Por José Pedro Martins
A seca devasta há seis anos o Nordeste, com impactos como quedas drásticas na produção agrícola, redução de rebanhos e colapso no abastecimento em várias cidades. Entre 2013 e 2015, a Região Sudeste, a mais rica e populosa do país, também passou por crise hídrica severa, sendo a seca observada no Verão de 2014 resultante de atividades anômalas verificadas desde o Norte da Austrália, segundo estudo do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Estes dois casos de eventos extremos são indicadores evidentes dos efeitos no Brasil das mudanças climáticas de alcance global e uma das demandas imediatas deste cenário inquietante é a necessidade de ajustes no sistema de gestão de recursos hídricos, baseado na Política Nacional de Recursos Hídricos, nos termos da Lei 9.433 (aqui), de 1997, que acaba portanto de completar 20 anos.
Conhecida como a Lei das Águas, a Lei 9.433/97 definiu que a gestão dos recursos hídricos deve ser feita no Brasil no âmbito das bacias hidrográficas, sendo o Comitê de Bacias o órgão representativo dessas unidades de planejamento e gestão. A Lei das Águas também estabeleceu como instrumentos de gestão os Planos de Recursos Hídricos por bacia, o enquadramento dos corpos de água em classes, a outorga do direito de uso das águas, a cobrança pelo uso da água como mecanismo financeiro de gestão, a compensação aos municípios pelo uso de recursos hídricos e o Sistema de Informações sobre Recursos Hídricos.
Todos esses instrumentos ficaram em xeque em razão do agravamento das mudanças climáticas nas últimas duas décadas, o período em que a Lei das Águas está em vigor. Desde 2015, especificamente, os elementos climáticos se somaram à instabilidade política e econômica, resultando na necessidade de reformulação sobretudo nos mecanismos financeiros de gestão dos recursos hídricos.
Como financiar as obras essenciais e garantir a sustentabilidade e a segurança hídrica, sobretudo nas áreas mais populosas e que já sofrem déficit de água? Esta é a pergunta que incomoda gestores públicos, acadêmicos e ambientalistas, mas que geralmente não aparece na agenda política.
Uma experiência pioneira no Brasil, na bacia dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (PCJ), ajuda a dar resposta a esta grande inquietação, que ainda não é explicitada por gestores e sociedade em geral, mas que pode cobrar a fatura em futuro próximo, se não houver resposta adequada do conjunto de atores envolvidos. A experiência é o EcoCuencas, uma ação multilateral financiada pela Comissão Europeia e que tem como objetivo a promoção da melhora da gestão de bacias hidrográficas, aumentando a resiliência diante de mudanças do clima e desenvolvendo mecanismos de redistribuição financeira.
Contribuição de EcoCuencas – A Ação EcoCuencas foi iniciada em dezembro de 2014, com horizonte de três anos, envolvendo nove parceiros latino-americanos e europeus. A iniciativa está fundamentada no conceito de que a bacia hidrográfica é um espaço estratégico para o desenvolvimento de ações de prevenção e combate às mudanças climáticas. Cuenca é “bacia” em espanhol.
O orçamento total de EcoCuencas é de 2,5 milhões de euros, cobertos em 75% pela Comissão Europeia como parte de seu programa Waterclima-LAC. Os outros 25% são derivados das contribuições dos vários parceiros do projeto, como a Agência das Bacias PCJ, o coordenador do processo nestas bacias que somam mais de 50 municípios, comO Campinas, Piracicaba, Jundiaí e Limeira, e onde vivem mais de 5 milhões de pessoas.
As bacias PCJ foram, então, uma das três regiões na América Latina que receberam esse projeto-piloto de prevenção aos eventos extremos provocados pelas mudanças climáticas. As outras duas são a bacia do rio Chira-Catamayo, entre Equador e Peru, e a bacia do reservatório Rio Grande II, da Colômbia.
