Por Rafa Carvalho
Junho.
Vejo notícias de êxito se espalhando como gripe nessa época. A gente fica assim por horas numa rodoviária, sem assunto, e acaba surfando um pouco na internet. Não gosto da inveja. A Terra é grande – o suficiente. Há vida e cultura que abundam. E o Sol deve mesmo brilhar para todas. Fico feliz, que a arte tenha seus espaços para acontecer assim, em resistência. Movendo fundos.
E afundando na cadeira dura da rodoviária, leio comentários duros. Indecoros e deselegâncias de muitos que, como eu, não triunfaram. A gente tem essa dificuldade com o fracasso. Mania, de cultivar as mágoas.
Eu já tento ir em frente. Errante. Só pergunto quando, de repente, esse lugar ao Sol também se dará pra gente, como a gente. Quando só há vez prum primeiro, o segundo e o último erram igual – o bastante. Por isso não adianta contar os segundos. Aliás, nunca gostei de competir. Jogava bola pela emoção do jogo, simplesmente. Sentir-me vivo é o que valia, ganhando ou perdendo. A emoção dos lances. Mas acontece que depois de uns anos, pra sentir-se vivo, a gente pensa que tem que ser útil. Como se gargalhar por uma borboleta de tecido em móbile, lilás, tivesse alguma utilidade.
Poeta inútil e minimamente sensível, tento não cair nessa. Porém, como sobreviver sem dinheiro no bolso, sem parentes importantes, nem sendo útil, para poder assim cuidar de um filho – com sustento e tudo – e reaprender com ele a inutilidade brilhante de uma borboleta lúdica em móbile?
É difícil estar no mundo ao mesmo tempo em que o desafiamos, nos seus movimentos principais. Muito mais difícil ainda, para quem não tem posses, família que alcance as glórias com o renome. É como escrever. Praticar a escrita é uma coisa. Mas praticá-la com seu filho chorando, uma empresa de cobrança insistindo e o bule fervendo, é outra.
No entanto, enquanto isso, um escritor sentencia aos quatro ventos pela rede: você não vai ser bom jornalista, bom poeta e bom escritor ao mesmo tempo. Escolha um e seja: de fato. Aquilo me dói tanto quanto um curso do Sebrae. Curioso é que ele é médico. E eu me pego refletindo sobre as visões que terá de si mesmo: será – de fato – médico, ou autor? Onde ele falha, por não ter escolha única? Ou será que a medicina está isenta, neste caso?
Nem me perguntem que médico-escritor seria esse. Que importa? O importante é que, no digital, todos somos incríveis. Se eu não tivesse um filho e família para honrar, cancelava esta passagem pra Campinas. E buscava outra pra Instagram. Lá é melhor que Pasárgada. Todo mundo é rei. Só se come bem, a saúde é conscientemente cuidada sempre e os sábios sabem como transformar o mundo. É simples. Um lugar para você ser tudo. Com ninguém sendo tanto quanto você.
Até agorinha foi dia de Santo Antônio. O Sol vai se arder como fogueira, logo logo. E não terei visto o meu filho sorrir, cura do meu cinza – junino, do inverno, de sempre. Amanhã – que agora é hoje – é dia da Nhá Chica. Salve, salve, Nhá Chiquinha, que muito pouca gente reconhece. E ontem – já ontem de ontem – foi dos namorados. Esse dia que um país inteiro considera, porque o mercado diz que sim.
Vi Maria Ribeiro postando algo do ex, Paulo Betti, neste dia. Coisas sobre os Novos Baianos, ex-casais. Das famílias que existem antes e depois de todos os demais encontros em seus relacionamentos. Tudo muito lindo – pra mim. E acredito: verdadeiro. Mas ainda sinto que nada deixa de ser uma questão de pessoa, lembram? Em Instagram tudo é incrível. Aqui fora, no estrangeiro: depende.
