Por José Pedro Soares Martins
Campinas, 14 de junho de 2021
Um decréscimo superlativo na notificação de novos casos em função do confinamento e outras medidas restritivas da mobilidade, a alta da letalidade em algumas enfermidades segundo os números preliminares, queda substantiva na distribuição de medicamentos para vítimas de doenças como Chagas e Hanseníase. Além de provocar um número impressionante de mortes em decorrência diretamente da infecção pelo Sars-CoV-2, a pandemia de Covid-19 provocou danos incomensuráveis em termos de estratégias e ações em saúde pública de modo geral no Brasil, e entre eles está o agravamento do panorama das doenças tropicais negligenciadas (DTNs).
De acordo com pesquisadores e representantes de várias organizações ouvidos pela Agência Social de Notícias, muitas conquistas no combate às DTNs estão seriamente ameaçadas no contexto da pandemia, que também pode afetar a implementação, no Brasil e também em outros países, do roteiro de enfrentamento das Doenças Tropicais Negligenciadas até 2030, divulgado no início de 2021 pela Organização Mundial da Saúde (OMS), após ampla consulta internacional que durou pelo menos dois anos.
Um sinal de esperança, vislumbrado no cenário da pandemia, é o de que a produção de vacinas contra Covid-19 em tempo recorde, em uma grande conquista científica para a humanidade, possa refletir positivamente na aceleração de processos de desenvolvimento e fabricação das tão esperadas vacinas para o combate de algumas Doenças Tropicais Negligenciadas. Ainda assim, como alertam especialistas como Cristina Possas, assessora científica sênior da Biomanguinhos/Fiocruz, esta “janela de oportunidades” apenas será aproveitada, no caso brasileiro, se houver um grande esforço para aumentar e aprimorar a capacidade nacional de produção de vacinas, reduzindo a séria dependência de insumos de países como a Índia e a China, como está sendo verificado na própria guerra ainda em curso, e sem prazo para terminar, contra a Covid-19.
Doenças tropicais negligenciadas (DTNs) são classificadas pela OMS como antigas doenças da pobreza que “impõem um fardo devastador, em termos humanos, sociais e econômicos, para mais de 1 bilhão de pessoas em todo o mundo, predominantemente em regiões tropicais e áreas subtropicais entre as mais populações vulneráveis e marginalizadas”. As DTNs provocam mais de 500 mil mortes por ano, sobretudo nos países mais pobres, que não têm sistemas de saneamento adequados, o que facilita a proliferação de vetores.
Milhares de casos de ao menos 14 das 20 doenças negligenciadas classificadas pela OMS são registrados todo ano no Brasil e a distribuição geográfica das DTNs no país coincide com a má distribuição de renda e os déficits em saneamento básico. As regiões Norte e Nordeste, que apresentam a menor renda média brasileira e têm maiores déficits em saneamento, concentram grande parte da incidência das DTNs. A região Norte é território para nove tipos de doenças negligenciadas e a região Nordeste, para oito. São sete as DTNs documentadas no Centro-Oeste, cinco no Sudeste e quatro no Sul.
O Ministério da Saúde considera que são três os níveis de categorização das doenças negligenciadas. São da Categoria 1 as doenças não controladas e/ou emergentes/reemergentes: dengue e leishmaniose. Na Categoria 2 estão aquelas doenças ainda de elevada magnitude: malária, esquistossomose, tuberculose e geo-helmintoses. As enfermidades consideradas em declínio são da Categoria 3: Doença de Chagas, hanseníase, tracoma, raiva, filariose linfática e oncocercose. Esta caracterização, entretanto, é de antes da pandemia de Covid-19, que pode representar retrocessos históricos para o combate de muitas DTNs em todo Brasil.
Impactos da pandemia no enfrentamento das DTNs
Foram múltiplos os impactos da pandemia no enfrentamento das doenças tropicais negligenciadas no Brasil. Desde o momento que a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a pandemia pelo novo coronavírus como emergência de saúde pública global, no dia 11 de março de 2020, os sistemas de saúde “se dedicam principalmente ao atendimento de pacientes com Covid-19 e dessa forma podem estar deixando de cuidar de forma apropriada de outras doenças”, comenta Jadel Müller Kratz, gerente de pesquisa e desenvolvimento da Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas na América Latina (DNDi, na sigla em inglês para Drugs for Neglected Diseases initiative).
