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Piracicaba, Ribeirão Preto, Sorocaba: o interior paulista foi território de repressão política e resistência
Engenho Central, em Piracicaba: cidade foi um dos territórios da repressão e resistência no interior paulista (Foto José Pedro Martins)

Piracicaba, Ribeirão Preto, Sorocaba: o interior paulista foi território de repressão política e resistência

Piracicaba, Ribeirão Preto, Sorocaba, São José do Rio Preto: a geografia da repressão política, durante o regime militar, também inclui o interior de São Paulo, que igualmente foi território de manifestações de resistência ao governo. Cidades importantes do interior paulista, geralmente polos regionais, foram citadas no relatório final da Comissão Nacional da Verdade, divulgado na última quarta-feira, 10 de dezembro, Dia Mundial dos Direitos Humanos. Como maior cidade do interior, Campinas também teve uma presença significativa no cenário político do período ditatorial, como a Agência Social de Notícias já noticiou (ver http://agenciasn.com.br/arquivos/1597)

Um dos casos mais impressionantes, citados no relatório, é o das torturas sofridas por uma religiosa de Ribeirão Preto, a irmã Maurina Borges da Silveira. Diz o documento, sem meias palavras: “Nem mesmo votos religiosos foram suficientes para impedir que uma freira fosse desrespeitada. Irma Maurina, diretora do orfanato Lar Santana em Ribeirao Preto, Sao Paulo – sob o pretexto de que teria cedido uma sala no lar para deposito de material do grupo Forcas Armadas de Libertação Nacional (FALN), a qual na realidade fora utilizada sem o seu conhecimento, por antigo colaborador da casa, com abuso de confianca – foi vítima de violência sexual quando estava sob custódia do Estado”. O relatório descreve em seguida o depoimento de uma companheira de cela da irmã Maurina, um dos casos que contribuíram para que a Igreja – que havia apoiado o golpe militar – tenha passado progressivamente para a resistência e oposição ao regime.

Ainda em Ribeirão Preto, outro caso emblemático, desta vez da repressão no ambiente acadêmico, no campus da Universidade de São Paulo (USP). A Comissão Nacional da Verdade nota que, além das expulsões e prisões de professores e reitores, um dos instrumentos utilizados foram os Inquéritos Policiais Militares (IPMs). Vários deles foram instalados na USP. Diz o documento: “houve diretores, como José de Moura Gonçalves, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP), e Álvaro Guimarães Filho, da Faculdade de Higiene e Saúde Pública, que se recusaram a permitir a condução desses inquéritos nas dependências das suas escolas. Segundo as informações levantadas pela Comissão da Verdade da USP (CV/USP), em Ribeirão Preto foram registradas duas prisões de professores na delegacia de polícia municipal: Luiz Carlos Raya e Hona Tahim.”

O relatório da Comissão Nacional da Verdade cita ainda o  professor Hélio Lourenço de Oliveira, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, “que não era visto com bons olhos pelo sistema”, mas que “acabou sendo designado para a função de vice-reitor pelo governador Abreu Sodré, selando de certa forma uma trégua na USP”.

Sorocaba e Congresso de Ibiúna – Sorocaba e região foram outro território da presença da repressão no interior paulista. Um dos casos de maior destaque foi o da ação policial no 30º Congresso da União Nacional de Estudantes (UNE). Para a Comissão Nacional da Verdade, um caso significativo sobre a vigilância à atuação do movimento estudantil. Relata o documento: “Um caso emblemático de prisão coletiva foi a realizada no XXX Congresso da UNE – União Nacional dos Estudantes, em Ibiúna (SP), no mês de outubro de 1968. Desde a movimentação pela organização do Congresso da UNE, o DOPS de São Paulo criara uma operação, em conjunto com as polícias da Guanabara, de Minas Gerais, do Paraná e do Rio Grande do Sul, entre outros estados, para acompanhar e desmobilizar o evento estudantil. Assim, foi lançada a chamada Operação Ibiúna, que ocorreu em três fases: monitoramento, repressão e judicialização. Na primeira fase, o DOPS, por meio de um agente secreto, mapeou toda a produção de jornais e panfletos do movimento estudantil e acompanhou as discussões entre os estudantes sobre o congresso. Segundo o relatório sobre a Operação Ibiúna, assinado pelo delegado titular do DOPS, Italo Ferrigno, as forcas policiais paulistas sabiam desde o fim de setembro de 1968 que o congresso ocorreria na região de Sorocaba. Assim, mobilizaram todas as autoridades da região, no intuito de comunicarem ao DOPS qualquer movimentação estudantil. Foi desse modo que os agentes envolvidos na operação descobriram o sitio. A ação repressiva propriamente dita (segunda fase) se realizou no dia 12 de outubro. Noventa e cinco investigadores do DOPS participaram da ação (…)”.