A intenção dos parceiros é que os projetos-piloto demonstrem de forma prática que os mecanismos de redistribuição econômica no âmbito das bacias são relevantes para alcançar uma gestão integrada dos recursos hídricos e uma maior resiliência frente as mudanças climáticas. E isso foi feito, de acordo com Sergio Razera, diretor-presidente da Agência PCJ.
Nas Bacias PCJ, observa Razera, EcoCuencas centrou-se precisamente em promover o debate sobre mecanismos de redistribuição financeira e mudanças do clima. “Houve um conjunto de atividades que permitiu um avanço significativo no reconhecimento dos desafios para a governança da água diante do contexto das mudanças climáticas”, salienta o presidente da Agência PCJ.
Destacam-se, nesse sentido, ele acrescenta, desafios referentes ao financiamento das ações previstas nos planos de bacias, muitas delas favoráveis à adaptação da mudança do clima, e ao reforço de capacidades para operacionalização de uma infraestrutura mais resiliente nas bacias hidrográficas. “Também se avançou no debate sobre usos de mecanismos econômicos como instrumentos favoráveis à adaptação diante das mudanças do clima, como cobrança pelos usos de recursos hídricos e pagamentos por serviços ambientais”, ele complementa.
Sergio Razera nota ser esperada a confecção de um guia para o tema, com foco na América Latina, e as Bacias PCJ devem ser abordadas em alguns exemplos. Há, ainda, um projeto piloto que vem sendo desenvolvido especificamente para as Bacias PCJ. Neste contexto, além do reforço de capacidades locais, estão sendo discutidas questões referentes a financiamento da política de recursos hídricos, planejamento, integração de sistema de informações e promoção de boas práticas para gestão da água. “Há, por fim, um conjunto de atividades voltadas à promoção do debate sobre mudanças do clima e difusão de informações sobre o tema”, completa.
As Bacias PCJ são um exemplo concreto da necessidade de adaptação às mudanças climáticas, incluindo modificações no sistema de gestão e nos mecanismos financeiros. Como lembra o diretor-presidente da Agência PCJ, cada vez mais as Bacias dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí convivem com consequências de extremos climáticos: em 2010/2011 houve uma série de enchentes na região e o Sistema Cantareira chegou a extravasar. Já em 2014/2015, ocorreu a pior estiagem de que se tem registro.
“Considerando que ainda existem muitas lacunas de governança, a recorrência destes fatores nos obriga a fortalecer o sistema de gestão dos recursos hídricos, para que as bacias sejam mais resilientes e os usuários de recursos hídricos estejam menos vulneráveis”, diz Razera.
Nas Bacias PCJ, adverte ele, são esperados planos de bacia mais dinâmicos e abertos à questão a adaptação, assim como os sistemas de informações que aprimorarem seus mecanismos de integração para suportarem esta nova realidade. Ele lembra que na França há uma série de exemplos positivos, como a Bacia do Rhône, que possui um plano de adaptação às mudanças do clima, que promove estratégias de adaptação.
Com fundamento nos aprendizados obtidos na ação EcoCuencas, Sergio Razera frisa que, diante do avanço dos impactos das mudanças climáticas, os sistemas de gestão de recursos hídricos precisam, certamente, de mecanismos financeiros mais robustos. “Com base na experiência das Bacias PCJ, podemos afirmar que há planos bem estruturados e uma boa governança de água. A limitação mais relevante tem sido, contudo, capacidade de implementar as ações planejadas. Apesar de as Bacias PCJ possuírem uma arrecadação de cobrança, verifica-se que os valores têm decrescido quando levado em conta a questão inflacionária. Isso limita ainda mais a capacidade de investimento e manutenção do sistema de gestão”, ele comenta.
