Por José Pedro Martins
Campinas e o Brasil amanhecem nesta quinta-feira, 11 de dezembro de 2014, sabendo um pouco mais de sua história recente, em função da divulgação nesta quarta, 10, Dia Mundial dos Direitos Humanos, do relatório final da Comissão Nacional da Verdade, o grupo constituído pelo governo federal para apurar os crimes ocorridos durante a ditadura militar. Divulgação cercada de muita polêmica, de um documento contendo muitas informações conhecidas mas que confirma, por exemplo, como Campinas foi uma cidade de muitas ações clandestinas importantes contra o regime militar.
Campinas é citada, por exemplo, no trecho dedicado a Carlos Marighella, (1911-69), fundador e dirigente da Ação Libertadora Nacional, um dos principais expoentes da luta armada contra o regime. O documento cita a radicalização da posição de Marighella em defesa da luta armada e lembra que as suas teses foram apoiadas por 33 dos “37 delegados escolhidos como representantes das bases do PCB em São Paulo na Conferência Estadual realizada em maio de 1967 em Campinas (SP)”.
Foi o evento fundamental que selou o racha no PCB, levando Marighella e seu grupo a fundar a ALN, inspirada na Aliança Nacional Libertadora de Luis Carlos Prestes, protagonista da insurreição comunista de 1935 . Marighella foi morto em cerco policial na Alameda Casa Branca, em frente ao numero 806, Jardim Paulista, em São Paulo, a 4 de novembro de 1969.
A Comissão Nacional da Verdade também cita o caso de Cassimiro Luiz de Freitas, nascido em Catalão (GO) em 1912 e morto 19 de março de 1970 em Pontalina, no mesmo estado. Lavrador, formou na década de 1950 uma associação de camponeses em Goiás com José Porfírio de Souza, “reconhecido líder das mobilizações agrárias na região de Formoso e Trombas (GO) e desaparecido em 1973″. Em 1953 Cassimiro escapou de um atentado.
O relatório informa que “com o golpe de 1964 mudou-se para Campinas (SP) e passou a viver na clandestinidade”. No final dos anos 1960 retornou a Pontalina (GO), onde fundou em 1969 a União Camponesa, setor agrário da VAR-Palmares. “Morreu aos 57 anos, após torturas, em ação perpetrada por agentes do Estado”.
A Comissão também citado o caso de Lucio Petit da Silva, nascido em Piratininga em 1943 e desaparecido entre 1973 e 1974 (a Comissão cita algumas datas possíveis). Seus irmãos, Maria Lucia e Jaime, também foram mortos na Guerrilha do Araguaia. Formando em engenharia, tendo militado no movimento estudantil e CPC da UNE, trabalhou em São Paulo e ingressou no PC do B. O relatório conta que ele trabalhou na Light, em São Paulo, Engemix e Nativa, em Campinas. Ele é nome de rua em Campinas, por uma lei de 1997, pela qual vários mortos e desaparecidos durante a ditadura batizam vias na cidade.
UNE e Igreja – O documento também cita a prevista realização “em Campinas”, em 1967, do Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), “planejado para ocorrer em um convento beneditino”. Mas o relatório explica como o evento foi reprimido por militares: “Desta feita, as forças policiais invadiram e depredaram o local e também o Colégio Notre-Dame. Padres e estudantes foram presos e levados ao Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), em São Paulo. Diante da recusa em fornecer o nome dos 392 estudantes que participaram das atividades, os padres foram enquadrados na Lei de Segurança Nacional”.
Segundo o relatório da Comissão Nacional da Verdade, esse foi um dos episódios fundamentais para a crescente oposição na Igreja Católica – que tinha dado apoio ao golpe militar em 1964 – ao regime. Diz o documento: “Em 1967, a prisão dos monges beneditinos do Mosteiro do Vinhedo, em Campinas, onde se havia realizado o encontro clandestino da União Nacional dos Estudantes e a invasão policial do Convento das Perdizes, em São Paulo, marcou o início da espiral de tensões entre parte da Igreja e militares, o que conduziu ao progressivo envolvimento do clero católico na proteção dos perseguidos políticos. A resposta dos religiosos foi clara: não aceitavam jurisdição dos militares sobre o apostolado; a prisão de padres, por qualquer razão, tornaria muito difícil o diálogo entre Igreja e Estado”. O convento, na realidade, está localizado em Vinhedo.