Segundo o relatório da operação, diz o documento da Comissão Nacional da Verdade,  “foi uma ação rápida, sem violência, fulminante”. Conforme reportagem do jornal Folha de S.Paulo de 13 de outubro de 1968, os estudantes foram cercados, tendo sido disparadas “algumas rajadas de metralhadora para o ar, para intimidá-los”. O então governador de São Paulo, Abreu Sodré, completa o relatório da Comissão, “expressou a sua satisfação com o resultado da ação repressiva, aduzindo que “agi com energia para reprimir a agitação e a subversão quando determinei, após horas de angústia e apreensão, a prisão de estudantes subversivos que participavam do congresso da UNE”. Em sua terceira fase, a operação instaurou um inquérito policial, que geraria oito volumes. Foram 694 indiciados, 693 identificações criminais com fotografias, 694 boletins individuais, 15 termos de declarações (sendo 14 de jornalistas que participavam do congresso), vários depoimentos e documentos”.

Os estudantes presos nessa operação, acrescenta o relatório da Comissão sobre o episódio, “foram denunciados perante a 2a Auditoria da 2a Região Militar, como incursos na reação criminal prevista no artigo 36 do Decreto-Lei no 314/67, por terem realizado um congresso estudantil não permitido pelo Decreto-Lei no 228 de 28 de fevereiro de 1967. Alguns, considerados líideres do movimento, foram presos em flagrante, como foi o caso de José Dirceu de Oliveira e Silva e de Luiz Gonzaga Travassos da Rosa, em favor dos quais foi impetrado perante o Supremo Tribunal Federal (STF) o habeas corpus no 46.470/68; e de Jose Benedito Pires Trindade, Omar Laino, Helenira Rezende de Souza Nazareth, Marcos Aurélio Ribeiro, Francisco Antônio Marques da Cunha, Franklin de Souza Martins e Walter Aparecido Cover, em favor dos quais foi impetrado perante o STF o habeas corpus no 46.471/68″. Como se viu, entre os estudantes estavam alguns nomes que se tornariam muito conhecidos na história recentíssima do país.

Sorocaba é terra natal de um dos nomes que se tornaram mais conhecidos durante o regime militar, em termos de repressão política ao movimento estudantil. Lá nasceu, em 5 de outubro de 1950, Alexandre Vannucchi Leme, estudante do 4º ano de Geologia da USP quando foi preso, no dia 16 de março de 1973, por agentes do DOI-CODI. Ele morreu no dia seguinte. Ele militava na Aliança Libertadora Nacional quando foi preso, diz o relatório da Comissão Nacional da Verdade. Uma praça perto da casa onde morou com os pais em Sorocaba leva o nome de Alexandre, assim como o Diretório Central dos Estudantes da USP e várias outras instituições estudantis pelo Brasil.

O relatório cita ainda a realização de uma missa de 7º dia pela morte de Alexandre, que foi celebrada em 30 de março de 1973, na Catedral da Sé, pelo cardeal-arcebispo de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns, e o bispo de Sorocaba, D. José Melhado Campos. “Apesar de as forças de segurança terem tomado o centro da cidade, mais de três mil pessoas conseguiram se reunir no ato religioso. Durante a liturgia, o compositor Sérgio Ricardo interpretou a canção “Calabouço”, que refere o assassinato de Edson Luís, ocorrido no Rio de Janeiro em 1968″, diz o documento.

Homenagem a Millôr Fernandes no 41º Salão Internacional de Humor de Piracicaba, uma das janelas de liberdade durante o regime militar

Homenagem a Millôr Fernandes no 41º Salão Internacional de Humor de Piracicaba, uma das janelas de liberdade durante o regime militar

Piracicaba, Rio Preto –  A cidade de São José do Rio Preto aparece no relatório da Comissão Nacional da Verdade no capítulo dedicado às perseguições contra lideranças evangélicas no período do governo militar. Conta o documento que o pastor Brady Tyson “foi designado como missionário da Igreja Metodista para o Brasil em 1962, acompanhado da esposa e de cinco filhos. Trabalhou como pastor em três pequenas congregações e foi também capelão metodista da Comunidade Universitária em São Paulo. Em pouco tempo, ele se envolveu com o movimento ecumênico estudantil, a União Cristã de Estudantes do Brasil, e procurou estabelecer pontes entre organizações progressistas católicas e protestantes no Brasil. Além das atividades no ministério da Igreja Metodista para jovens, lecionou na Escola de Sociologia e Política em São Paulo, o que o fez frequentar o cerne da vida intelectual e política da cidade. A casa onde morava se tornou ponto de encontro de jovens acadêmicos norte-americanos que vinham estudar no Brasil, assim como de jovens ativistas religiosos progressistas”.