O Plano de Bacias 2010-2020 para as Bacias PCJ, formulado antes da crise hídrica de 2013-2015 e da crise política e econômica, previa a necessidade de investimento de R$ 2 bilhões para garantir todas as obras e ações previstas, visando entre outros pontos um avanço ainda maior no tratamento dos esgotos urbanos. Entretanto, somente R$ 600 milhões estavam de fato garantidos, em razão do que se prevê para a cobrança pelo uso da água e outros investimentos. Este hiato tornou-se ainda mais perigoso após a crise hídrica e econômica, levando à redução da arrecadação citada pelo diretor-presidente da Agência PCJ. Entre 2009 e 2015, houve uma queda de 34% nos recursos federais e 44% nos recursos estaduais destinados à gestão dos recursos hídricos nas bacias.
Outro ponto a ser salientado, em termos de ajustes no sistema de gestão de recursos hídricos, diante do incremento das mudanças climáticas, é o reforço de capacidades. “Há uma demanda muito grande de capacitação de pessoal, especialmente quando analisada a capacidade de desenvolvimento e implementação de projetos”, avisa Sergio Razera. Ele cita que há, também, um déficit muito grande em capacidade para operação dos sistemas cada vez mais complexos que têm sido utilizados para manutenção da sustentabilidade hídrica das bacias.
São muitas variáveis, nesse sentido, que o sistema de gestão de recursos hídricos deve considerar, em face da intensificação de eventos climáticos extremos derivados da mudança do clima. As bacias PCJ sofreram diretamente esses efeitos climáticos na crise de 2013-2015.
Crise hídrica, Sistema Cantareira e Bacias PCJ - Entre 2014 e 2015, principalmente, as grandes e médias cidades da Região Sudeste do Brasil viveram momentos próximos do pânico. Rodízios no abastecimento público, admitidos ou não pelos gestores, eram recorrentes. Muitas atividades econômicas foram seriamente prejudicadas. Instituições como a Unicamp adotaram medidas severas de contenção do uso da água.
Um estudo do INPE (aqui) mostrou que os meses de dezembro de 2013 a março de 2014 apresentaram, para a região sudeste do Estado de São Paulo, especificamente, déficits expressivos de precipitação da ordem de 95.5 milímetros (dezembro), 137.0 (janeiro), 143.6 (fevereiro) e 106.8 mm (março), respectivamente. É a área onde estão as regiões metropolitanas de Campinas e São Paulo, localizadas nas bacias do PCJ e do Alto Tietê. A média climatológica nesses meses, no período 1981-2010, foi de 918.7 mm, mas no verão de 2013-2014 a precipitação foi de apenas 439 mm na região sudeste de São Paulo.
O estudo do INPE mostrou que a seca sobre a Região Sudeste do Brasil, durante o verão 2014, teve como origem “as condições de atividade convectiva anômalas na região tropical ao norte da Austrália, desencadeando uma sequência de processos conectando a região tropical e extra-tropical do oceano Pacífico, até atingir o oceano Atlântico e a região sudeste do Brasil”. Como resultado, defendem os autores do estudo, houve o estabelecimento de um sistema anômalo de alta pressão sobre o Oceano Atlântico que apresentava-se aquecido, “que forçou os sistemas frontais a realizarem trajetórias oceânicas, favoreceu a manutenção do aquecimento oceânico através da incidência de radiação solar, transportou umidade tropical (do Atlântico e da Amazônia) para o sul do Brasil, e desfavoreceu a formação de eventos de Zona de Convergência do Atlântico Sul (ZCAS), um dos principais mecanismos de produção de chuva sobre a Região Sudeste do Brasil”.
Um dos estudos considerados na análise do INPE revelou que a falta de precipitação no Sudeste do Brasil em 2014 e 2015 foi excepcional, porém não incomum, como, por exemplo, o episódio de seca observado em 2001. O estudo revelou ainda que a região vem sofrendo com déficit de precipitação desde o final da década de 1990.
Para os autores do estudo do INPE, não se comprovou a possível contribuição humana no risco climático associado à seca 2014/2015 observada na Região Sudeste do Brasil. Para eles, a quadruplicação da população desde 1960 e o aumento do consumo de água na Região Metropolitana de São Paulo foram identificados como muito provavelmente “os principais fatores para o estabelecimento da crítica condição de déficit hídrico observado em 2014/2015 na região”.
