POR RAFA CARVALHO
Painho e mamãe vinham migrantes. Uma do sul e o outro do norte. Nordeste pra ser mais preciso. Mainha tinha visto geada. Vivido o corte do frio, uma luta pra se ter roupas, calor o bastante. Papai, só conhecia a seca. Os rachados da terra. O pó, a poeira e as visagens destorcidas da fornalha. Proletários, que se incorporavam à imensa SP. São Paulo da garoa. São Paulo, terra boa.
Entre isso de trem, lotação, bater ponto, hora extra, eles se encontraram. Trabalhadores de um mesmo shopping. Num pouco tempo que se arranjava, eu aconteci. Concebido assim, no meio do cansaço, à esperança de um alívio. E os patrões de meu pai, acredito, com bem mais tempo pra essas coisas de prazer, tempo livre, engravidaram também.
Nasci em outubro. E Jr., em dezembro. Tudo de 1985.
E crescemos amigos, por alguma razão que hoje penso um tanto inexplicável. Talvez papai fosse muito carismático. Depois, eu também, ao meu modo. De um jeito que foi acontecendo. O filho do empregado e o filho do patrão. O empresário quis investir em Campinas, terra promissora. Deixou um dos muitos bairros soberbos da capital, para habitar o distrito pomposo da nova cidade. Nós, saímos de um apertamento na ZL paulistana, pra morar na primeira rua asfaltada, depois da área ocupada na ZL campineira. Um pouco pra cima da favela do Inferninho. Do rio Anhumas transbordando lixo, enchendo os barracos da margem de água e sujeira, do lado de cá da rodovia, da fábrica de sabão e do trilho do trem. Maria Fumaça. E ali depois da linha, tinha o hipermercado. Onde estavam os investimentos do patrão.
Passei os anos visitando as mansões em que moravam. A primeira era térrea, tinha um mini bosque no terreno ao lado, conjugado. E um pequeno hangar. Onde o patrão, como hobby, montava aviões de porte simples, com um ou dois motores. A segunda tinha uns três andares. E um sótão habitável. Foi assim que eu aprendi o que é um sótão. Nessas experiências também que vi minha primeira cadeira de balanços, meus primeiros quadros, esculturas e obras de arte. Minha primeira piscina, que não fosse lona de mil litros. Meu primeiro teto com telhas cinza, que não fossem de amianto. Minha primeira cozinha americana. Primeiras taças de cristal, a primeira pele de animal morto se estendendo pelo chão dum cômodo, as primeiras fotos de terras distantes. A primeira bracciola, o primeiro antepasto de berinjela com uva passa, a primeira empanada chilena.
Uma vez ele veio em casa, direto da escolinha. Deixou que eu comesse o lanche que não tinha apreciado em seu recreio. Era um pão com um requeijão esplêndido. Enrolado num papel alumínio. Tão sofisticado e bom. Quando o visitava, comia o máximo de pringles que eu podia. Porque elas eram muito, muito melhores que os salgadinhos a granel do armazém, cá do bairro. E eram coisas, que eu só via ali. A patroa vinha me buscar nesse carro grande, da Fiat, com quatro portas, cor metálica, tudo meio automático, bonito. E Jr., todo ano, ia pra Disney.
Daí ele vinha, com chapeuzinho, copo, caneca, brinquedo. Foto com o pato, foto com o Pateta. Camiseta e outras coisas incríveis. Autógrafo do Mickey. Não sei que lá do Pluto. Tudo fantástico. Num desses anos, já não éramos mais tão crianças, ele me disse: Ano que vem vamos para Nova Iorque. Pra Venev.
Venev. Era a primeira vez que eu escutava aquele nome. Mas esse lugar já me fascinava, só de ouvir. Jr. pronunciava com tanta elegância, que parecia se tratar do melhor lugar do mundo. E eu já imaginava. Todas as pessoas felizes de Venev. Vestidas com roupas bonitas, de marca, comendo pringles. As crianças brincando nos sótãos, ouvindo seus pais pousando aviões pelo quintal. As avós lendo livros com adornos dourados em francês às cadeiras de balanço confortáveis. O Pato Donald entre os amiguinhos, na piscina. Que lugar. Como eu queria ir pra Venev.
