Por Rafa Carvalho
Janela de ônibus é danado pra botar a gente pra pensar. Já dizia Miró. O nosso aqui da Muribeca. Dizia, e ainda diz. Graças a Jah. Eu digo que janela, em geral, dá nisso mesmo. Ônibus, carro, caminhão. Avião. Janela do quarto numa noite quieta de estrela. Nos dias de chuva batendo nos vidros da sala. Janela de trem.
Quando eu passei dos 27, vibrei. Mas depois, assumi pra mim mesmo que eu não era assim tão hard core como Basquiat, Amy, Kurt, Jimi, Janis, Jim. Ou Noel, que sequer chegou a completar os seus. Não. Noel morreu foi com vinte e seis. Mesma idade que eu tinha quando andava lá, pelas terras do Miró dali, da Catalunha. Territórios dessa tal Espanha que há nos mapas múndi. De Miró, Dali. E outras tantas.
Hoje tô com 33. Idade-morte de outro grande pop star no mundo. Hard core máximo, superlativo. E naturalmente eu venho vindo muito aquém de seu exemplo. Se vou passar, não sei. Tô naquela meiuca, por enquanto. Do jeito que Noel vinha, pra chegar ao seu vigésimo sétimo, eu por aqui vou, pra sair desse outro marco, alcançar os trinta e quatro. E é provável que até passe. Mas assim mesmo. Já não vai dar pra dizer que não morri.
Tenho morrido muito, sabem? De repente uma borboleta que curte muito sua nova fase. Mas que olha pro casulo arrebentado, pra lembrança da lagarta que era ela, e se pergunta: até que ponto aquela ainda sou eu? Ver seu filho nascendo, ali. Ampará-lo da queda, às próprias mãos, na gravidade dum ventre parido de mãe. Ver essa mãe toda existindo pro filho, necessariamente. E também ver o filho, praticamente só percebido da mãe. Cuidar de outro filho não seu concebido. Das águas das plantas. E acompanhar as galinhas, suas fomes, suas sedes, seus ninhos. Fazer a feira e o almoço. O vazamento da pia, o óleo do carro, o pneu. Sem carteira assinada, paternidade à licença, sem a carreira ascendida. E nem vou falar da presidência, dos desgovernos, do mundo. O kaos. Isso aqui tá um kaos. Espero ao menos que esse, com “k”. Jorge Mautner me prometeu num café que esse um dia de ajeita.
Tento ajudar minha família. Pai, mãe, irmãos. Penso na comunidade, na ancestralidade e no futuro do planeta. Ser um cara melhor, um pouquinho, a cada dia. E tudo isso junto, ao mesmo tempo, agora. Com as contas vencendo. Quatrocentos mil projetos atrasados. Às verbas se cortando na cultura. E caixas. Caixas e mais caixas de qualquer coisa.
Hd’s, cd’s, disquetes. Fitas K7 e VHS. Cartas e: coisicas. Bilhetes de metrô, guardanapos de boteco, tampas de garrafa, panos recortados, páginas arrancadas de revista, moedas, selos, fotos 3×4, fitinhas, bugigangas, badulaques, quimbembeques. Totais inutilidades, desimportâncias. Lixo, como diria minha mãe. Energia parada, como diriam Seicho-no-ie, Feng-shui, sei lá o que mais, talvez. Cadernetas de notas, sempre incompletas. As anotações e as folhas. Tudo isso: memória.
E eu me lembro que pegava esse trem, de Madri à Linares-Baeza, Jaén. Início andaluz do meu sangue, cigano. E àquela janela pensei. Danadamente. Vendo oliveirais imensos, paisagens diversas, tão lindas. Mas por mais longe que fosse, meu pensamento não alcançava esses anos. O que, de lá pra cá, em sete voltas do mundo, vivi. Morri. Não alcançava. Como se a própria vida fosse essa viagem. Ônibus, trem, o que se quer. E cada momento se revelasse a seu tempo, seu destino.
Lá eu fiquei na casa de um pintor. Acho que, dos vivos espanhóis, um dos mais talentosos, se não for o mais. Casado com uma poetisa, eles tinham a companhia de uma vira-latas. Dentre tantas coisas que eu poderia e talvez deva contar, da experiência, conto que havia, nessa casa, um cômodo. Secreto. Que estava pleno de baús. Baús mesmo. Meio antigos, arqueados, bem bonitos. Ele um dia me levou lá. Foi abrindo os baús e me mostrando: eram desenhos. Cadernos, cadernetas e bloquinhos de desenho. Papéis avulsos. Guardanapos. Registros de passeios, viagens e aventuras. Depois de um tanto ele me olhou e disse: Se um dia essa casa pegar fogo, salvo primeiro minha esposa, depois nossa cachorra. E em seguida isto. O resto, pode se queimar.
Hoje eles já têm dois filhos, o primeiro, chamado Ícaro. Mesmo nome do bebê que nasceu contemporâneo ao Fé, parceiro de quarto. A cachorra, se não me confundo, faleceu de velha. A casa não queimou ainda. E eu escrevo, nessa madrugada. Pensando.
A janela fechada, pelos pernilongos. Penso na simplicidade sofisticada das imagens do Miró de lá. Na simplicidade sofisticada das performances poéticas de Miró daqui. Penso que desenho mal demais. E que talvez por isso tenha recorrido a tanta tralha. E que performo mal também, talvez por ter ligado muito tempo pro que o mundo pensa, que sabe. Mas também não reclamo. Pode ser que essa ilusão me tenha preservado além dos 27. Vai ver também dos trinta. E três.
E enfim, agora é interromper o texto. Pra acudir o neném que chora. E a mãe, que merece e precisa dormir. Mas depois voltar. Com esse sono e caindo. Voltar. Que há que se dar conta da coluna. Ainda que Zé Pedro seja um editor mais que companheiro e compreensivo. Ainda que só seis amigos me leiam. Por respeito a esses poucos, por respeito ao acaso e por respeito ao compromisso que está feito comigo, de mim, é preciso voltar. Por todas essas pessoas e a pia e o óleo e o alho e os olhos da cara das coisas e as coisas das caras de pau e o pau e a pedra e o caminho, de que o fim não se vê.
Nem o alívio do kaos, que esse Jorge prometeu.
Porém é isso. Fé na estrada. Resta seguir. E conseguir, o que fazer com tudo isso. Esses cômodos secretos do existir. As lagartas que sobram de suas borboletas. Sendo gauche na vida. Sendo essa espécie de Miró, quem sabe. Quem sabe sendo livre, como a Catalunha e o Nordeste poderiam ser. Algo que fazer com tudo isso. Agora que o casulo foi vencido. Como se fosse possível nos salvarmos. Da fogueira que consome. Nosso tudo. Tempo.