É que – no analógico da vida – há uma interdependência complexa, muito diversa em seus fatores, da qual fica muito difícil dizer. Mas, primeiramente: depende das pessoas, em si. Depois da casta a que elas pertencem. Há quem vá dizer que castas não existem. Mas entendam: todo privilégio quer se sublimar, num intangível, para prosseguir no que consiste. O médico pode ser escritor. Pode inclusive receitar o que é preciso para ser bom escritor. Já um mecânico talvez não possa. Podem lhe dizer que jamais fará bons textos. Ou então, que deixará de ser seguro confiar-lhe os nossos carros. Porém sempre o mais provável e quase absoluto é que não escreva bem. Jamais. Um médico pode mesmo lhe dizer: você não será bom mecânico e bom escritor ao mesmo tempo. Escolha um e seja, de fato. De preferência, mecânico.
Privilégios não querem sumir tão facilmente. Alguns acessos, não se querem democratizar. Mesmo quando o discurso não assume – ou pior, diz o contrário. Nesse sentido, Instagram é como Brasília. Em tese era pra todos: podem chegar. Mas aí não cabe todo mundo no central deste planalto, em seus palácios retumbantes. As estruturas são armadas para segregar. E só restam margens nada plácidas, pra que a massa possa ali: subviver. E de quebra ajudar, nessa manutenção dos algorítimos. Dá seu voto, deixe seu like. Seja útil. E siga infeliz.
Não é tão fácil ser bem-resolvido quando uma família inteira precisa passar o mês com menos que o valor duma sessão de terapia. E vejam: não estou falando de mim aqui. Que eu nasci pobre, sim, mas hoje não sou mais. Vivo na corda bamba, ainda, àquela luta constante. Mas perto da maioria, da gente, tô tranquilo. Inclusive quase dá pra terapia – é que prefiro pagar aula de canto.
Mas não é só isso, sintam: a jornada do amor, na Terra, é árdua para todo mundo. Não importando bens e aparências. Depende muito outrossim das profundezas humanas. Essas que mal se emergem pelas terapias – mesmo às da moda, mais caras. Que dirá ali, no Instagram do dia a dia.
O amor é mesmo tudo isso que dizem. Imenso e infinito – e isso é fato. Nós, porém, somos meros factoides. Ainda.
Talvez não estejamos preparados pro que se vislumbra em Pasárgada ou Instagram. Talvez não estejamos preparados ainda para o que nos acomete quando toca a cabeça um travesseiro, à tarde comum de uma terça-feira, ou nessas madrugadas frias, entre a espera de um terminal. Pras alfândegas de dentro. Coisas que não postamos. Talvez não estejamos prontos.
Junho.
E o Sol sobrevoando Gêmeos. Numa ambiguidade: digital e analógica. À volatilidade do vento que contudo corta, no rasgar da noite. Aquecendo outras partes do mundo, esse Sol partido, esfria mais a cada hora uma rodoviária reticente – entre o santo casamenteiro, a beata celibatária e o dia dos namorados.
Por acaso amei muitas pessoas de Gêmeos. E como bom libriano: amei muitas pessoas. Por todas as casas. Namorando cada um dos elementos. Por acaso. No meu tempo cigano, na vida. Uma índia araweté num show do Jorge Ben. Uma afro-patagã por dentro e fora da barraca. Uma eslovaca montanhesa na partida de boliche. Casei-me com uma geminiana tão plena de histórias, tão vivida, quanto eu. Nunca achei que amar fosse uma questão de gênero, embora reconheça hoje os privilégios a que tive acesso, sendo homem predominantemente cis nesse mundo injusto.
Mas a mim, amar, é do humano.
Eu amei, e amei muito. Errei muito também. Meti-me em confusões inconsoláveis. Coisas passionais. Causei dor. Doí. Quis, não quis. E mesmo não querendo nunca, no fundo, bobeei. Voltei. Arrependi. Aprendi.
Pensei, que tivesse aprendido.
