Por Rafa Carvalho
Eu quase levei um tiro recentemente. Isso mexe com a gente, acreditem. Acabei atrasando em um dia a coluna. Fui revisitar uns textos há um tempo já escritos e achei este. Ajeitei um pouco e aqui vai. Um dia depois da sexta, dia que comprometi para isso. E um dia antes de sabe-se lá o quê. Às vésperas do quê, é que estamos? Metaforicamente – e talvez não só – temos levado tiros o tempo todo. E dado. Nos nossos diferentes. Nos nossos iguais. E sobretudo em nós mesmos. Este texto é sobre loucura. Não vai dar pra fracionar em partes, pois o hoje urge. A imagem é do filme de Leos Carax, “Os Amantes da Ponte Nova”, que já fica sendo a dica da semana.
Eu sou neto de uma louca. Dona Dalva, minha vó. E contesto um pouco o ditado de que em terra de cego quem tem um olho é rei. Pode ser que seu rei seja o mais cego de todos. O cego-mor. Pode ser que esse caolho seja anulado. Ou mesmo morto. Precisamente por ter olho.
A cegueira tem seus males. Défices. Eu sei. Eu penso que sei. Mas, ver além, também os tem. Muita gente já morreu vendo mais do que se via. Vendo mais do que “devia”. Fogueiras. Prisões. Enforcamentos. Toda sorte de torturas e repressões. Censuras. E repreensões.
Certo dia, fui convidado para fazer poesia com loucos. Para conduzir uma oficina de poesia num centro de referência – e devo dizer: resistência – nos cuidados com a saúde mental, em Campinas. Conheci a Maria do Carmo. Mulher. Negra. Quase 66 anos. E antes de se aposentar, foi doméstica. Como minha mãe é. Há cinquenta anos, foi diagnosticada em estado de surto. A Maria do Carmo. Internada. Presa. Enjaulada. Me contou que a alimentavam empurrando a tigela por um buraco na porta de ferro. Que ganhava mais eletrochoque que comida. Que lhe banhavam ali mesmo, na jaula. Dois enfermeiros ou mais. Saiu disso. Conseguiu sair. Quase lambeu o chão pra criar os filhos. Usou essa expressão quando me disse. E seu segundo, também foi diagnosticado louco. Ela estava lá por causa dele. Eu olhava seu filho e sentia nele essa sede absurda de vida. Tanta sede assim pode incomodar. Chegando a ser irritante. Querer viver tanto desse jeito, só pode ser loucura nesse mundo.
Interessam mais os mais mansos. Os que questionam menos. Que tenham sede de consumo. Que cumpram suas horas semanais com toda eficiência. Mas que também não queiram demais. Não amem demais. Nem imaginem demais. O que é que tem para além das fronteiras. Quem é que impôs esses mapas. Por quê é que tem que ser assim. Me pego imaginando os diagnósticos. Os humanos que examinam esses humanos. E os enjaulam. A laia que determina o que é, e o que não é: a loucura.
O pecado de minha vó, por exemplo, foi enxergar um anjo negro. E conversar com ele. Foi ver o que ninguém mais via na sua cidadezinha de sertão. Atravessar uma fronteira ao que no fim é o país de todos, sem ser legitimada por isso. Seria uma heroína. Mulher porreta, arretada. E era. Minha vó enfrentou o padre ranzinza e fez a festa do casamento antes de casar, não dando trela à rabugice e ao capricho clerical do homem. Não estragava festa com bestagem. Ia na frente. Líder pioneira precursora.
Não sei se isso fazia dela louca. Pra ser sensato, não sei bem o que a loucura é ainda. Se a acho boa ou ruim. Logo eu, que não sou muito dado a esse plano cartesiano, e maquiavélico, de dualidade. Aliás, eu sinto que a loucura seja desses termos, que se usa mesmo para os dois lados. A depender do contexto. Das entrelinhas. Que nem “foda”. “Foda” pode ser usada quando a coisa é muito boa, positiva. Ou quando é negativa, muito ruim. Depende. E me parece natural que dependa. Da coisa, da foda e da loucura. Depende de quem vê. Depende de quem faz. Depende de quem decida. Nesse aspecto, acho que a loucura acaba sendo muito mais ruim do que boa, na intenção das sentenças desse mundo. Um modo excludente. De cercear a massa humana que se doma, que se deixa domar. E os que domam, ditam. Quem é e quem não é. Neste ponto, minha vó não foi louca. Vovó: foi enlouquecida.