De qualquer modo foi um evento climático extremo, o que, segundo muitos cientistas, tende a se acentuar como consequência do aquecimento global que pode ter, sim, causas antropogênicas, como a queima exagerada de combustível fóssil. Em termos concretos, houve uma redução espetacular nos reservatórios do Sistema Cantareira, que abastecem quase a metade da Grande São Paulo e são formados por águas da bacia do rio Piracicaba. O equilíbrio hídrico na própria bacia do rio Piracicaba depende muito da água liberada pelo Cantareira. Na outorga que vigorava até agosto de 2014, podiam ser transferidos até 5 metros cúbicos por segundo do Cantareira para alimentar a bacia do rio Piracicaba e até 31 m3/s para o abastecimento da Grande São Paulo.
Para continuar o abastecimento na Grande São Paulo e liberação de água para o PCJ, o governo de São Paulo e a Sabesp, detentora da outorga, recorreram ao Volume Morto do Cantareira, o que nunca tinha ocorrido antes. Volumes muito reduzidos tiveram que ser transferidos para as bacias PCJ, que sentiram muito essa redução.
O diretor-presidente da Agência PCJ, Sergio Razera, entende que a seca de 2013-2015 mostrou, em primeiro lugar, que “a pior seca ainda está por vir”, isso porque acreditava-se que a seca de 1951/52 nunca mais ocorreria, “daí que o planejamento e a execução das ações tinham este evento como referência, pior que isso, os grandes investimentos para grandes obras sempre ficavam nos planos e nunca viravam realidade”, ele lamenta.
Em segundo lugar, diz Razera, a seca de 203-2014 comprovou que o aprendizado de que “não existe uma solução única para a segurança hídrica. Temos que trabalhar com reservação, reúso, mas tão importante quanto isso temos que trabalhar com recuperação e preservação dos mananciais, e medidas de uso racional – combate às perdas nas redes de distribuição e uma quantidade de água menor por habitante dia”. Terceiro, complementa, “não basta planejar, temos que implementar as ações propostas nos planos e estudos, que são sempre muito bem feitos, porém acabam ficando nas prateleiras”.
Parceria com a França – De qualquer modo a grande seca de 2013-2015 comprovou que as bacias hidrográficas precisam, sim, consolidar sua resiliência para enfrentar eventos climáticos extremos. Nesse âmbito as Bacias PCJ têm aprendido muito com a experiência francesa, o que ficou evidente no contexto da implementação das ações de EcoCuencas.
O maior parceiro no contexto de EcoCuencas é o Office International de l’Eau, da França. Alain Bernard, chefe do Polo de Gestão Integrada de Recursos Hídricos do Office International de l’Eau, nota que, na verdade, existem diferenças climáticas de uma região para outra, mas o impacto das mudanças climáticas já é muito visível em alguns lugares, em particular no sudoeste da França, que fica próxima aos Pirineus. Há cerca de 20 anos atrás, observa, havia uma condição climática muito boa nessa região.
No verão, muito quente, existe uma demanda grande de água para a agricultura, turismo, lazer. Mas isto ocorria, ele assinala, ao mesmo tempo em que as águas resultantes do derretimento das neves das montanhas chegavam aos lugares para atender a esta demanda entre julho e agosto.
Em 20, 30 anos, o processo de derretimento avançou bastante, passando a ocorrer em maio, junho e então não correspondem mais ao período de estiagem cujas necessidades de água são maiores. “Isso então ilustra de forma bem clara o impacto das mudanças climáticas em uma bacia na França. E, obviamente, a frequência dos eventos extremos – secas ou inundações – é bem visível”, comenta.
Os eventos são mais frequentes e mais violentos, tanto para as secas como para as enchentes, então tais fenômenos são claros e as seis agências de água da França já adaptaram os seus planos de gestão às suas realidades, desenvolvendo para isto planos de adaptação às mudanças climáticas que reforçam que as medidas que precisam ser tomadas de imediato.