A DNDi é uma organização sem fins lucrativos de Pesquisa e desenvolvimento (P&D) orientada pelas necessidades dos pacientes, que desenvolve tratamentos seguros, eficazes e acessíveis para milhões de pessoas em situação vulnerável que são afetados por doenças negligenciadas, em particular a doença de Chagas, as leishmanioses, a doença do sono, o HIV pediátrico, a Hepatite C, as filarioses e Micetoma.
“O atual panorama alterou a capacidade do sistema de prestar atendimento adequado, seja tratamento ou diagnóstico, a pacientes com patologias crônicas, infecciosas ou que necessitem de atendimento não urgente”, completa Jadel Kratz.
Ele nota que, além disso, boa parte dos investimentos em pesquisa passou a se encontrar em desenvolver ferramentas de saúde para prevenir e tratar a Covid-19. “Enquanto isso, doenças como as negligenciadas, que afetam as populações mais vulneráveis principalmente no Brasil e na América Latina e que já tinham pouca atenção dos grandes financiadores, tiveram seus recursos drasticamente reduzidos”, afirma.
O gerente de pesquisa e desenvolvimento da DNDi América Latina observa também que a própria continuidade dos estudos clínicos já em andamento para outras enfermidades foi comprometida, e as pesquisas paralisadas ou postergadas em muitos casos. “Os hospitais e centro de pesquisa clínica estão bastante focados na Covid-19 e se viram obrigados a redirecionar boa parte dos recursos para o atendimento emergencial ou, em alguns casos, para realizar estudos clínicos para a Covid-19″, relata.
Ele cita como exemplo os laboratórios acadêmicos envolvidos em projetos com a DNDi para desenvolver novos medicamentos para a doença de Chagas e Leishmanioses, que tiveram que ficar por vários meses fechados e ainda operam longe da sua capacidade máxima. “Temos projetos com parceiros na Unicamp, na USP, na UFRJ e muitos desses laboratórios tiveram que interromper suas atividades ao menos temporariamente pela questão de segurança. Desde o nível mais básico de pesquisa, onde se trabalha com a finalidade de compreender como um parasita afeta o corpo humano, até os estudos clínicos em fases mais avançadas, sendo feitos no ambiente hospitalar, todos foram impactados”, lamenta.
Jadel Kratz salienta ainda o impacto da pandemia em outras estratégias de controle de doenças negligenciadas, como o controle de vetores, melhora de infraestrutura, administração de medicamentos, diagnóstico e monitoramento de pacientes. “O impacto de esta pandemia na vida das pessoas ainda trará muitos desafios e, espero, também aprendizados num futuro próximo”, evidencia.
Pesquisador da Unicamp, com estudos em parceria com a DNDi América Latina, Luiz Carlos Dias assinala que efetivamente ocorreu, com a pandemia, “uma desarticulação do sistema de saúde, principalmente nos países de baixa renda, atrapalhando os esforços” para o combate às doenças negligenciadas. “Essas doenças ficaram ainda mais negligenciadas”, reitera.
Dias coordena o consórcio Molecules Initiative for Neglected Diseases (MINDI), fruto de convênio PITE – Programa de Apoio à Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica firmado entre a Unicamp, a Universidade de São Paulo (USP), a Medicines for Malaria Venture (MMV), a DNDi América Latina e a Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), visando descobrir novos candidatos a fármacos para o tratamento de malária, Doença de Chagas e leishmanioses.
Queda abrupta da notificação de novos casos
A queda exponencial da notificação de novos casos, de pessoas acometidas por Doenças Tropicais Negligenciadas, o que pode levar à explosão de casos no pós-pandemia, foi identificada por exemplo no estudo “Análise das internações e da mortalidade por doenças febris, infecciosas e parasitárias durante a pandemia da COVID-19 no Brasil“, assinado por Stefan Vilges de Oliveira e Nikolas Lisboa Coda Dias, respectivamente professor e aluno do Curso de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), e também por Álvaro A. Faccini-Martínez, médico e pesquisador, do Instituto de Investigaciones Biológicas del Trópico, Universidad de Córdoba, Córdoba, Colômbia.
