de Paulo Sena, a PEC 241 representa um enorme corte nos gastos em Educação e Saúde, inviabilizando a implementação plena do Plano Nacional de Educação (PNE) e outros importantes programas das áreas sociais, advertem muitos estudos de especialistas e organizações sociais.
Um estudo do consultor de Orçamento e Fiscalização Financeira Marcos Rogério Rocha Mendlovitz para a Câmara dos Deputados apontou uma perda de R$ 58 bilhões em recursos, resultantes da aplicação da PEC 241/2016 no âmbito da Manutenção e Desenvolvimento do Ensino (MDE). Segundo a projeção do consultor, as despesas federais com MDE, abrangendo pontos como transporte escolar, compra de material didático e pagamento dos salários dos profissionais de Educação, seriam reduzidos anualmente abaixo dos 18% da receita líquida dos impostos. Este é o percentual mínimo que a Constituição prevê para gastos do governo federal em Educação, com a receita líquida de impostos.
Os cálculos do consultor indicam que em 2017 não haveria queda de recursos na aplicação em despesas de MDE, se aprovada a PEC 241. A partir de 2018, entretanto, “já começaria a haver perda, a qual se acentuaria rapidamente nos exercícios seguintes”, diz Mendlovitz. Entre 2023 e 2025, anos finais de aplicação do PNE, as perdas seriam de mais de R$ 30 bilhões, o que inviabilizaria algumas despesas previstas no Plano Nacional de Educação, como a criação de pelo menos 3,4 milhões de vagas em creches, 700 mil matrículas na pré-escola, 500 mil no Ensino Fundamental e 1,7 milhões no Ensino Médio.
Reação da sociedade – Diante dos apontados impactos na ordem constitucional e nos recursos para o setor nos próximos anos, afetando diretamente a implementação do PNE 2014-2014, organizações da área educacional se mobilizaram nos últimos meses.
No último dia 18 de setembro, o presidente da Comissão de Educação das Nações Unidas, Gordon Brown, recebeu em Nova York um dossiê elaborado pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação (CNDE), com estudos e críticas sobre a PEC 241/2016 e seus efeitos na Educação no Brasil. No dossiê, a CNDE defende que a PEC 241/2016, assim como outras iniciativas do governo Temer no setor, “colocam em risco a garantia do direito à educação no Brasil”. A Campanha Nacional pelo Direito à Educação considera que a PEC 241 vai na direção contrária às recomendações dos Comitê sobre os Direitos da Criança das Nações Unidas.
Outras importantes organizações já se manifestaram. “A Proposta de Emenda Constitucional nº 241/2016, que propõe o Novo Regime Fiscal (NRF), e seu Substitutivo, se aprovado nos termos em que está proposto, resultará em prejuízos irreparáveis às políticas sociais que garantem os direitos de crianças e adolescentes no Brasil”, defendeu em comunicado a Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança e do Adolescente, uma das mais respeitadas instituições da áreas social.
Para a Fundação Abrinq, a PEC nº 241/2016, e seu Substitutivo, “não incluem na Exposição de Motivos, no Parecer do Relator e no rol de indicadores a serem monitorados para medir o desempenho do Novo Regime Fiscal os indicadores sociais que serão impactados pela medida. A Fundação Abrinq acredita que o monitoramento dos impactos sociais – positivos e negativos – de quaisquer medidas de governo devem estar contemplados para uma efetiva avaliação de políticas públicas”, observa a instituição.
A Fundação Abrinq nota em seguida que 28 políticas e programas que beneficiam diretamente crianças e adolescentes estão sob responsabilidade de diferentes ministérios do governo federal, como Plano Decenal dos Direitos da Criança e do Adolescente, Plano Nacional de Educação – Lei nº 13.005/2014, Política Nacional da Primeira Infância, Política Nacional de Convivência Familiar e Comunitária, Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE, Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, Sistema Único de Saúde (SUS), Sistema Único de Assistência Social (SUAS), Proinfância – Programa Nacional de Reestruturação e Aquisição de Equipamentos para a Rede Escolar Pública de Educação Infantil, Programa BPC na Escola – Benefício de Prestação Continuada, Programa Mais Médicos e Programa Mais Educação.