Em 1965, continua o documento a respeito, “o Diretório Acadêmico da Escola de Filosofia, Ciências Sociais e Literatura de São José do Rio Preto, no estado de São Paulo, convidou Brady Tyson para fazer uma conferência sobre a situação política na América Latina. Os organizadores estudantis pediram que ele focalizasse especialmente a invasão da República Dominicana pelos Estados Unidos e as relações de Washington com Cuba. Embora a conferência de Tyson criticasse certos aspectos da política externa norte-americana, ele continuou a pautar seus argumentos no contexto da ala liberal do Partido Democrata, assim como faziam os latino-americanistas que haviam assinado a declaração publicada no The New York Times sobre a intervenção de Johnson na ilha do Caribe. Ao mesmo tempo, Tyson não hesitou em identificar-se como esquerdista que acreditava em ação direta não violenta — reflexo de seu envolvimento com a organização pacifista Fellowship of Reconciliation [Confraria da Reconciliação] e de seu apoio ao movimento pelos direitos civis, liderado por Martin Luther King Jr”.

Em 29 de dezembro de 1965, completa o documento, “o Ministério da Justiça convocou Brady Tyson a comparecer em sua repartição em São Paulo e informou-o de que deveria sair do país imediatamente, ou seria expulso pelo governo brasileiro. Os documentos nos arquivos da polícia política (DOPS) não fornecem detalhes dos “delitos políticos” que lhe valeram a partida forçada do Brasil, mas a polícia registrou a “natureza extremista” de sua conferência em São José do Rio Preto. Temendo permanecer no Brasil para ser julgado e que a mulher e cinco filhos viessem a passar graves dificuldades, Tyson conseguiu obter uma prorrogação de três meses, a fim de colocar suas coisas em ordem, e partiu em março de 1966″.

Outro estudante, desta vez em Piracicaba, também foi morto no período. Conta o relatório da Comissão Nacional da Verdade: “Nascido em Guaiçara (SP), Luiz Hirata era de uma família de imigrantes japoneses e agricultores. Cursava Agronomia na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, na Universidade de São Paulo (USP), em Piracicaba. Foi militante da Juventude Universitária Católica (JUC) e, depois, da Ação Popular (AP). Usava o codinome Maurício. Em 1969, no quarto ano do curso, foi obrigado a abandonar os estudos por perseguição política. Foi para São Paulo (SP) trabalhar como operário na empresa Mangels, onde se juntou à Oposição Sindical Metalúrgica, atuando com outros importantes militantes políticos sindicais como Waldemar Rossi, Cleodon Silva, Vito Gianotti e Raimundo Moreira. Morreu aos 27 anos, nas dependências do Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo (DOPS/SP), em decorrência de ação perpetrada por agentes do Estado. Seus restos mortais ainda não foram identificados”.

Se o interior também foi território de repressão política, também foi de contestação. Na mesma cidade de Piracicaba nascia, em 1974, o I Salão de Humor, logo internacional. O primeiro salão teve a participação de grandes nomes do humor, como Millôr Fernandes, Ziraldo, Zélio, Jaguar, Fortuna e Ciça. O Salão se transformou em uma referência, e passou a contar a cada ano com milhares de trabalhos enviados de dezenas de países. Os maiores nomes do humor gráfico no planeta já participaram do Salão Internacional do Humor de Piracicaba, uma das janelas de liberdade de expressão durante o regime militar.

A mesma Piracicaba sediou, em 1980, do 32° Congresso Geral da UNE, o primeiro após a clandestinidade da organização. O Congresso teve o apoio direto do prefeito de Piracicaba, João Herrmann Neto, na época do chamado setor “autêntico” do MDB, e do reitor da UNIMEP, Elias Boaventura. O Congresso elegeu como presidente da UNE Aldo Rebelo, depois deputado federal e figura de destaque nos governos Lula e Dilma. Herrmann Neto e Elias Boaventura também apoiaram a realização do  34° Congresso Geral da UNE em Piracicaba, em 1982.

Histórias acontecidas no interior paulista, registradas oficialmente no relatório da Comissão Nacional da Verdade. Mas ainda há muito a conhecer sobre este período da vida brasileira. (Por José Pedro Martins)

Sobre José Pedro Soares Martins

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