Essa pronúncia meio franca, pra um lugar americano. Mas eu nem pensava nisso nesse tempo, criança, quando falei pro meu pai exausto, depois de trabalhar dezesseis horas, cheirando a suor e óleo de fritura dentro do Chevette, me levando da mansão de volta à nossa casa, nos fundos. Num outro canto bem distinto da cidade. Todo ano eu falava da Disney. Clamando. Queria ir. Queria um autógrafo, nem que fosse de um personagem secundário. E meu pai dizia que: eu precisava entender. As pessoas são diferentes. Andar de avião, sair do país, fazer essas coisas, não era pra toda gente. Só algumas. Comer bracciola, balançar na cadeira, ter um bosque. Não eram coisas pra todo mundo. Voar de avião. Chegar. Aos Estados Unidos. Dólar. Não era pra nós.
Pra nós, nem à Bahia dava. Chegar de Chevette, ônibus, que fosse. E visitar os parentes.
Mas com Venev eu insisti. Insisti muito. Em vão. Óbvio. Papai e mamãe nada podiam fazer, pobres. A não ser me consolar um pouquinho. E quem sabe chorar escondido, também, suas próprias carências, frustrações da vida. Pouco tempo depois, perdemos contato. O patrão fugiu do país devendo uma dinheirama pra Receita Federal, fornecedores, funcionários. Só meu pai já ia com dez anos, de férias atrasadas.
Eu levei muito tempo até descobrir que Venev não existe. E deduzir que Jr. talvez fosse à Nova Iorque para: ver neve, ao invés. Isso: vê neve. Simplesmente isso. Já que na Flórida não se tem um clima assim tão diverso, desse nosso. Ver neve. Esse sonho de muitos aqui. Disso que a gente vê tanto nos filmes, desenhos, propagandas comerciais. Nas fotos, no Natal, no spray que aprimora o pinheiro de artifício, deixando seus galhos de plástico cobertos, dessa alvura. A neve de fazer bonecos. Neve de fazer guerrinha. De escorregar trenó. Rolar. E apanhar flocos com a língua. Que nem um sapo chupando sorvete.
Por falar em sapo e sorvete, eu comia de tudo. No bairro. Não tinha pringles. Mas tinha uma fabriqueta de casquinha de sorvete. E a gente passava sempre, nas tardes, pedindo as casquinhas quebradas. Que não poderiam vender. Eram deliciosas, tantas vezes quentinhas ainda. E a gente caçava sapo também. Rã. Com lança afiada em cabo de vassoura velha, lanterna e assobio. Rã tem gosto de frango. Eu ficava na viela apanhando azedinhas. Amora verde a gente comia com vinagre. E era preciso comer as frutas verdes, porque nunca dava tempo delas madurarem, na rua. Tinha um tipo de madeira, que eu também comia. Tanajura, no tempo, a gente pegava pra dona Josélia fritar na farofa. Aquela bundona, da formiga. Comia fruta de passarinho, alguns jeitos de flor. E os doces da macumba. De dona Geni.
Naquele tempo tinha mais macumba, parece. Tinha mais tanajura também. Vaga-lume. E aleluia. Lembro que havia momentos, de primavera e início das chuvas. E de novo depois, começando o verão. Que a revoada tomava conta de tudo. Céu, poste, lâmpadas das garagens. Era um absurdo. Bem lindo de ver.
Quando a Universidade me ofereceu a bolsa pra viver e estudar na Dinamarca, eu nem sabia o que esperar. Urso polar, de repente. Mas não. Cheguei em pleno verão, com dias intermináveis. O Sol mal descia e já vinha subindo de novo. Pouca roupa, pessoas deitando nos gramados. Praia, embora elas fossem bem diferentes das praias daqui. E o outono, quando veio, foi mudando tudo isso. Lento, ou nem tanto. Derrubando as folhas, trazendo chuvas rançosas, o cinza. Nublando os caminhos, crescendo com as noites. Neblina. Escurecendo troncos. Remodulando, menor, o tom dos bichos.