Fui um homem péssimo, algumas vezes. Ótimo, de vez em quando. Comum, no fim das contas. Fico pensando como seria viver em Instagram, onde se é ótimo sempre. E em como quando se é ótimo, fica descolado parecer comum. Faz pena o comum não ser assim considerado ótimo, de fato. Por isso não há razão sensata para se temer os comunistas. Principalmente os descolados. Eles não existem.
Eu entro na sala VIP da rodoviária. Não tem café e a moça avisa que ela vai fechar em cinco minutos. Tenho tempo de sentir que as cadeiras dali são tão duras quanto as outras. Das duas uma: ou isso quer dizer que VIP e comum são tratados igualmente na rodoviária; ou que na rodoviária, de fato, não há VIP.
Fico pensando no que algumas pessoas pensariam perdendo o ônibus, caso elas os pegassem. Como seria a madrugada fria na rodoviária, se não fosse impossível pra elas algum desastre deste tipo. E enquanto não posso ir à Campinas, Pasárgada ou Instagram, com minhas vistas já embaralhadas no espanhol do mexicano que estou lendo, visito em sentimento – por causa da Maria Ribeiro – todos meus amores.
Amar, afinal, foi das poucas coisas em minha vida que se deram certo. Só que de tão certo, acabou tudo dando errado. Tanto que fui virar monge, em celibato, por um tempo.
Terminou que ser monge também deu errado. No entanto, era quase viciante a sensação de não estar causando dor ou sofrimento a ninguém, por um período.
Viajo parado divagando que embora vivamos atrás de likes, o que precisávamos mesmo, era buscar perdão. Eu viajaria o mundo – e quiçá até para além dele – só pedindo perdão às pessoas. Uma turnê assim. Angola, Albânia, Arapongas. Aquela ilha miúda do Báltico. Ourinhos. Todo o Centro-Oeste brasileiro. Vila Mariana. Vila São João. Algumas partes do sertão e uns povoados bem recônditos costeiros. Kobe, Nagoya e Osasco. Assim no Texas como em Americana. E também aqui, na Cidade Universitária.
Que eu já fui bicho demais. Santo demais. E queria pedir perdão por tudo isso. Só humano é que ainda não dei conta de ser muito. Pois se existe algo que não podemos ser demais por enquanto neste mundo é isto: humanos. Logo, sermos humanos não seria um motivo legítimo pra pedir perdão. Ironicamente, já que o errar é nosso.
Volto a encarar o erro, como algo que fundamenta tudo – inclusive os nossos festivais, competições e cases de sucesso. Penso nas super pessoas do Instagram. Será que elas pedem perdão? Será que perdoam? Será que consideram o erro, quando errar não lhes rende nenhum like a mais – ou pior, até lhes tira?
Eu amei algumas mães também. E sempre me chamou a atenção, o tamanho gigante de suas conexões com os filhos. Toda vez que não estavam com eles, não importava o quão especial algo fosse, sempre faltava. Diversas vezes eu não entendi. Em algumas, pensei até ser exagero. Hoje, nessa rodoviária fria, sei que – mais uma vez: estavam certas. O que mais me dói em todo meu passado, como pela madrugada agora: é a saudade do meu filho. Sou só um pai, não sei ainda – e nem vou poder saber, por esta vida – o que é ser mulher, ou mãe. Mas tenho então o delírio de lembrar que já fui mulher um dia, no ápice de minha encarnação presente, quando habitei o corpo de minha mãe. Quando fui o corpo dela. Era completamente diferente desse terminal de hoje, frio, sem conforto. Tudo era calor e aconchego.
A histeria é uma palavra incompreendida – por nós, homens. Por não termos útero.
