Começa aqui minha participação como colaborador na Agência Social de Notícias. Um espaço para tomarmos, figurativa e praticamente, cachaças, vinhos, cafés e meios de produção. Experimental ao ponto de não dar pra dizer se prosa ou poesia. Se crônica, ensaio, filosofia. Documental, ficção. Cartas, conversas. Ou não. Biografia. Auto e não autorizada. Tudo invenção. Não dá pra dizer. Mesmo assim escrevo: como quem diz. E para esse início: algo sobre a virtual idade, e que também conte mais de como as coisas convergiram até esse texto acontecer. Agradeço à ASN pela honra desse porto. E embora o chame de porto, eu aqui nos desejo boas viagens. Meu nome é Rafa Carvalho e eu sou um cruzador. Escrevo por não poder amar mais. E os textos, conforme sugestão editorial de Zé Pedro, querido, virão quase sempre em partes, como este. É que eu dou voltas demais, para a idade em que estamos. Mas uma hora a gente chega. Lá.
Parte I – Era tudo. E nada.
A internet é um lago imenso, oceânico. Um info-mar de muitas ondas.
E nós, narcisos, refletimos lá. Ou cá, o que, nesse caso, dá no mesmo. A internet é aqui. Esse mar de superfície vertical, mesmo plano que os espelhos de nossas paredes. Película. Que separa e isola, ao mesmo tempo em que promete: unir.
Há sempre um mundo inteiro de possíveis ali, além. Bem aqui, do outro lado da tela. Possibilidades de olhar, que podem nos ver através dela, quase como os olhos de um espelho mágico. Maré a olhar Narciso. Tudo estranho. Comum, cada vez mais. Intenso em algum senso. Tenso, denso, raro, raso. Polar. Parcial. Ordinário, complexo. Sutil. E: super-ficial.
Eu sou um libriano feito de desequilíbrios. Vaidade eu sempre tive. A viagem, na Terra, tem sido ser cada vez menos. Mas tudo em volta, ainda, é a demanda de remar. Não há terra à vista nesse ponto. Porto seguro a essa vaidade. Por outro lado a timidez me transpunha, constantemente, à gaveta, aos porões da gente mesmo. Ao segredo.
Foi um convite pra ser acrobata de circo, quando eu não fazia sequer uma cambalhota, que deu o impulso. Súbito, estava em turnê pela Argentina. Com homens musculosíssimos, figuras esguias de aparência asiática, moças de flexibilidades absurdas e ginastas recém chegadas de aprimoramentos búlgaros, ex-soviéticos e o escambau. Tinha desde elenco do Cirque du Soleil, até eu. Costas curvadas. Barriga solta. Elegância de um pato. Uma coisa meio lesa. Sem pose.
Só que, ao mesmo tempo, a vontade de fazer pose havia. E foi nessas idas e vindas que o inevitável aconteceu: virei palhaço. Mas, ao contrário do que se pensa e do que pensei, ser palhaço não é fácil. Ser ridículo é muito melhor quando ainda não nos damos conta de que o somos. Amar e mudar as coisas é uma prática de extrema dificuldade. Que pode parecer simples. E até ser simples, de fato. Mas que exige disciplina. Assim como ser palhaço. E disciplina é coisa que eu não tinha. Aliás, eu remo para ter mais disciplina como remo pra ter menos vaidade. Muito embora tudo à volta ainda seja um tanto de não-horizonte. E só.
Me falta tanta disciplina, que começo assim com pronome oblíquo o parágrafo e, não fosse a graça bíblica de vivermos mil anos em um dia, eu mal poderia dizer que já fui monge. Ou missionário. Ou um herdeiro da cultura xamânica Shipibo, amazônico-peruana. E assim, indisciplinada, a vida foi indo. Meio longe até. Quando nem vi, estava pintando embarcações numa ilhotinha dinamarquesa. De lá prum apartamentinho em que cabia eu e um futon no sul da Japão. Depois já estava comprando uma barra-forte em Marajó pra seguir com uns hippies pro Suriname, enquanto a Unicamp me jubilava do curso de Educação Física que só fiz porque uma voz invisível me soprou o ouvido numa quinta-feira de despertador tocando cedo pra eu ir à escola. Era o terceiro ano do Ensino Médio. A voz falou mais alto que os tantos anos de nunca Educação Física de minha vida, até ali, com atestado médico e tudo. Não fazia sentido, mas disse sim. E no fim, nem fui pro Suriname. A Unicamp me aceitou de volta, pródigo. E eu terminei o curso sem precisar do diploma. Pois o que eu precisava mesmo, era terminar. Talvez porque terminar algumas coisas tenha a ver com disciplina.
A poesia nisso sempre esteve. Não comigo poeta. Mas comigo poema ou parte. Um verso torto. Rima pobre. E a música também. No canto que todo mundo canta. Por alegria. Por tristeza. Ou por distração. No chuveiro. Eu tímido, só cantava mesmo no chuveiro, pela ilusão de que o som não saía de lá. De dentro. Isso criança, né. Daí, com essas voltas do mundo – e foram tantas que não dá pra contar tudo aqui – eu fui, mesmo timidamente, tentando. Querendo. No fundo, querendo muito. Querendo ser, expressar, existir. A partilha, o encontro. E abraçar o mundo, naturalmente.
E assim eu, que já tinha sido evangélico e budista ao mesmo tempo, como bom libriano, fui fazendo tudo: literatura, música, fotografia, dança, teatro, circo, cinema. E aí: nada (como se diz em baiano, uma de minhas línguas preferidas). Fazia tudo e nada ao mesmo tempo.
Até que chegou um momento importante. O ano era 2011. Decidi de vez pela Arte. Larguei o registro em carteira, como educador. Parei com o circo. O circo já era arte, claro, mas é que decidi também focar. E ainda como libriano, o meu foco era duplo: música e literatura. A canção e a poesia. Mas isso já era melhor que nada. Aquilo já era melhor que tudo. Algo próximo de um foco, como jamais pude. Peguei carona com o circo numa turnê de despedida, que começou na Suíça. E duas semanas depois, a caravana me deixava na mesma ilhazinha da Dinamarca, onde anos atrás eu demoli paredes, além de pintar embarcações e trabalhar como garçom. E de lá foi sendo. Aos poucos. Música e literatura. Um pouco menos de tudo. Um pouco menos de nada.