Texto: Daniela Prandi
Fotos: Martinho Caires
O novelo de linha laranja que passa de mão em mão é a senha para que os jovens participantes e os educadores do Projeto Comunicaí ganhem a palavra para contar suas primeiras experiências com a agência de comunicação Mandinga da Favela. O projeto do Instituto Padre Haroldo em parceria com a Fundação FEAC, que começou no primeiro semestre de 2019, funciona no espaço Quilombo Urbano OMG, no bairro Monte Cristo que, junto com o Parque Oziel e a Gleba B, em Campinas, já foi considerada a maior ocupação da América Latina e hoje, com 30 mil moradores, segundo dados da Prefeitura de Campinas, passa por processo de regularização.
“Fizemos um processo seletivo e recebemos cerca de 50 jovens. Mas, às vezes, o aluno vem e no outro dia a mãe telefona dizendo que não vai mais deixar por causa da localização”, conta a coordenadora e educadora Silmara Oliveira. Sim, o estigma do Parque Oziel persiste como um dos locais mais violentos de Campinas, mas, durante o encontro com os participantes, a paz só foi quebrada pela passagem de carros de som e do caminhão de gás, além de um beija-flor insistente que fazia questão de bater suas asas bem no meio da roda de conversa.
Hoje, com cerca de 30 participantes entre 16 e 23 anos, todos em busca de respostas para a questão sobre o que é comunicação e qual a sua importância, a escrita, a fotografia, o vídeo e o áudio são as ferramentas de que a agência dispõe para ajudar jovens de diversos bairros de Campinas a construírem a sua própria narrativa. Ideias não faltam, muito menos vontade de aprender. Nos encontros organizados duas vezes por semana, os participantes reforçam seus laços recentes, e, com as novas mídias à disposição, começaram a contar sua própria história. O desafio é coletivo e o protagonismo vai sendo descoberto aos poucos.
Kaian Ciasca, que coordena a área de vídeo, destaca que um dos trabalhos que está sendo feito é um documentário no qual o Parque Oziel virou personagem, a Ozileia. “O mundo hoje é uma disputa de narrativa. Quem está falando? A grande mídia estigmatizou o Oziel como um lugar de violência e os jovens daqui tiram do currículo onde moram. Resolvemos fazer um documentário usando o Oziel como uma personagem que vai pedir emprego”, adianta.
Ambos moradores do Parque Oziel, os amigos Douglas Santos, de 19 anos, e Jefferson Rodrigues, de 22 anos, estão entre os participantes do projeto. “Foi o Jeff quem me chamou. Não vejo possibilidade de dar errado, porque gosto de foto, vídeo, edição e escrita poética”, conta Douglas. Para Jefferson, o desafio tem um extra: há pouco mais de um ano, por causa de uma doença rara, ele perdeu completamente a visão. Com a cegueira, nasceu o canal no YouTube Faz Isso Não!, que tem como tema principal a inclusão. “Por uma inclusão que não exclua”, ressalta. Jefferson conta que nunca escondeu onde morava e que ouviu diversas vezes: “Mas você não tem cara de que é do Oziel”. “Fiz faculdade de Comunicação, trabalhei seis anos na área. Nunca me senti representado na escola ou na faculdade e pensava: eu mereço estar aqui?”
Líder comunitário, rapper e educador, André VEX, de 32 anos, mora no local desde os 10 anos e viu a ocupação nascer. “Ainda criança, a gente ia ver o rally no terreno onde hoje é o Oziel e, de um dia para o outro, em fevereiro de 1997, houve a ocupação. Minha família viu a oportunidade da casa própria e nós viemos. Tive experiências boas e ruins”, relata. Para ele, o estigma de bairro violento não deveria ser alimentado de dentro para fora. “Por anos fomos considerados o lugar mais violento da cidade, mas, para mim, tudo bem a crítica que vem de fora. A que vem de dentro é que me espanta, me chateia”, completa.
O novelo laranja chega a William de Camargo Rodrigues da Silva, de 20 anos, morador do Parque Shalon, que trabalhava como vendedor ambulante. Uma morte abalou a família e a situação o levou a buscar novos caminhos. “Áudio, produção musical, vídeos, coisas que eu gosto mas não conhecia e que fui me interessando. Ver a seriedade das pessoas do projeto me motiva mais ainda”, conta. O cadeirante Raul Nicolas da Silva Costa, de 26 anos, o Raul Grau Xáá, queria ter um canal no YouTube. No projeto, encontrou as informações que precisava, mas, mais do que isso, encontrou novos amigos. “Construímos uma família aqui”, diz. Hoje, já publicou seus primeiros vídeos e sua alegria contagia.
Foi a fotografia que atraiu as irmãs Gleyciele e Graziela de Melo Rodrigues, de 21 e 18 anos, ao projeto. Elas nasceram em Campinas, mudaram para Alagoas ainda crianças e só voltaram a Campinas em 2014. Moradoras do Jardim Satélite Íris 3, elas gastam 3 horas de ônibus para ir e voltar das aulas. “Sempre me interessei por fotografia, mas nunca tive condições”, diz Gleyciele. “Já fizemos ensaios e até levamos a câmera para casa”, completa Graziela.
Aitor Pereira da Silva, de 20 anos, e Alef José Faria Ferreira, de 25 anos, resolveram participar do projeto sem saber que as atividades seriam no local e não se importaram. “Sempre gostei muito de fotografia e de escrever contos de fantasia. Estava procurando emprego, aqui não é encaminhamento de emprego, mas estamos aprendendo e trabalhando juntos por uma causa social”, comenta Alef. “Minha ideia é ter uma produtora e a ideia casou”, continua Aitor. Já Yuri Diogo Miranda Cavalheiri, de 22 anos, que visitava o projeto pela primeira vez, estava em busca de informações para fazer minidocumentários para o coletivo de hip hop P2RCA.
O novelo termina nas mãos de Lúcia Decot Sdoia, presidente do Instituto Padre Haroldo, que acompanhou o processo de gestação do Comunicaí. “Ouvindo vocês sinto que temos algo muito forte aqui. O projeto nasceu de um edital que o instituto venceu. Acompanhamos alguns coletivos com propostas parecidas e queríamos fazer o mesmo”, conta.
Em uma das atividades recentes, os participantes assistiram ao filme “Uma Onda no Ar”, de 2002, dirigido por Helvécio Ratton, em uma sessão feita em parceria com a escola do bairro. O filme conta a história de jovens de uma ocupação em Belo Horizonte (MG) que montam uma rádio comunitária. A ideia serviu de inspiração e assim começa mais um desafio. Os jovens de Campinas estão cada vez mais dispostos e capacitados a multiplicar a própria voz.