O chefe do Polo de Gestão Integrada de Recursos Hídricos do Office International de l’Eau entende que no Brasil, até o momento, o conjunto de medidas de adaptação às mudanças climáticas ainda não foi tomado como deveria. As ações, por vezes, entende ele, estão diluídas em alguns planos de gestão e entre o plano e a implementação “sempre existem diferenças e isto se aplica também às medidas de adaptação às mudanças climáticas”.
Na sua opinião, nem sempre os Planos de Recursos Hídricos antecipam, suficientemente, medidas de adaptação e, por vezes, não abrangem medidas necessárias e quando estas medidas são abrangidas, podem não ser suficientes e, isto representa um problema que pode ter várias origens; governança, metodologia de planejamento e operacionalização dos projetos. “Porque para que um projeto seja implementado, é preciso saber quem lidera, quem implementa em determinado território e também quem vai implementá-lo financeiramente; também temos um conjunto de dificuldades do modelo brasileiro que se encontram no tema de adaptação às mudanças climáticas: governança, planejamento e financiamento”, completa Alain Bernard.
O diretor da ação explica que o projeto EcoCuencas nasceu da publicação de um edital pela Comissão Europeia, que foi o primeiro em 20 anos que pontuou o tema água e gestão dos recursos hídricos. Como havia várias conexões com o Brasil, com a Agência de Água Loire-Bretagne e projetos no Peru, Equador e Colômbia, os parceiros já eram conhecidos para a elaboração de uma proposta comum, centrada na dificuldade de adaptação às mudanças climáticas em várias bacias.
Ao mesmo tempo, lembra, estava em curso a crise hídrica no estado de São Paulo e havia as dificuldades no norte do Peru, na bacia Chira. Do mesmo modo, era conhecida a experiência colombiana de pagamento por serviços ambientais.”Então realmente achamos que era um bom conjunto de problemas concretos e parceiros competentes para trabalhar, por isso, concebemos o projeto baseado neste cenário”, conta Bernard.
Para ele, o tema instrumentos financeiros é um “bastante complicado neste momento no Brasil por várias razões, mas o PCJ foi um dos melhores em administrar este tema”, assinala, acentuando que nos demais comitês de bacia, em geral, os padrões de cobrança são baixos e as complicações administrativas e burocráticas são enormes, porque uma vez que os recursos das cobranças chegam aos órgãos públicos, eles viram dinheiro público. “E, daí, temos um ponto que é a entrada do recurso e outro ponto que é o uso do dinheiro, que deve ser gerenciado para melhorar a gestão, a qualidade e a quantidade de água. E os complicadores mais graves são os entraves para o uso do dinheiro, o modelo que o sistema adota”, analisa Bernard.
Ele assinala que o tema foi tratado em janeiro deste ano em reunião realizada pela OCDE no Rio de Janeiro, quando muitos atores do sistema comentaram que a cobrança pelo uso da água acabou gerando muitas dificuldades, mais do que oportunidades, porque os recursos arrecadados são baixos e o impacto na gestão dos recursos hídricos não é relevante. Além disso, os comitês se perdem nos debates sobre os recursos arrecadados, “são conversas intermináveis sobre o destino dos recursos, se devem investir em grandes projetos de saneamento e a cobrança neste momento acaba não impactando nenhum projeto, então alguns comitês se perderam nos diálogos sobre investimentos financeiros e alguns atores comentam que seria melhor que tais comitês dedicassem seu conhecimento, sua competência na definição de prioridades, na identificação de projetos, na gestão integrada, equilibrada, do que em decidir onde investir os recursos, neste ou naquele projeto”, analisa o representante do Office International de l’Eau. Por estes motivos, ele concorda que a cobrança pelo uso dos recursos hídricos como existe hoje no Brasil “se torna uma dificuldade”.
Entre as opções, evidencia, está a de “mudar o paradigma e implementar uma cobrança mais efetiva, mais significativa, mas para isto precisa de vontade política, precisa de um modelo operacional muito mais ágil, porque arrecadar mais recursos se o sistema não consegue gastar facilmente, agilmente em projetos, então não resolve. São vários temas a serem dialogados, são temas reais para pensar em uma mudança de paradigma nas cobranças no país”, diz Bernard.