O objetivo do estudo, segundo o professor Stefan, era verificar a evolução dos casos de leishmaniose visceral, leptospirose, dengue e malária em 2020, com base em informações epidemiológicas registradas em bancos de dados oficiais, no caso do Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SIH/SUS), disponível no endereço eletrônico do Departamento de Informática do SUS (DATASUS). O professor da UFU nota que “vários estudos já indicavam o aumento de casos represados de doenças” em consequência dos protocolos de enfrentamento da pandemia, como o confinamento e o distanciamento social. O propósito então foi verificar “o perfil epidemiológico de algumas dessas doenças no Brasil”.
Stefan assinala que, para efeito de comparação com o ano de 2020, foi verificado o padrão de internações e de mortalidade para leishmaniose visceral, leptospirose, dengue e malária entre 2017 e 2019. O especialista observa que os resultados do estudo são preliminares, considerando os oito primeiros meses de 2020, e portanto um quadro completo sobre o perfil epidemiológico dessas doenças ainda deve ser aprofundado. De qualquer modo, os resultados obtidos são inquietantes.
O levantamento feito com base nas informações do DATAASUS mostrou que, entre 2017 e 2019, a média mensal de internações ocorridas nos meses de janeiro a agosto foi de 222,25 internações por leishmaniose visceral, 220,5 por leptospirose e 160,67 por malária. Já em 2020, entre janeiro e agosto, a média mensal foi de 125,38 internações por leishmaniose visceral, 155,87 por leptospirose e 113,25 por malária, números que representam uma queda na média de internações na ordem de 43,59%, 29,31% e 29,51%, respectivamente, em comparação com as médias dos três anos anteriores à pandemia.
Enquanto a média de internações diminuiu para as três doenças consideradas, duas delas (leishmaniose e malária) classificadas como Doenças Tropicais Negligenciadas pelos critérios da OMS, por outro lado houve aumento da mortalidade em 2020 em decorrência das três enfermidades. De novo em comparação com a média dos oito primeiros meses de 2017 a 2019, a taxa de mortalidade no mesmo período em 2020 aumentou em 32,64% para leishmaniose visceral, 38,98% para leptospirose e gravíssimos 82,55% para malária.
Uma hipótese aventada pelos pesquisadores, de acordo com Stefan Vilges de Oliveira, é a de que, com a redução das internações e a demora na assistência dos casos emergentes nas três enfermidades, “a procura pelos serviços de saúde tenha aumentado quando o quadro clínico estava mais agravado, algumas vezes levando a óbito”. Novamente, ele nota que essa possibilidade deve ser melhor investigada para comprovação.
Os indicadores iniciais apontam, de qualquer modo, para um quadro ainda mais desafiador, no pós-pandemia, em relação a essas doenças que já apresentam números brutais no Brasil. Apenas a malária é mais letal do que a leishmaniose entre as doenças parasitárias no planeta. Provocada por 20 espécies do protozoário parasita Leishmania, transmitido por mosquitos infectados, é doença curável e mais de 100 mil pessoas já foram tratadas por Médicos Sem Fronteiras em todo mundo.
No Brasil, em decorrência do desmatamento acelerado em algumas regiões, a leishmaniose tem migrado da zona rural para a urbana e os números são crescentes. Eram menos de 500 casos anuais no início da década de 1980, subindo para 2.500 em 1985, quase 4 mil em 1995 e cerca de 5 mil em 2001, reduzindo em seguida para manter-se em mais de 3 mil/ano nos últimos anos.
No caso da malária, a doença provocada por quatro espécies de protozoários do gênero Plasmodium (P. falciparum, P. vivax, P. malariae e P. ovale) e que está presente em 110 países continua devastadora no Brasil. Na opinião da Academia Brasileira de Ciências, “no Brasil ainda dispõe de um número reduzido de pesquisadores atuando na área, sobretudo no que se refere à pesquisa básica em P. vivax”, apesar dos esforços que têm sido feitos por vários estudiosos e instituições. Foram registrados 133.591 casos de malária em 2016 no Brasil, 217.928 em 2017, 194.572 em 2018 e 157.454 em 2019, de acordo com o Boletim Epidemiológico especial sobre Malária do Ministério da Saúde, de novembro de 2020.
