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OMS aponta Campinas como modelo em rede de saúde mental baseada nos direitos humanos
Complexo Hospitalar Ouro Verde, que tem leitos para psiquiatria (Foto Prefeitura de Campinas/Carlos Bassan)

OMS aponta Campinas como modelo em rede de saúde mental baseada nos direitos humanos

A cidade de Campinas foi apontada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como um dos destaques e modelo em política pública de saúde mental, por prescindir de hospital psiquiátrico e implementar ações fundamentadas no respeito integral aos direitos humanos. O destaque foi registrado no documento “Guia sobre serviços comunitários de saúde mental – Promovendo abordagens centradas na pessoa e baseadas em direitos” (“Guidance on community mental health services: Promoting person-centred and rights-based approaches“), que acaba de ser lançado pela OMS, justamente no momento em que a temática da saúde mental alcançou maior dimensão em função do confinamento e outras medidas restritivas impostas pela pandemia de Covid-19.

Na apresentação do documento, o Diretor Geral Adjunto da OMS, em Cobertura universal de saúde e Doenças Transmissíveis e Não-Transmissíveis, Dr.Ren Minghui, lembra que a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CRPD), assinada em 2006, reconhece o imperativo de serem empreendidas grandes reformas para proteger e promover os direitos humanos na saúde mental. Esta recomendação, lembra o Diretor Geral Adjunto, ecoou nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), “que clamam pela promoção da saúde mental e o bem-estar, com os direitos humanos em sua essência, e na Declaração Política das Nações Unidas
sobre a Cobertura Universal de Saúde”.

O Guia então divulgado pela OMS, completa o Dr.Ren Minghui, tem o propósito de “trazer urgência e clareza aos formuladores de políticas em todo o mundo e para encorajar o investimento em serviços de saúde mental baseados na comunidade, em alinhamento com os padrões de direitos humanos”. O documento, conclui, “fornece uma visão de cuidados de saúde mental com os mais altos padrões de respeito pelos direitos humanos e dá esperança de uma vida melhor a milhões de pessoas com deficiências psicossociais, e suas famílias, em todo o mundo”.

Em sua Introdução, o documento evidencia que a saúde mental tem recebido maior atenção na última década de governos, organizações não-governamentais e organizações multilaterais, incluindo as Nações Unidas (ONU) e o Banco Mundial “Com maior consciência da importância de fornecimento de serviços e cuidados centrados na pessoa, com base nos direitos humanos e orientados para a recuperação, os serviços de saúde mental em todo o mundo estão se esforçando para fornecer atendimento e suporte de qualidade”, assinala o documento.

O documento assinala que, no entanto, muitas vezes os serviços enfrentam substanciais restrições de recursos, operam dentro de leis e regulamentações desatualizadas, “com estruturas e uma confiança excessiva enraizada no modelo biomédico em que o foco predominante de cuidado é no diagnóstico, medicação e redução dos sintomas enquanto toda a gama de determinantes sociais que impactam na saúde mental das pessoas é esquecida, impedindo o progresso em direção à plena realização de uma abordagem baseada nos direitos humanos”.

Como resultado, lamentam os responsáveis pelo documento, “muitas pessoas com problemas de saúde mental e psicossociais em todo o mundo estão sujeitas a violações dos seus direitos humanos, incluindo nos serviços de assistência onde faltam cuidados e apoio adequados”.

Daí a necessidade de ações como a produção do “Guia sobre serviços comunitários de saúde mental – Promovendo abordagens centradas na pessoa e baseada em direitos”. O documento fornece exemplos de boas práticas em serviços de saúde mental em diversos contextos em todo o mundo e descreve as conexões necessárias com os setores de habitação, educação, emprego e proteção social, “para garantir que as pessoas com as condições de saúde mental estejam incluídas na comunidade e podem levar uma vida plena e significativa”. O Guia também apresenta exemplos de redes abrangentes, integradas, regionais e nacionais de serviços e apoios de saúde mental baseados na comunidade e inclui recomendações e ações específicas para os diferentes países e regiões.

Guia

O exemplo da rede de Campinas

Campinas é citada como modelo no Capítulo 4 do Guia, que trata das “Redes abrangentes de serviços de saúde mental”, e especificamente no subcapítulo sobre “Redes de saúde mental bem estabelecidas”.

O documento assinala que “as redes comunitárias de saúde mental do Brasil oferecem um exemplo de como um país pode implementar serviços em grande escala, ancorados nos direitos humanos e nos princípios de recuperação”. Continua afirmando que, operando sob o Sistema Único de Saúde (SUS), a rede de serviços integrais, incluindo os centros comunitários de saúde mental, “são um produto das poderosas reformas psiquiátricas iniciadas durante o final da década de 1970, que mudou o foco do tratamento dos hospitais para as comunidades, dentro de um sistema de apoio e quadro legal e regulamentar”.

