Por Rafa Carvalho
Oi, gente! Espero que vocês estejam bem! 2019, pra mim, foi como aquela onda maior e mais forte que chega, súbita, e sacode tudo, sabem? Confunde, arrasta, embola a gente na areia da vida que nem roupa suja na máquina batendo. Dá aquele caldo. Aquele vexame gostoso. Necessário? Há de ser sim – o mar é muito mais sábio que nós, acreditem. Tudo isso fica muito mais emocionante quando a gente tem uma coisinha nos braços. Que consuma todo nosso tempo, afunda a olheira na cara, mas tudo sara num sorriso. E, de repente – não mais que de repente – essa coisinha lhe encara sorrindo e diz: papai. Estou do lar. Todo filho. Corujão mesmo. Não consegui manter a coluna aqui, nem tantas outras frentes de trabalho. Este ano foi só um pequeno projeto aqui, uma participação sucinta lá… e pronto. Perdoem essa ausência. Mas garanto que Fé é o maior presente a que viver me permitiu o alcance. Aprendo com ele dia a dia. Salvo minha vida no seu colo. Ser pai é ainda mais maluco e esquisito que isso de ser poeta. Prometo que já volto à ativa. Logo logo. Que surpresas boas, em arte, estão germinando aqui. Nesse tempo. Entre uma fralda e outra. Prometo também que, em 2020, essa coluna volta semanalmente, como sempre quis que fosse – e nunca consegui ser. Agradeço muito a vocês, leitoras/es, que comungam desse jornalismo visceral do imprevisível que, no fundo, é a vida. A vocês que topam estar nesse mar comigo, com tudo de maré que é de vir. Agradeço ao Zé Pedro e à toda equipe ASN, que me compreendem e aceitam como o cara estranho da família. E num respiro, deixo aqui um poema inacabado e não revisto, que fiz pro Fé, num momento insone.
espero que você não herde a psoríase.
a displicência com seus dentes
pela adolescência
o sono em demasia.
espero que você não herde a intolerância
a repolho cozido
o apego exagerado à mãe
a teta protuberante que nos rende o inferno
na infância
espero que você não herde assim o
gordo baleia saco de areia
a primeira frustração amorosa aos 4 anos.
nem as outras todas, depois.
o abandono no corredor da creche
o acesso de repente irreversível à xuxa
espero que você não herde o pesadelo
em reincidência por um mês e meio
inteiro
sendo morto toda noite por um gato.
que não herde a vergonha do nordeste
por chacota
com o tamanho da cabeça
que não herde a relação confusa com os tamanhos
das coisas
com as formas
das coisas
com as coisas
das coisas
que não herde esse cheiro
que eu sentia no travesseiro de meu pai
que eu deixei impregnar
nos travesseiros
dos amores
até complicar a impermanência de tudo que é físico
no mundo
até secar a gratidão completa
dos amores
e sobrar apenas mágoa e esse cheiro
que não sai
e que já sentimos no seu berço
mas espero que você não herde.
a minha teimosia
meu chão fora dos pés
e os ossos em farelos do calcâneo
espero que não herde os tombos do nada
nem a disputa a que o mundo nos prepara desde cedo
no contato com um irmão
espero que não herde a negação
se quiser brincar com uma boneca
que não torça o tornozelo nalgum salto de sua mãe
herdando esse mau jeito meu. paterno
esse imbróglio de homem carateca
que não dança
nem solta
a cintura
que não herde o meu fracasso
dos primeiros batom e barbear
da primeira
e de todas as outras
cartas de amor.
espero que não herde o país e o mundo
a visão da cabeça pendurada
na volta da escola
a barriga do colega aberta à faca no banheiro
a porta trancada da biblioteca.
espero que não herde a noite estrelada
dentro do carro
no porto
esperando a hora da embarcação partir
deitado no colo da albanesa
nem o beijo escondido atrás do vestiário
no jogo de vôlei
da itália
nem o boliche com a bola sem furos na eslováquia
o suor a menos 17
os 10 mil km distância
o boquete nos arcos da lapa
a ostra e a boceta
na pedra da sereia
o tremor do corpo à química ágil
da paixão
espero que não herde esse vulcão sucinto
que ilumina esplêndido um momento
eterno
com fogos de calor e artifício
mas recobre de pó e morte
depois
o futuro inteiro
da pessoa
um alguém que prosseguirá estéril
tatuando diariamente a sua alma
com seus girassóis, cafunés e plenilúnios
espero que não herde a apologia geográfica
ao corpos de humanos.
a coleção de tranqueiras. paisagens.
a sina cigana
a sina indígena e preta
e, sobretudo, espero que não herde
a bestialidade branca.
nossas toxicidades tantas
de homens
sós
insustentáveis
e o meu azar com os bingos, os bichos
e todos os outros jogos
de azar.
espero que não herde alguma maldição por seu pai
ter mentido em rede nacional
em angola
por ter banhado àquela fonte pública vestido lindo de palhaço
nem por ter roubado um brinquedo, um chocolate
e um chips de cebola ao carrefour àquela noite
de 91
espero que não herde este orixá de cabeça
nem esta lua em escorpião
nem marte nesta casa
que não herde a queda dos cabelos
nem por genética
nem por herdar também esta tensão
que vai da nuca e trapézio
até o cóccix
de tudo
não herde a ideia insana de que vai mudar o mundo.
muito menos esse devaneio louco
de que pode carregá-lo
não herde o “não” ao beijo de marcela
só porque você tem 15 e ela 7 a mais
nem os falsos dogmas desse cristianismo
anticristo absurdo
ou qualquer convicção partidária.
não herde o meu gosto por esportes, meu humor
de piadas incontáveis
nem meus choros solitários
de segunda-feira
espero, desesperado e quase enfim
que não herde a insensatez de se sentir: poeta
que não herde a sensibilidade deslocada
de quem perde um ônibus pra tomar
a chuva
nem me herde a esperança de que vão lhe ouvir
lhe ler
reconhecer algo que faça
não herde a pretensão de que faz algo
no fim.
não herde a minha incompetência,
meus segredos insondáveis
minha alta imprecisão de vender
livros
discos
atividades
arte.
e de sobreviver de modo digno.
minha falta de jeito com as comemorações.
mas quem sabe você herde
a minha baixa frequência
de leitura
e assim, ainda, talvez, espero que não herde este poema.
não me leia.
e se ler, espero que me entenda
e ignore
espero que perceba
a sua herança
espero, filho
que você não espere
tanto quanto
eu
rafa carvalho