Quando eu voltei do Japão, dando conta de que não conhecia o Brasil, larguei universidade, tudo e saí. Com mochila, violão, trezentos contos e RG pro Ceasa, pegar carona. Rodando o país pelas BR’s, vi muita gente. Num posto de Sete Lagoas em Minas, onde o café é de graça e a cocaína barata, um homem filho de um casal de um juiz com uma juíza, se refugiava. Deixando a barba crescer e maltrapilho entre caminhoneiros, travestis e traficantes, mulheres da vida, fumaça e jogatina. Ele ali pintava imagens cósmicas santas e celestes em peças losangulares de ardósia, que mais comumente dava e às vezes vendia. E pintava maravilhosamente essas imagens. Populares como a Nossa Senhora Aparecida. Mestres Ascensos menos conhecidos por aqui, como El Morya. Além de figuras que só ele mesmo reconhecia. Louco.
Louco como Osvaldo. Homem. Negro. Periférico. Poeta imenso. Escreveu que mataria se pudesse os homens mal criados. Os homens sem educação. Ele mataria a todos com tiros na boca. Eu fiquei o tempo todo pensando na profundidade do sentido desses sentimentos. O que é matar o homem mal criado? O que é matar o homem sem educação? E por que é matar: pela boca?
Osvaldo tem fixação por alguns números e expressões numéricas. 640% e 75 vezes mais, são duas delas. E apesar desse escrito, Osvaldo fala 75 vezes mais de amor, que de morte. 640% de tudo que me disse ali, de tudo que criou ali, era afeto. Ele era todo clareza, coerência e ênfase ao afirmar que esse mundo padece na falta de afeto. Falta de amor pra dar. Quem não tem, não dá. E em terra de quem não tem, talvez governe o que tem menos.
Rivaldo chegou atrasado e com um olho de cada cor. A primeira pergunta que ele me fez foi se eu também ouvia vozes. A segunda: e o que eu fazia com essa responsabilidade? Já a primeira pergunta de Giovani foi meu nome. A segunda meu aniversário. A terceira se eu gostava de Raul Seixas, Cazuza, Moraes Moreira, Ney Matogrosso e Beto Guedes. Giovani tem 24 anos e sabe muito de música. De pop art. De oratória e, eu diria também, filosofia. Louco. Ele se emocionou quando viu minha foto com o velho ex-novo baiano. E chorou feito criança. O Giovani.
As carreiras geram um pó de ilusões, na gente. De repente, o destino já não é mais o destino. Em alguns casos nunca foi. E o pó deixa de ser só o efeito da caminhada, algo pra compor rastros. Dissipar. Diluir no ar. E passa a ser o fim. A meta. Ficamos aquém do que devia estar aquém de nós. E de um pó vindos, nos distraímos com esse outro pó, que é alheio ao humano. E assim, desatentos, vamos voltando. Ao pó de sempre. Perdendo a chance. Mais ou menos humanos. Menos humanidade, do que poderíamos. E a isso é que eu chamaria de loucura, se loucura, a mim, fosse essa coisa ruim. Esse desperdício. De si e do outro.
Giovani me perguntou como o Moraes Moreira é. Minha resposta foi: eu não sei. Eu só tirei uma foto com ele. Nós tiramos fotos com a idéia de Moraes Moreira, muito mais comumente do que o fazemos com o ser em si. Do Moraes Moreira ou de quem quer que seja. O próprio Moraes Moreira ou quem quer que fosse talvez conviva mais com a idéia feita de si, do que consigo mesmo. Tudo é raso, Giovani. Só a loucura que não. A loucura é profunda. E é por isso que amar é loucura. Giovani chorou vendo uma foto, por amar Moraes Moreira. Amar gratuitamente. Assim. Ele nem sabe quem é Moraes Moreira. Aliás, quem é que sabe? Por um toque, letra, melodia ou voz, ele sentiu a potência do amor. A potência do amor em Moraes Moreira. E só por isso já o ama. Giovani é louco, por acreditar na potência humana. E por amar, a espécie que o rejeita.