Neste contexto, salienta o Guia da OMS que Campinas, um município brasileiro do Estado de São Paulo, “oferece um modelo de como isso funciona em nível local, onde todos os serviços são prestados por meio desse modelo, seguindo o fechamento do hospital psiquiátrico da cidade em 2017″. No caso, se refere ao Serviço de Saúde Cândido Ferreira, um dos pioneiros e principais protagonistas da reforma psiquiátrica ocorrida no Brasil. O Cândido Ferreira é parceiro do município na rede de saúde mental de Campinas, com funcionários atuando e gerindo CAPS e outras unidades da rede no município.

De fato, nota o documento que, no Brasil, “os cuidados de saúde mental com base na comunidade são prestados em todo o país por meio de uma ampla rede de serviços orientada pelos princípios dos direitos humanos e uma abordagem baseada na comunidade”.  Essa rede, continua, “reflete o indivíduo, a família e a comunidade”.

A configuração da rede “reflete as necessidades exclusivas dessa área” e é composta por centros comunitários de saúde mental (na forma dos Centros de Atenção Psicossocial CAPS) e Centros de Atenção Primária à Saúde de Base Comunitária. Estes são os mecanismos de coordenação primária na rede, sendo complementados por outros serviços, como os serviços especializados que fornecem suporte de saúde mental para os Centros de Atenção Primária, as equipes de Consultórios na Rua, as estratégias de desinstitucionalização, os leitos de saúde mental em hospitais gerais e de emergência e os serviços de urgência e emergência.

O documento da OMS prossegue salientando que os CAPS, operando como “centros de saúde mental baseados na comunidade, são a pedra angular da rede de  saúde mental baseada na comunidade no Brasil”. A abordagem a partir dos CAPS, segundo a avaliação da OMS, é “baseada em direitos e centrada nas pessoas, e seus objetivos principais são fornecer atenção psicossocial, promover autonomia, abordar desequilíbrios de poder e aumentar a participação”.

Os CAPS fornecem ainda “suporte de cuidados de saúde mental para indivíduos com doenças mentais graves ou persistentes, com condições de saúde e / ou deficiências psicossociais, inclusive durante situações desafiadoras e de crise”. Como um órgão coordenador de rede, os CAPS também “oferecem suporte a outras áreas de saúde mental e saúde geral”.

Campinas conta com 14 CAPS, sendo quatro para pessoas com transtornos graves, crônicos e em crise localizados nos 5 Distritos de Saúde, com duas unidades na Região Sudoeste comporta 2 unidades. Outros quatro CAPS são destinados a pessoas com problemas decorrentes do uso ou abuso de álcool e outras drogas localizados nas regiões Sul, Leste, Sudoeste e Noroeste. Dois CAPS são para crianças e adolescentes com transtornos mentais graves e persistentes, inclusive pelo uso de substâncias psicoativas e mais dois CAPS são para pessoas com transtornos graves em regime semi-intensivo e não intensivo.

CAPS AD (Centro de Atenção Psicossocial – Álcool e Drogas) Parque Itália no dia de sua inauguração, a 28 de junho de 2019 (Foto Prefeitura de Campinas/ Luiz Granzotto)

CAPS AD (Centro de Atenção Psicossocial – Álcool e Drogas) Parque Itália no dia de sua inauguração, a 28 de junho de 2019 (Foto Prefeitura de Campinas/ Luiz Granzotto)

Os CAPS são orientados por três princípios, evidencia o documento da OMS: (1) Política de portas abertas, (2) Envolvimento da comunidade e (3) Desinstitucionalização.

Complementam a rede de saúde mental em Campinas os Centros de Saúde. São 67 no município. Os Centros de Saúde comunitários, descreve o Guia produzido pela OMS, “são considerados o primeiro ponto de contato para pessoas que entram no sistema de saúde pública no Brasil, fornecendo cuidados básicos comunitários em clínica geral, pediatria, ginecologia, enfermagem e odontologia”.

O documento salienta que as equipes de Saúde da Família são as responsáveis pela vinculação da comunidade ao Centros de Saúde. Nesses Centros, trabalham equipes multiprofissionais com formação em saúde mental, que fazem o primeiro atendimento de pessoas que procuram as unidades com demandas na área.

Outro elemento fundamental na rede de saúde mental no Brasil, como no caso de Campinas, segundo o documento da OMS, são os Consultórios na Rua, que “fornecem apoio e cuidados de saúde aos desabrigados na comunidade, fornecendo suporte geral de saúde mental, bem como suporte a indivíduos com doenças mentais e condições de saúde, deficiências psicossociais e problemas e necessidades associadas ao uso de substâncias”.

