Por José Pedro Soares Martins, 7 de março de 2017
No norte do Piauí, região Nordeste do Brasil, dezenas de trabalhadores foram encontrados em condições de escravidão, em áreas de exploração de cera de carnaúba, exportada para a indústria de computação e outros segmentos. Em 2016, mais de 700 pessoas foram resgatadas da condição de escravidão no país, a maioria deles no Nordeste, segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT). Algumas das vítimas foram localizadas comendo e dormindo junto com porcos.
Desde 1995, mais de 50 mil escravos foram libertados no Brasil, em ações do Ministério Público do Trabalho e Ministério do Trabalho e Emprego. Em dezembro de 2016, a Corte Interamericana condenou o Estado brasileiro por não prevenir a mais degradante modalidade de exploração da pobreza (ler aqui).
Mudanças no quadro histórico da pobreza foram acenadas por políticas públicas no início do século 21. Pelo Programa Bolsa Família, os mais pobres passaram a receber do governo, desde 2003, complemento de renda mensal. Hoje são mais de 14 milhões de famílias beneficiárias.
Outro programa, o Fome Zero, foi instituído em 2003 e distribui alimentos aos mais pobres. Mais um programa, o Brasil Sem Pobreza, foi criado para erradicar a pobreza extrema.
Em setembro de 2014, a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) divulgou o Relatório sobre o Estado da Insegurança Alimentar no Mundo (ver aqui) e apontou o Brasil como exemplo no combate à desnutrição e à pobreza. Segundo a FAO, com os programas Fome Zero, Bolsa Família e Brasil Sem Miséria, foram reduzidas a pobreza extrema em 75% e a pobreza em 65%. 25 milhões de brasileiros saíram da pobreza.
Mas permanecem bolsões de pobreza no Nordeste e periferias metropolitanas. Em 60,09% do semiárido nordestino, onde vivem 9 milhões de pessoas, o Índice de Desenvolvimento Humano varia entre Baixo e Muito Baixo.
Pois o combate à pobreza nesses territórios está em xeque pela crise econômica que multiplicou desempregados. São mais de 12 milhões, ou 12% da População Economicamente Ativa, em 2017. Em 2015 eram 8,5%. Com o desemprego, milhares que melhoraram a renda voltaram à vulnerabilidade.
Para especialistas, apenas a recuperação econômica resgata políticas contra a pobreza. “A redução da pobreza no Nordeste depende do crescimento da economia regional, que depende da recuperação da economia brasileira”, adverte Gustavo Gomes, ex-secretário de Planejamento, Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente de Pernambuco.
Entre 2000 e 2010, a taxa média anual de crescimento do PIB per capita na região foi de 3,21%, a maior do país, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Mas tudo mudou. O Brasil teve crescimento negativo em 2015 e 2016 e o mesmo pode se repetir em 2017. O Nordeste teve queda de 6% do PIB em 2016.
Outra crise, política, incide no combate à pobreza. No dia 31 de agosto de 2016, por 61 votos a 20, o Senado cassou o segundo mandato da presidente da República, Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhadores do antecessor Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010). Rousseff foi presidente entre 2011 e 2014 e desde a posse no segundo mandato, em 2015, enfrentou movimento pela sua destituição.
Como presidente assumiu Michel Temer, ex-vice de Rousseff. Ligado ao Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), Temer assumiu como prioridade aprovar pelo Parlamento medidas de “controle dos gastos públicos”. Caso da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 241/2016, estabelecendo novo regime fiscal e indicando que nenhum investimento nas áreas sociais, durante 20 anos, pode ser superior ao reajuste inflacionário do ano anterior.
Em estudo sobre a PEC 241 (ler aqui), Paulo Sena, assessor da Câmara dos Deputados, observou que, ao fixar nova norma de cálculo dos mínimos constitucionais de Educação e Saúde, o governo federal “não apenas muda a regra, mas atinge e fere princípio sensível, e assim viola cláusula pétrea” da Constituição brasileira, de 1988, que vincula recursos da receita de impostos ao desenvolvimento do ensino.
Organizações se mobilizaram, como Fundação Abrinq (ler aqui), União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME) e Campanha Nacional pelo Direito à Educação (ler aqui). Mas a PEC foi aprovada pelo Senado e está em vigor. A diminuição de verbas para a educação por 20 anos preocupa a sociedade civil.
“O perverso corte de verbas terá, entre outros efeitos, a falta de vagas para milhares de crianças na educação infantil e sem educação infantil adequada, para todos, permanece o ciclo da pobreza”, afirma Vital Didonet, ex-vice-presidente da Organização Mundial para a Educação Pré-Escolar.
Outra reforma em discussão, a da Previdência, coloca em risco o Bolsa Família. Temer quer aumentar a idade mínima para aposentadoria e reduzir benefícios, para diminuir o déficit da Previdência, estimado em R$ 150 bilhões.
No início de março o PMDB, partido do presidente, divulgou campanha afirmando que, sem essa reforma, “acabam os programas sociais”, como o Bolsa Família. A economista Denise Gentil, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, tem lembrado que o governo paga R$ 500 bilhões anuais somente para bancos em juros. Ameaças reais ou não, a tendência é de menos recursos contra a pobreza.
Deve permanecer baixo, com isso, o investimento em saneamento, fundamental contra a crise sanitária que se agrava e atinge os mais pobres. Pertencem a famílias de baixa renda do Nordeste a maior parte dos bebês que nasceram com microcefalia associada ao Zika Vírus, transmitido pelo mosquito Aedes aegypti, cuja proliferação ocorre em áreas sem saneamento e que também dissemina dengue e chikungunya.
Desde outubro de 2015 o Brasil passa por um surto de microcefalia, com 2.289 casos de bebês atingidos e mais de 3 mil casos em investigação. A microcefalia é uma malformação associada ao vírus da Zika, cujo florescimento em 2015 o projetou como emergência de saúde internacional.
“Sem investimento em saneamento continuarão as chamadas doenças da pobreza. A face mais cruel do Brasil vítima da corrupção corroendo o poder público”, diz a médica Dra.Evelyn Eisenstein, do Centro de Estudos Integrados Infância, Adolescência e Saúde. Ela resume o sentimento dos brasileiros que viveram a esperança na redução da pobreza histórica – que tem as crianças como principais vítimas -, mas que por várias crises agora experimenta indignação e temor pelo futuro.