Tudo foi ficando triste e indisposto. Pessoas em volta contraíam a doença que eu, até então, desconhecia: Depressão de Inverno. De repente, o Sol mal saía e já apressava a baixar. Anoitecia muito. E nos dias curtos, cobertos de nuvem, não se via o Sol. Fiquei umas duas semanas sem vê-lo. Como foi difícil. Tudo vivia úmido, nada secava por fora das construções. Um barro frio era a única coisa que sentava nas gramas. E uma lama gélida, com os ranços das chuvas, marcava os caminhos sem concreto ou asfalto.
Era difícil acordar, respirar. E numa manhã assim, todos tomávamos café nesse grande salão. Portas e janelas de vidro, laterais, davam vista aos jardins com uma pequena lagoa, da Universidade de lá. Visão ampla para o cinza. Mas, de repente, pensei ver uma coisinha branca leve e discreta caindo. Quase desfazendo, em sua queda. Flanando o cadente zigue-zague das folhas, de árvores e sementes brasileiras. Ou das folhas de papel sulfite que eu deixava cair pela infância, sem querer, às vezes. Como eu, muitos outros pareceram ver. Um. Depois outro. Mais um. E sim, era neve.
Começou cair com generosidade e até alguma abundância. Embora os flocos fossem muito minguantes e derretessem mesmo antes de tocarem o solo. Ou logo assim que o atingissem. Era a minha primeira neve. E como eu, algumas outras pessoas, estudantes da América Latina, de África, viam aquilo tanto, ao vivo, por primeira vez.
Como hipnotizado fui levantando, ainda sem roupas apropriadas pro externo. E comigo toda a gente que vivia essa inédita experiência. Até que fomos juntos, andando na direção de uma porta, nesse misto de lentidão, como o bicho que se aproxima, de algo que desconhece, com a ansiedade depressa do sonho que se faz tangente. Abrimos a passagem, atravessamos os metros da marquise e, subitamente, corríamos feito crianças. Gritando, rindo, gritando. Na mescla do inglês com nossos próprios idiomas. Rolávamos no chão. Escancarávamos bocarras ao céu. Tentando sentir o gosto daquele gelinho que sumia ao encostar da língua. Fizemos bolinhas de neve, que continham mais grama e terra úmida, que qualquer outra coisa. Mexendo pernas e braços com os corpos deitados. Como quem formava anjos imaginários, na neve ainda insipiente. Todavia, era neve. E eu via.
Finalmente Venev. A gente ficou encharcado, trementes de queixos batidos. Mas seguiu brincando. Às comidas da manhã largadas à mesa. E do lado de dentro dos vidros, estudantes nórdicos e de países europeus de outras partes, norte-americanos, japoneses, assistiam a tudo de pé. E dava pra ver que até quem se havia ali acometido da tal depressão invernal, nos sorria.
Esses dias uma amiga que recém se mudou pra Alemanha, ligou pra contar que sua primeira neve aconteceu ali. Exatamente na data do seu aniversário. Eu fico lembrando de mim com meu pai, no Chevette. Pensando na indignidade do patrão. No peso do destino que assim cada qual se carrega. E vi que, recentemente, alguns vaga-lumes voltaram. Como também as primeiras revoadas de aleluias em muitos anos meus. Escrevia uma tarde dessas, em casa, quase por ocaso, quando vi pela janela. As asinhas delas caindo aos milhares. Fenecendo, levíssimas como aqueles primeiros flocos dinamarqueses. Lúdicas como as folhas de sulfite que eu deixava cair pela infância. Parecia mesmo que nevava. Lembrei da farofa de bunda de formiga, da dona Josélia. Da gente comendo com a mão. Depois lembrei da bracciola, que eu comi na Bari velha, uma vez. Na casinha simples de uma tal senhora, com um monte de moleque correndo por perto, gritando na rua, mãe dando bronca na filha, debruçando terrível à janela, casal discutindo e depois se beijando. Todo mundo rindo alto, falando velozes dialetos bareses, naquela bagunça boa da Apúlia. Uma bracciola bem menos gourmet do que aquela de que me lembrava. Da infância, do distrito pomposo de Campinas. Mas uma bracciola suculenta, saborosa. Muito mais autêntica, gostosa. E simples.
Venev. Todo mundo devia poder chegar lá.
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