Leitos em hospitais e desinstitucionalização em Campinas

O documento da OMS mostra como Campinas foi exemplo de desinstitucionalização na saúde mental. Com isso, os hospitais públicos, como os hospitais municipais Mário Gatti e Ouro Verde, passaram a contar com leitos para psiquiatria.

“Em Campinas, a hospitalização é geralmente utilizada para suporte durante uma situação de crise, dependendo de sua gravidade e das necessidades de um indivíduo”, diz a OMS. No entanto, o documento afirma que esse serviço oferecido pelos hospitais públicos “permanece vinculado à rede principal de base comunitária e, desta forma, se um indivíduo é internado em um leito de saúde mental em um hospital geral, a equipe do hospital e a equipe do serviço de referência (por exemplo, um CAPS) colabora no plano de recuperação da pessoa”.

A rede de saúde mental no Brasil, continua o Guia da Organização Mundial da Saúde, inclui estratégias de desinstitucionalização “elaboradas especificamente para indivíduos que receberam alta de hospitais psiquiátricos ou hospitais de custódia após longos períodos de hospitalização”.

Essas estratégias abrangem “instalações de vida independente que são casas localizadas na comunidade e que fornecem uma opção de acomodação independente para indivíduos que, no momento da alta, não têm possibilidade de regressar à casa da família ou não têm família ou outras redes de apoio disponíveis”. A reabilitação é então fornecida “por meio de uma parceria estreita entre o indivíduo e os CAPS, com o objetivo de promover autonomia, inclusão social e garantia de direitos”.

O documento nota que Campinas possui 20 residências independentes, com moradores que integram o Programa De Volta para Casa. A estratégia de desinstitucionalização, completa o documento, envolve a transferência de dinheiro para indivíduos que receberam alta de hospitalização de longo prazo “para fortalecer a autonomia, garantindo que tenham recursos para fazer suas próprias escolhas”.

Também integram a política de saúde mental comunitária no Brasil, sendo Campinas um modelo, diz o documento da OMS, elementos como os Centros Comunitários de Convivência, os programas de economia solidária, as iniciativas culturais através de associações e cooperativas, entre outros.

A rede de saúde mental baseada na comunidade construída no Brasil, conclui o documento da OMS, representa “um exemplo de como um país pode implementar serviços escalonáveis ​​e iniciativas baseadas em direitos humanos e princípios de recuperação, para atender às necessidades específicas de saúde mental de cada comunidade”, sendo Campinas um modelo de como essa rede pode funcionar.

Essa rede, lembra a OMS, “foi negociada em todos os níveis e com todas as partes interessadas do sistema de saúde mental, incluindo indivíduos que utilizam os serviços, familiares, movimentos da sociedade civil e profissionais de saúde mental, promovendo adesão e comprometimento”. Naturalmente, essas redes “estão em constante evolução para atender a novos desafios, como resultado do diálogo entre as partes interessadas”, finaliza o documento, que inclui, como referência para a busca de novas informações, por interessados de todo o mundo, endereços virtuais de órgãos e instituições que trabalham com a saúde mental no Brasil e especificamente em Campinas, como a Secretaria Municipal de Saúde e o Serviço de Saúde Cândido Ferreira. Outra referência é um vídeo no Youtube sobre o Programa Maluco Beleza, produzido por usuários do Cândido Ferreira.

Orçamento em saúde mental

O destaque dado pela OMS para Campinas como modelo em rede de saúde mental baseada em ações comunitárias e nos direitos humanos é um reconhecimento à luta histórica da cidade pela desinstitucionalização, defende o ex-secretário municipal da Saúde, Dr.Cármino de Souza. Ele foi gestor municipal da saúde entre 2013 e 2020, período em que foi completada a reforma na política de saúde mental, com o encerramento em 2017 das atividades do setor do Serviço de Saúde Cândido Ferreira que recebia internações de pacientes. Há anos o Cândido tem atuado como parceiro do município nos CAPS, Centros de Convivência e outros elos da rede de saúde mental municipal.

“Campinas foi pioneira em ações de desinstitucionalização e dedica grande parcela do orçamento municipal em saúde para saúde mental”, observa o Dr.Cármino de Souza. Cerca de 7% do orçamento municipal da Saúde são destinados à política de saúde mental, um percentual similar ao de países escandinavos.

Além do suporte à rede de CAPS e outras unidades da rede, a Prefeitura de Campinas tem intensificado o apoio a ações como o Programa De Volta para Casa e a Geração de Trabalho e Renda, como iniciativa de reabilitação psicossocial. Campinas conta com 5 unidades de Geração de Trabalho e Renda com esse perfil, sendo três na Região Noroeste, uma na Sudoeste e uma na Leste, esta com abrangência municipal e que inclui mais centenas de pessoas.

 

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Organização sediada em Campinas (SP) de notícias, interpretação e reflexão sobre temas contemporâneos, com foco na defesa dos direitos de cidadania e valorização da qualidade de vida.