Nas Bacias PCJ as dificuldades também existem, admite ele, “mas são menores”. Além disso, conclui, “existem os lobbies”, citando a indústria “que possui suas justificativas para que a cobrança não seja revista, pois eles já têm gastos altos para tratar a água captada”.
Entretanto, Bernard entende que houve avanços em termos de aprendizado com EcoCuencas, mesmo que ainda seja “um pouco cedo para extrairmos as conclusões definitivas destes projetos pilotos”. Os aprendizados concretos poderão ser extraídos a partir de novo encontro promovido pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), neste mês de julho, em Paris para o qual foram convidados dirigentes da Agência PCJ e do Comitê de Bacias PCJ.
O caso de EcoCuencas mostra que existe a possibilidade de cooperação internacional e que experiências podem servir como subsídios para as necessárias e urgentes mudanças no sistema de gestão de recursos hídricos no Brasil. Afinal, parafraseando o que o diretor-presidente da Agência PCJ afirmou, “a pior seca ainda pode estar por vir”, mesmo que a nova outorga do Sistema Cantareira, em vigor desde o início de junho de 2017, esteja prevendo um volume maior de água dos reservatórios para as bacias PCJ.
PLANO NACIONAL CITA IMPACTOS DE MUDANÇAS DO CLIMA NAS ÁGUAS
O Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima (aqui), lançado em maio de 2015 pelo governo brasileiro, poucos dias antes do afastamento da ex-presidente Dilma Rousseff, cita os impactos das mudanças climáticas em várias áreas, inclusive nos recursos hídricos.
Diz o Plano: “A questão que se coloca para o país é como planejar a infraestrutura hídrica necessária para o futuro, considerando as possíveis alterações dos padrões das variáveis hidrológicas e o alto grau de incertezas a que estão sujeitas. Estas variações de padrão poderão levar à necessidade de obras de grande porte, tais como reservatórios, canais, estações de bombeamento etc. A proposta para enfrentar essa situação é aprender a conviver com a variabilidade natural do clima, incluindo seus extremos, como primeiro passo para a adaptação à mudança do clima, admitindo-se e preparando-se para um eventual aumento da frequência de fenômenos extremos e efeitos ainda não plenamente esclarecidos de redução ou elevação das tendências dos valores médios de vazões ao longo do tempo”.
O Plano cita os principais impactos previstos das mudanças climáticas nas águas no Brasil: “Aumento da criticidade hídrica para bacias hidrográficas da Região Nordeste,embora não haja consenso sobre estudos acerca da dinâmica da precipitação de chuvas; Rápido declínio nos fluxos em torno de 2100 para as bacias da parte ocidental do Nordeste e do Atlântico Ocidental; Tendência de declínio na oferta de água superficial para quase todas as regiões do Brasil (o declínio na precipitação de chuvas poderá impactar os fluxos dos rios em bacias geradoras de hidroeletricidade); Aumento da precipitação e, consequentemente, das vazões para a região sul do país”.
São várias diretrizes propostas para melhorar a gestão das águas no país, diante do agravamento das mudanças do clima. Entre elas o Plano indica: “- Cumprimento de regras: estabelecimento de regras de utilização dos recursos hídricos bem definidas, coerentes com a realidade local, de amplo conhecimento, e com mecanismos que induzam o seu cumprimento, com sanções compatíveis às violações e capacidade para implementá-las.
– Priorizar a atuação por abordagens locais de áreas-problema, com arranjos institucionais compatíveis.
– Priorizar ações de planos de bacia ou planos de contingência a serem pagos com recursos da cobrança.
– Aumentar a transparência e a responsabilização sobre a aplicação dos recursos da cobrança.
– Realizar análises econômicas de capacidade de suporte para a elevação dos valores da cobrança onde e quando necessário”.