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CARTA #01
Nietzsche por Enrique Carceller Alcon

CARTA #01

Por Rafa Carvalho

Será que Cristo foi cristão? Marx marxista? Nunca pensaram na possibilidade de Deus ser… ateu?

Li um ou dois textos seus na faculdade. Nunca lhe escrevi até então. E faz já anos. Por outro lado pensei com você tantas vezes como se telepaticamente conversássemos. Proferi palavras como se rezasse e você, fosse algum santo.

Acontece que ninguém é santo. Logo, todos somos. Como todo filósofo, você chafurdava o sentido real de palavras… Somos antes de santos, isto: seres de linguagem. Assim, santo deveria significar aquilo ou aquela que é separado para Deus. Se nada acontece sem a permissão de Deus, nenhuma separação ou não-separação dessa se faria, fora de seu contento. Ao mesmo tempo, dizem os tementes… conforme os livros que o homem determinou sagrados… que Deus não faz acepção de pessoas. Assim como diz-se sermos escolhidos desde o ventre. Portanto, devemos ser todas escolhidas desde sempre, sem exceção. Nem se deve haver um santo, se houver alguém que não o seja.

Isso me faz pensar que: ou é pra todo mundo, ou não é para ninguém.

Tenho falado isso por aqui, à nossa Encruzilhada Estrela Dalva e em outros espaços. Gosto do que você fez com a palavra justiça, aliás. Nunca li um livro inteiro seu. Penso o que os nietzschianos diriam… você tem um palpite? Me acusariam de herege? Blasfêmia? Meus amigos marxistas me acusaram. Quando fui ser professor numa escola de gente bem rica e eu lhes argumentava que existia carência ali também.

Meus amigos cristãos me acusaram quando entrei no terreiro. Na aldeia, no templo, na mesquita. E a lista de acusações aqui seria imensa. Inclusive, nunca tivemos tantos juízes como hoje. Isso a que chamamos internet, transformou-se num imenso júri. Um tribunal só com meritíssimos.

O que julgariam – e você, o que pensa? – se eu dissesse lhe conhecer assim, mesmo sem tanta leitura? Aquela vez, Gonçalo Tavares disse que para ser bom escritor era preciso inapelavelmente ser um bom leitor. Eu concordei dizendo que sim, mas que não havia só literatura para lermos. Nem só livros, só letras. Mas a vida inteira… a rua, a praça, a feira. Talvez tenha sido julgado por muitos naquele momento. Talvez até por todos. Porém, vindo de um Guimarães Rosa, este mesmo conceito era bom e bonito.

Quando evangélico, menino… no início de minha revolta, de revirar a igreja… sem saber, eu lhe citava. Para explicar a diferença entre as tantas denominações existentes e as necessidades específicas das pessoas. Isso me fazia amá-las, ainda que ficasse triste. A vida nada mais era do que uma série de padrões oferecidos, com ganchos em quantidades e arranjos diferentes, onde escolhíamos um – ou algum nos era assim imposto – para nos prendermos e sentirmos segurança. Estabilidade.

Fora destes padrões, era Deus dançando. Talvez triste também.

O que você fez com a palavra liberdade também me agrada. Aquele que largasse de todos os ganchos, cairia. E ninguém quer cair. Mas aqui, talvez, começasse essa lista imensa dos equívocos: maldizemos a gravidade, como se ela fosse uma vilã; ou então a vivemos, como se fosse mesmo a única opção; e cair não machuca; o que machuca é o chão, o limite. Logo, se não há um chão fundamental, a queda é apenas voo e adrenalina. Emoção. Cair ou flutuar dá no mesmo. Ao invés disso, sonhando evitar o inferno, nós o recriamos todos os dias. Bem debaixo destes nossos pés.

O que você acha disto: para ser filósofo, precisar de um diploma em filosofia?

Eu perdi meu tesão nos diplomas, com o tempo. Em filosofia, não suportaria a carga de leituras obrigatórias. E também acho um fardo muito pesado esse de… entender o homem.