Acho que eu poderia amar melhor, sendo como sou, se compreendesse isso. Acho também, que eu me perdoei a mim em muitos aspectos quando fiz um filho. Paro um pouco com esses devaneios todos, e começo a desenhar, este desenho. Sei lá o que é, se é pré-cubismo ou o quê. E também não que seja assim interessante como são os do Mãe, que tanto gosto. Na verdade, sinto que em matéria disto, nunca deixei de ser criança. Pura ausência de coordenação motora fina. Mas acho honesto dividir com vocês a imagem, neste segundo e derradeiro ato. Nele tem meu filho e sua mãe – uma mulher, que também e minha companheira. Eles estão em casa, dentro de mim. E eu não estou no desenho porque estou fora, na rodoviária.
Nessa hora reencontro algo que ganhei quando era monge, e que não precisava ter perdido: a conexão com o instante.
Uma vez, numa Flip, deparei com o Xico Sá depois de apresentar meu livro pela rua, batendo tambor – e de tomar meia garrafa da cachaça ouro, enquanto isso, dum alambique na cidade. Xico é dessas pessoas que parecem comuns, no Instagram. Abracei o Xico e ele me sorriu, parecia, com sinceridade. Nos divertimos por um instante breve, dei pra ele um livro, um beijo, e nunca mais me respondeu, o Xico. Nem pra falar bem, nem pra falar mal, nem pra falar não. E isso não devia ser o problema que às vezes é. Entendem? O importante foi aquele instante.
O complicado disto tudo, é que somos feitos – também – de memória. E aí arrisco que estejamos hoje atravessando duas grandes crises, dentre as tantas outras: uma é nossa crescente dificuldade de lidar com o analógico; outra, nossa limitação – desde sempre – em sentir a eternidade.
Eu quis parar de amar, um tempo, pelo medo da dor que isso causava. A outras pessoas e a mim, numa espécie de efeito contrário. Quis parar de escrever também – esses dias – pelo mesmo motivo. Essa sensação de falar sozinho, de nunca triunfar. E um receio amargo de não conseguir criar um filho só com isso. Mas vou fazer o quê? Talvez eu não sirva pra ser útil. O Fé é filho de poeta. Assim, se morrer esse poeta em mim, meu filho fica órfão.
Estranho, nunca quis ser médico. Nem nas brincadeiras da infância. Preferia ser paciente. Mas já andei querendo ser jornalista, poeta e escritor ao mesmo tempo. E até mais que isso: músico, esqueitista, menino. E mudar o mundo. Mas, de repente, parece que não vai dar. Um médico – que nem é meu – disse que não posso. Também fui fazer um curso de gestão, e a notícia que recebi ali não foi muito mais animadora. Pelo menos não disseram que eu não possa ser como sou. Só afirmaram que eu não posso ser assim, esperando que dê certo.
Mas a gente vai fazer dar certo, filho. Enquanto houver Sol e a gente estiver aqui, nós vamos tentar. Seu pai já morou na rua, dormiu muitas noites em chãos de rodoviárias piores, ponto de táxi no relento, almoxarifado em prédio público escondido, atrás de máquinas de bingo clandestinas à beira de estradas. Pai já foi garçom, pintor de casco de embarcação, servente de pedreiro e demolidor civil. Se não der certo com arte, e literatura, a gente vai dar outro jeito, Fé.
Só não quero que seu pai poeta morra. Que você cresça sem referência masculina de como pode ser amar. E se lembrar que cê também já foi mulher no corpo de sua mãe. E a gente vai seguir escrevendo. Nem que seja só isso mesmo, filho: a nossa história. Mas se possível, escreveremos para honrar ainda todos os amores, que sim, são para sempre. Pra sermos cada vez mais responsáveis por eles. Nessa família expansível, humana, que vamos formando. Sem castas, sem virtualidades. Cheios de gratidão por cada pessoa que habita esta Terra. Que nos doam – ou dão a alguém – a chance de doer, sempre, mas também: de amar.
Até que demos conta, filho. Dessas crises todas. Nós vamos dar conta.
E vamos desenhar também, Fé. Mesmo que você me ultrapasse rapidinho à qualidade técnica. Mesmo que os meus rabiscos não sejam lá tão lindos, como aqueles que gosto tanto, do Valter Hugo Mãe.