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UM PRESENTE PRA CAMPINAS

UM PRESENTE PRA CAMPINAS

Por Rafa Carvalho

Está inaugurada “Seu João da Pipa”, obra de grandes proporções do artista Fabiano Carriero, disponível como patrimônio público e urbano de Campinas, na Praça Arautos da Paz, a partir deste dia 24. A pintura levou quatro dias de trabalho, com instalação de andaimes, e teve a autorização do poder público municipal.

Entre o feriado de quinta-feira e domingo (20 a 23 de junho), Campinas ganhou um grande presente. Grande mesmo. Foi na Praça Arautos da Paz, Taquaral, ocupando inteira uma das paredes da estrutura, que sustenta a cobertura no local.

É o “Seu João da Pipa”. A mais nova obra de pintura do artista campineiro Fabiano Carriero, o maior trabalho de muralismo de sua vida e carreira, até aqui. Versátil, Carriero atua num múltiplo desenvolvimento de ações, com bases em técnicas distintas, indo do mais miúdo, até paredes, muros e superfícies cada vez maiores.

Esboço, por Carriero

Esboço, por Carriero

Pouco a pouco, cenários de Campinas, São Paulo e outras cidades vão ganhando os detalhes do seu traço. Seja por folhas A4 ou até menores, pedacinhos de madeira escavados, mostras e exposições; por sua atuação de venda e partilha nas praças, becos e ruas; seja pela composição das paisagens nos bairros, com suas intervenções urbanas variadas, Fabiano vem aumentando o seu tamanho no mundo.

O maravilhoso é que ele não abre mão do miúdo, pra isso. Ao contrário: transpõe a imensidão das miudezas, para essas dimensões maiores, a que, oxalá, cada vez mais pessoas possam enxergar, e compreender. Campinas é uma cidade carente de arte popular, carente de acessos, decência e dignidade. Campinas é muito abundante de povo, de gente capaz de fazer, recriar, difundir; mas é demasiadamente escassa de equilíbrio social, distribuição de oportunidades, e de respeito, valor e visibilidade ao que sua população menos favorecida é capaz de produzir, mesmo com todas opressões e dificuldades que a circundam, desde sempre.

A praça virou ponto de encontro de esqueitistas, patinadores e é muito frequentada por pessoas e famílias em geral, nos seus horários de divertimento. Sem dúvida, uma das referências de ocupação popular no município. Se nota algum fôlego de democracia, passeando por ali numa tarde ou manhã de domingo, por exemplo. O trabalho foi autorizado pela Secretaria de Cultura de Campinas – e nós seguimos sonhando com uma atuação mais ativa e comprometida de todo o setor político, que funcione como representante cultural e artístico em favor da população, na gestão do dinheiro público, pra que este retorne como investimento. Só autorizações não bastam. É sempre bom lembrar que a máquina política existe para representar o povo, para servir a população; nunca o contrário.

Para realizar a obra, Carriero precisou dispor de andaimes e contou com apoios importantes, de amizades e de empreendimentos como Mira Skate Art, Gráfica Gutenberg, Cultiva Filmes e o Bar do Manoel – Estrela Dalva, sem os quais não seria possível esta ação do que chamamos “arte independente”, mas que é, na verdade: interdependente. O artista agradece pessoalmente a parceria de artistas e companhias como Mirs, Eduarda Ribas, Seo Manoel, Uirá Piá-Uaçu, Fábio Barella, Neto, Augusto Spotto e também à Veri e ao Marco Antônio.

Processo (Fotos Fábio Barrela)

Processo (Fotos Fábio Barella)

A obra faz alusão às pipas, brinca também com as bandeirinhas de São João e à tradição de nossa cultura caipira e suas festas juninas; mas o que ela fala mesmo é da capacidade – e mais, necessidade? – que nós, humanos, temos: de voar. Tenho uma felicidade planadora de que a inspiração pra Fabiano mover tudo isso, seja “grave-idade”, um poema curtinho meu, de muito tempo atrás.

Bom, agora é só visitar. A obra fica exposta gratuita e permanentemente, até que ela desapareça: as cidades são organismos vivos, e tudo que vive, é provisório. Só torço pra que esse pulso flua cada vez mais vívido, que nosso direito à cidade se exerça plenamente, que nosso espaço urbano seja como uma grande festa, ou galeria livre, autônoma e democrática. E que sejamos pessoas cada vez mais sensibilizadas e artísticas, gozando de acesso e possibilidades que nos permitam este prazer, imensurável, de nos relacionarmos ética e esteticamente em nossa convivência.

Carriero, o artista (Foto Fábio Barella)

Carriero, o artista (Foto Fábio Barella)

Pra ir terminando, sempre que eu digo que Carriero é um dos grandes de nosso tempo, me perguntam sobre os motivos de sua carreira ainda não ter “estourado”. Bom, as respostas são muitas. Mas ao invés de responder, prefiro propor o seguinte:

Existem três tipos de arte. Um só quer dinheiro e poder. E usa da arte como usaria de qualquer coisa para isto. Outro se leva a sério como produção, sentimento, conteúdo; mas não se conecta com o todo. É uma evolução do ser, mas ainda não do mundo. E o último – que espero um dia ser o primeiro – é a arte que considera tudo. Incluso o que pra maioria: não é arte. Carriero corre nesse bloco, manso ainda que inquieto. Sussa-intenso. Bravo e desbravador. Um dos artistas de nossa geração que honraria ser visto e sentido. Seu talento invade o afeto e é disto que mais precisamos: não de quadros milionários, valorando os salões da hipocrisia. Meu irmão é um coração pulsando tinta. E se o mundo não vê, azar do mundo.

Pronto, falei. O ponto crítico desta fala, é que não é o mundo que dita aquilo que há pra ser visto. E isto é o que acaba sendo nosso azar. Fico tranquilo, contudo, pois sei que o Fabiano vai sempre estar no lado do povo. Sei que só dignidade não põe comida na mesa e que ele segue correndo pela sobrevivência, como eu e tantas de nós. Mas o verdeiro sucesso, pra mim, é isso: manter-se fiel ao humano.

Porque alguns muros, a gente pinta. Outros, a gente não sossega, até que venham inteiros: abaixo.

Sobre Rafa Carvalho

Rafa Carvalho é poeta apesar de tudo. Em 15 anos de carreira, são 21 países, por quase todos continentes, trabalhando com Arte, Educação e fazendo de tudo, porque tudo é o que a Poesia pode ser. E, para quem acha que Poesia não é profissão, ele já trabalhou de garçom em inúmeros estabelecimentos, na demolição civil escandinava como imigrante parcialmente legal e, atualmente, está desempregado.