Há quem lhe chame de um dos cavaleiros do apocalipse! Fico pensando aqui se concordo… Mas, independente disto, talvez seja muito mais significativa essa nomeação, que se fosse um lord, um chevalier, um cavaleiro nomeado por algum governo, estado, uma instituição qualquer. Não quero com isso negar a importância de todos os títulos, necessariamente. E sim, eu receberia agradecidamente a chave de alguma cidade. Mas isto não me serviria em nada na hora de me abrir a mim… nosso crucial acesso. E outra: com a chave da cidade, posso abri-la a quem quiser, a todas? Ou o mundo seguiria sendo essa festa VIP, onde a maioria fica de fora? Onde os abraços e beijos são políticos, no pior sentido que inventamos para o termo. Onde os sorrisos são negócios. E onde a corrupção firmou-se tão incorporada, que só conseguimos julgar as pessoas que se opõem a nós… nunca o crime em si.

Afinal, você não acredita numa coreografia? Quantas pessoas tentaram inventar o avião? Picasso imitou aos africanos, ou havia uma conexão? Dois franceses criaram a câmera fotográfica ao mesmo tempo… em pontos distintos do globo… numa era pré-satélites, telecomunicações. Quando me perguntaram se me inspirava em Valter Hugo Mãe para escrever sem as maiúsculas, eu sequer o conhecia. Isso me aconteceu também em relação a outros autores. Afinal, estar num espectro distinto me fez sempre um mau leitor de livros, infelizmente. Não me inspirei em Bethânia pra viver o que hoje reconheço como boas sintonias nossas. E assim são outros tantos casos. Nosso mundo também é uma guerra por patentes e direitos de autoria. Como aquela marca suíça que vem aqui patentear a medicina popular e ancestral dos nossos caiçaras. Deste modo, as pessoas falam em nome de Deus. Escolhem por Ele. Falam e escolhem por Marx, por você. E até por mim, que nem conto direito.

Pois então, eu acredito nessa coreografia. Acredito numa sincronicidade, sim. Acredito em energia, que se transforma. E só. Não somos autores, criadores de nada. Na melhor das hipóteses, alquimistas. Médiuns, num sentido estrito do termo. Seres de linguagem… e dança. Por isso eu creio numa coreografia… uma que não nos ameace a dança livre. E aqui compreendo o paradoxo. Acredito que muita gente ainda não dance conforme a música do universo. Isso pode ser bom. Pode ser ruim. Acredito também, que muita gente anda batendo palma… pra doido dançar. Na festa VIP é o que mais se vê.

Queria saber o que você pensa desta quarentena? Que livros leria hoje em dia… em quais shows você teria vontade de ir… os filmes no streaming… que lives você assistiria. Ou se você teria instagram, faria uma live de si próprio? Queria também ver você num bar, num after… happy hour… com um grupo de nietzschianos duma universidade grande. Quantas cervejas isso duraria? Queria falar com você sobre futebol. E lhe apresentar o torresminho do bar do Manoel.

Mas a pergunta que eu mais lhe quero fazer nesta carta é: no íntimo intranscritível de seus aposentos, só e santo… como era a sua dança?

Talvez a quarentena atrapalhe em algo o meu envio. Como os livros que enviei à Itália e não chegaram. Ou talvez isto comprometa sua resposta. Mas não nos preocupemos. Escrevo desejando que esteja bem. E que fique em casa.

Dançando,

Rafa

Sobre Rafa Carvalho

Rafa Carvalho é poeta apesar de tudo. Em 15 anos de carreira, são 21 países, por quase todos continentes, trabalhando com Arte, Educação e fazendo de tudo, porque tudo é o que a Poesia pode ser. E, para quem acha que Poesia não é profissão, ele já trabalhou de garçom em inúmeros estabelecimentos, na demolição civil escandinava como imigrante parcialmente legal e, atualmente, está desempregado.