Isso aqui, não é uma selfie com um famoso. Isso não é uma selfie com uma idéia. Um pó alheio. Não é um anúncio de show com participação especial. Uma figura pública foda. Isso não está nos trending topics, não é hype. Isso é só loucura.
Um texto apaixonado sobre loucura. E eu provavelmente seguirei fazendo selfies com as mesmas ideías. E confesso: adoraria anunciar um show, meu, com certas participações especiais. Famosas. Hypes. Virais. Sim, é uma contradição. Aparentemente, não se pode ser muito são, nesse mundo. Mas nesse dia, Osvaldo, Maria do Carmo, Elvira, Giovani, Lígia, Rivaldo, Andréia, Dolores, Luciano, nesse dia, essas pessoas me ajudaram a firmar o destino. Focar nele e não nas poeiras. Ninguém nessa história toda é, nem jamais deveriam ser, menos importante que o Moraes Moreira.
O homem de Sete Lagoas. De tempo em tempo seus pais o resgatam. Fazem barba, cabelo, dão banho. Vestem bem. Comida, rotina, consulta. E ele foge de novo. Talvez ele esteja apenas cuidando menos das ilusões e mais do destino. Talvez não. Talvez seus pais estejam certos em julgar o que julgam. Não sei. Julgar não é pra mim.
Depois que virei poeta, nunca mais falei difícil. Foi a fala do Osvaldo, que abriu nele o sorriso mais lindo. Naquele instante o Osvaldo riu pelo mundo inteiro, eu tenho certeza. Andréia nem alfabetizada era, e fez poesia aquele dia. Fizemos poemas conjuntos e todas se surpreenderam. A Dolores concluiu: quando a gente junta, a gente é muito mais forte. Louca, obviamente. Ela e todos nós ali juntos. Loucos.
Que o prefeito não é louco. O prefeito que desmantelou um serviço lindo à saúde mental em Campinas. Não é louco. O outro prefeito, de lá, que derrubou prédio com gente dentro, não é louco. Esse que deixou de ser prefeito por querer ser governador. E o que deixou de ser governador por querer ser presidente. Quem rouba merenda de criança. Não é. O presidente não é louco. Quem o tornou presidente usando a visão privilegiante da justiça, não são loucos. O candidato que lidera as pesquisas não é louco. Brasília é só gente sã. Os loucos mesmo estão ali, no submundo das cidades satélites. Naquela miséria, às margens. Os loucos mesmo estão aqui. Louco é o Luciano. O Rivaldo. O Giovani. Louca, no sertão de toda essa história, é a minha vó. Não os coronéis. Louco é meu tio Lio, que morreu assassinado com três tiros na cabeça defendendo a terra para o povo. Pros cafuzos da caatinga. Louco é ele. Não o patrão, tetraneto de grileiro, que mandou darem caça a meu tio. Que mandou darem tiro, meterem bala, na cabeça de meu tio. Louco sou eu que escrevo essa loucura e que mataria junto com Osvaldo, sem pestanejar, tudo que ele mataria.
Loucos e loucas são vocês, que perderam três páginas e meia em libre office de tempo, para lerem isso, ao invés de curtirem as selfies mais badaladas e marcarem presença nos eventos com mais participações especiais, a que vocês afinal não vão. Porque bom hoje é parecer. Aparecer. Mascarar. Iludir. Que viver não é recomendado. É arriscado, é perigoso. O cidadão de bem não vive, só pretende. Pretender é bom. Desempenhar o papel que lhe deram. São são mesmo, é aquele que finge.
A Maria do Carmo, nesse dia, chegou com um texto lindo que resumia sua vida. E uma angústia gigante quanto ao título que lhe daria. Nós conversamos pela tarde. A ao final do encontro ela já tinha um nome. Ela já sabia:
Viver foi a minha loucura.