Por José Pedro Martins
Contra a reserva dos mestres que guardam para si o pulo do gato. Assim os signatários do Manifesto do Grupo Vanguarda expressavam, em junho de 1958, a sua posição favorável à democratização da arte. Que ela passasse “pela renovação/revificação constante e progressiva”. Que estivesse no “lado de fora dos museus e das galerias fechadas”. Na virada dos anos 1960/70, Campinas respondia, com uma transformação radical nas linguagens, à atmosfera de otimismo gerada pela Bossa Nova, a construção de Brasília, o futebol-arte ganhando o mundo na Suécia, do ideário político renovado. No campo da arte e da cultura, com o próprio Grupo Vanguarda. Na área social, com o modelo inovador da FEAC. No espaço educacional, com o movimento vitorioso que resultou na Unicamp. Um dos frutos suculentos desse momento de ousadia foi o Museu de Arte Contemporânea de Campinas (MACC), derivado do empenho dos vanguardistas locais, afinados com o espírito do tempo, o espírito revolucionário dos anos 60.
Pois é o próprio MACC que sediou em julho uma exposição, do acervo do Museu, que é um passaporte, uma senha para contundente itinerário pela alma da cidade – de Campinas, de qualquer cidade. Uma amostra do potencial de contestação, da abertura para o novo, da vocação campineira para a libertação de cânones enrijecidos, na cultura, na política, no terreno social. São aquarelas, esculturas, gravuras, fotografias, xilogravuras, instalações, exibindo a carne nua da violência, os enigmas da paixão, a aparente insustentabilidade do sublime. Um festival para os sentidos. Um oásis de beleza e doçura, uma navalha fina na consciência, um refúgio do pensamento livre, ao lado da sede do poder, o Palácio dos Jequitibás que tem representado, como poucos símbolos, a galeria de dramas tatuada nos últimos 20 anos na pele do campineiro, natural daqui ou não.
O visitante podia escolher onde começar. Um jogo da amarelinha de sensações, Rayuela na Benjamin Constant. O ponto de partida por esse roteiro pelas entranhas do humano, demasiado humano pode ser a escultura em metal de Geraldo Jürgensen, um dos mais inquietos componentes, aliás, do Grupo Vanguarda. O metal que pode perfurar os muros do (con)sagrado é o metal que pode ser vazado pela faca da emoção. A engrenagem que nos envolve, a corrente que nos oprime, o lodo que nos corrompe, formando o mosaico que podemos romper, pelas frestas da criação.
A visita ao imaginário campineiro podia continuar com a aquarela sobre papel de Alberto Teixeira, de 2001. Uma década antes do falecimento do artista nascido em Portugal e que adotou Campinas, onde fez sua Revolução dos Cravos particular, a tela remete aos primeiros tempos, às cavernas primordiais. Uma incursão pelo inconsciente, nos lembrando das raízes fundamentais. Estação seguinte, o poema-tela de João Proteti, de 2004: “Acesa em rosa/a paineira linda/ ilumina a cidade cinza”. Uma singela homenagem à natureza que resiste no asfalto e no concreto. Próxima escala, três aquarelas de Francisco Biojone, da série “Fábulas não escritas”, incursão ao universo das fábulas infantis. Outro membro do Grupo Vanguarda, Biojone é uma síntese da metamorfose do figurativo ao abstrato, um flash da arte no século 20.
O elenco de artistas contemporâneos de Campinas, a refletir sobre os estados d´alma e do corpo, é amplo na exposição do MACC. Bebendo de múltiplas linguagens artísticas, Vânia Mignone destila humanismo, evidente em “O vazio ficou”, de 1997, obra composta em três peças. O humano também é o centro de “Semente”, da série Entranhas da Vida, de Fúlvia Gonçalves. E mais humano, aspirando ao prazer, ao gozo da vida, em “Felicidades”, de Márcio Rodrigues, de 2012.
Transgressão, desconstrução, pela gênese de um novo vocabulário das artes. A exposição do acervo do MACC mostrou a explosão de uma utopia revivida. Muitos campineiros além dos citados presentes, mas também outros brasileiros exponenciais, abrigados no museu, a ratificar a tendência cosmopolita da metrópole, um dia líquida e certa. Renina Katz, Tomie Ohtake, Marcelo Grassmann e Maria Bonomi estão lá, entre outros. A Campinas que abraça o futuro que é hoje. A profecia do Grupo Vanguarda confirmada. O gato pulou além dos muros da mesmice e subiu nas paredes do MACC. O “Gato”, de Ricardo Cruzeiro, em led e ferro recortado a laser, plasmando a transparência possível na (opa)cidade, a verdade límpida como cristal iluminado. Dá para sonhar ruas e praças de afeto.