Casos pouco conhecidos – De fato, muitos casos relatados no documento são já conhecidos, da imprensa e organizações de direitos humanos, mas muitas situações citadas ainda são pouco conhecidas e esclarecidas. É o caso por exemplo dos navios-prisões, que “estavam articulados a outros mecanismos de repressão”. O documento cita o navio “Raul Soares”, que recebeu presos que antes passaram pelo DOPS em São Paulo.
Afirma o documento: “Quando o navio desatracou de Santos, após sete meses, alguns presos foram liberados e outros foram encaminhados para a cadeia da cidade. Militante do PCB, Alipio Abrantes, que ja estivera preso em Campinas (SP), desta vez foi levado primeiro para o DOI do I Exercito, em Sao Paulo, e depois para o DOPS/SP. Apos voltar para casa, Alipio foi novamente preso e levado para o Raul Soares”.
Na mesma linha, estão os casos de militares que se opuseram à ditadura. É muito citada a atuação de Marighella e Lamarca, mas são pouco conhecidos os casos de militares menos famosos. O relatório da Comissão cita: “Outro oficial atingido pela Operação Radar foi o coronel da Força Pública de São Paulo, José Maximiano de Andrade Neto, membro do PCB. Em 1964 ele foi afastado da PM por não aderir ao golpe. Preso em 1975, foi barbaramente torturado no DOI-CODI do II Exército. Libertado em 18 de agosto, foi abandonado quase morto em frente à sua casa. No dia seguinte, faleceu em um hospital de Campinas, vítima de um ataque do coração fulminante”.
O documento nota que os militares acusados de apoiar o governo de João Goulart, as Reformas de Base, constituíram o chamado Grupo dos Onze. Diz o documento: “Em 1969, cinco são condenados e os demais absolvidos. Somente em 1972 com a extinção da Lei 1802 (substituída pela nova Lei de Segurança Nacional), na qual haviam sido condenados, todos foram absolvidos, mas até então já haviam sido expulsos da Brigada Militar ou reformados compulsoriamente. Também no Rio Grande do Sul foi instaurado um processo contra um policial militar acusado de panfletagem. Da mesma maneira foi processado o seu superior, um tenente, por não tomar qualquer medida contra a atitude do policial. Os processos que tramitaram na esfera da Justiça Militar encontram-se no Arquivo Edgard Leuenroth (AEL) na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)”.
Homenagem a mortos e desaparecidos – Território de ações clandestinas durante a ditadura, homenagem aos mortos e desaparecidos depois. Campinas é a cidade brasileira com maior número de vias públicas batizadas com nomes de militantes políticos perseguidos pelo regime, em sua maioria em função da Lei 9497, de 20 de novembro de 1997.
Campinas é citada, por exemplo, pela homenagem ao estudante Edson Luiz Lima Souto como o seu nome dado a uma escola no Distrito de Nova Aparecida. Edson Luiz morreu a 28 de março de 1968, no Rio de Janeiro, após invasão do restaurante Calabouço por agentes do Estado durante manifestação estudantil. Ele estudava no Instituto Cooperativo de Ensino e era faxineiro em uma cooperativa.
Uma rua do bairro Jardim Monte Cristo/Parque Oziel recebeu o nome da comerciária Maria Ângela Ribeiro, morta aos 22 anos a tiros pela polícia a 21 de junho de 1968, em repressão a manifestações de rua no Rio de Janeiro. Ela foi atingida no rosto e levada ao Quartel Geral da PM durante o cerco aos estudantes entre a rua México e Santa Luzia.
Lucimar Brandão Guimarães (1949-1970) também é nome de rua em Campinas. Ele era da VAR-Palmares e foi morto aos 21 anos, “em decorrência de ferimentos graves após tortura sofrida quando estava sob a custódia do Estado”.
A desaparecida política, assim reconhecida pelo Estado brasileiro, Heleny Ferreira Telles Guariba (1941-1971) também é nome de rua em Campinas. Ela era da Vanguarda Popular Revolucionária e foi morto em 17 de setembro de 1971, aos 33 anos, em Ipupiara, sertão da Bahia, tendo sido alvo da operação Pajussara.
Outro desaparecido político homenageado com nome de rua em Campinas é Idalísio Soares Aranha Filho (1947-1972), que era ligado ao Partido Comunista do Brasil. E também Kleber Lemos da Silva (1942-1972), igualmente vinculado ao PC do B. E José Toledo de Oliveira (1941-72), ligado ao PC do B. Carlos Lamarca (1937-1971), um dos grandes nomes da luta armada contra a ditadura, também é nome de rua em Campinas, entre tantos outros citados no relatório final da Comissão Nacional da Verdade, que jogou um pouco mais de luz sobre a história recente do país. Muito ainda precisa ser contado e esclarecido.
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