Para a Fundação Abrinq, ao não detalhar quais políticas são prioridade de governo e, consequentemente, de investimentos, “todas essas políticas e programas estão em risco de serem reduzidas a ponto de perderem a sua efetividade, ou descontinuadas, caso o texto da PEC nº 241/2016 permaneça como está – independente de uma análise mais aprofundada – e seja aprovado. Inclui-se no rol de efeitos danosos da PEC nº 241/2016 os impactos que a imposição de um limite de gastos para o Poder Judiciário terá sobre a operação – já deficiente – do Sistema de Garantia de Direitos de Crianças e Adolescentes”.
Impactos no PNE – A Fundação Abrinq avalia em particular os impactos da PEC 241 no Plano Nacional de Educação – PNE (Lei nº 13.005/2014), que estabelece 20 metas que devem ser alcançadas nos próximos dez anos para melhoria da qualidade da educação no Brasil, como: a erradicação do analfabetismo; o aumento do número de vagas em creches e a equiparação do rendimento médio dos profissionais do magistério da rede pública com o dos demais profissionais com escolaridade equivalente são metas que constam na citada lei.
O PNE estabeleceu, ainda, lembra a Abrinq, “como parâmetro mínimo de qualidade na educação e referência para o financiamento da educação os mecanismos do Custo Aluno-Qualidade inicial (CAQi) e do Custo AlunoQualidade (CAQ), que determinam um valor mínimo a ser investido por aluno pelos governos estaduais e municipais para garantir padrões mínimos de qualidade de ensino em todo o país, para o qual é fundamental a ampliação dos investimentos em educação”.
A meta de aplicação de 10% do Produto Interno Bruto (PIB) em educação até o final da vigência do Plano, fundamental para o cumprimento das demais metas, “não será cumprida caso seja aprovada a desvinculação das receitas para a Educação”, diz a Abrinq. Tanto o novo regime fiscal em debate, como os critérios impostos recentemente para a renegociação das dívidas dos estados e do Distrito Federal e a Desvinculação das Receitas dos Estados e Municípios, “inviabilizam o cumprimento das metas estabelecidas no PNE, por autorizarem os entes federativos a reduzirem os investimentos em Educação, afetando diretamente a vida de crianças e adolescentes no Brasil”, adverte a Fundação Abrinq, que tem grandes empresas como financiadores (como Microsoft e Bradesco) e parcerias com várias organizações, como União Europeia e Comissão Europeia.
O Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (CONASEMS), a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME) e o Colegiado Nacional de Gestores Municipais de Assistência Social (CONGEMAS) também se manifestaram, em nota conjunta, sobre os efeitos perversos da PEC 241/2016 na Educação, Saúde e outras áreas sociais a partir de 2017.
Essas organizações notam que o Brasil passa por um rápido processo de mudança na estrutura demográfica, em decorrência do aumento da expectativa de vida e da queda da taxa de natalidade. “Em 2036, projeta-se uma população de 227 milhões de habitantes, 9,3% superior à população atual. No que se refere à estrutura etária, os resultados mostram que a população com 60 anos ou mais representará praticamente o dobro da atual, passando de 24,9 milhões para 48,9 milhões, o que pressionará o gasto público tanto para saúde, quanto para educação e assistência social”, afiram as entidades, entendendo que a PEC 241 afetaria os gastos nessas áreas.
“No caso da saúde as medidas propostas, uma vez implementadas, irão agravar ainda mais o quadro de asfixia financeira que atualmente o Sistema Único de Saúde (SUS) atravessa. Os aumentos do desinvestimento, do desemprego e da queda da renda da população forçam, naturalmente, a busca da população pelos serviços e ações de saúde no SUS. Para a educação, a PEC 241/2016 inviabilizará o cumprimento das metas e estratégias do Plano Nacional de Educação”, afirmam CONASEMS, UNDIME e CONGEMAS, no comunicado que resume o espírito de grande parte da sociedade civil brasileira em relação à PEC 241/2016, que coloca em dúvida o futuro do país em áreas estratégicas e essenciais.