Os números identificados no estudo de Stefan Vilges de Oliveira, Nikolas Lisboa Coda Dias e Álvaro A. Faccini-Martínez mostraram tendências diferentes no caso da dengue. Ao contrário do que foi observado em relação a leishmaniose visceral, leptospirose e malária, houve um aumento de 29,51% na média mensal por internações por dengue entre janeiro e agosto de 2020, em comparação com o mesmo período de 2017 a 2019. Foram 4071,3 internações mensais em média em 2020, contra 3297,5 internações mensais em média entre janeiro e agosto dos anos anteriores. Em termos de taxa de mortalidade por dengue, houve um acréscimo de 14,26% no período analisado em 2020, em relação aos três anos anteriores.
Os pesquisadores notam que muitas das intervenções essenciais para controlar a dengue “estão em desacordo com as diretrizes de prevenção e bloqueio da Covid-19, já que requerem ou implicam em proximidade entre as equipes de controle de vetores e a população residente”. Eles assinalam que em vários países tropicais a transmissão da dengue cresceu durantes a pandemia, notadamente na estação chuvosa, “porque foram interrompidas as medidas de controle do vetor, como as intervenções domiciliares para eliminar larvas, inspecionar criadouros e pulverizar as residências, e foram reduzidos os serviços de manutenção dos espaços públicos, jardins e a coleta de potenciais recipientes de água”.
Segundo o Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde sobre Arboviroses transmitidas por Aedes aegypti, foram notificados 987.173 casos prováveis (taxa de incidência de 469,8 casos por 100 mil habitantes) de dengue no Brasil em 2020, contra 1.544.987 casos em 2019.
O professor Stefan Vilges de Oliveira entende ser fundamental uma “vigilância ativa” para evitar que casos graves de doenças como leishmaniose, malária ou dengue não cresçam ainda mais no Brasil durante a pandemia. Ele defende que “os gestores da saúde não podem se esquecer dessas doenças que já são historicamente negligenciadas e que causam um impacto enorme na saúde e na economia”. Doenças como malária e dengue “não deixam de acontecer em razão da pandemia” e merecem uma atenção permanente, apesar de grande parte dos recursos estar sendo compreensivelmente direcionada para o combate à Covid-19, salienta o professor da UFU. “O gestor deve pensar e atuar de forma sistêmica”, acrescenta.
Alta subnotificação para Doença de Chagas
Uma alta subnotificação de casos também tem sido verificada em relação à Doença de Chagas, o que pode ter sido fatal para muitas pessoas que adquiriram a enfermidade e ficarão sem o diagnóstico. Estima-se entre 2 a 3 milhões o número de pessoas com a Doença de Chagas no Brasil e menos que 5% recebem tratamento adequado justamente porque não têm acesso ao diagnóstico da enfermidade provocada pelo protozoário Trypanosoma cruzi, que tem várias espécies de insetos como hospedeiros.
Casos de diagnóstico tardio são comuns no âmbito da Doença de Chagas, como ocorreu com Aparecida Benedita Francisco dos Santos, da Associação dos Chagásicos da Grande São Paulo, representante da presidência da Federação Internacional de Pessoas Infectadas por Doença de Chagas – Findechagas.
Ela conta que trabalhava no Centro de Referência em Saúde do Trabalhador de Santo Amaro, em São Paulo, e sua pressão estava subindo constantemente e os médicos não estavam identificando a causa. Até que um médico solicitou o exame sorológico para Chagas e o resultado foi positivo. Ela tinha pouco mais de 50 anos quando o diagnóstico foi fechado.
Aparecida dos Santos relata que morava em casa de pau-a-pique na região de Votuporanga, interior de São Paulo, onde provavelmente adquiriu a enfermidade. “Quando me falaram foi um baque. Havia os relatos de pessoas cobertas com chagas na Bíblia e eu imaginei que poderia ficar assim. Aos poucos foram me explicando o que realmente acontecia e me acalmei”, diz ela.
Portadora da Doença de Chagas, ela acabou se envolvendo na luta em defesa das vítimas da enfermidade, através da Associação dos Chagásicos da Grande São Paulo . “Muitas pessoas que têm a doença não sabem. Agora com a pandemia os doentes estão angustiados”, diz Aparecida, que não vê a hora de voltar a participar das atividades presenciais da organização de que faz parte, ajudando a divulgar informações sobre a Doença de Chagas e apoiando os portadores.
A subnotificação no caso da enfermidade foi comprovada pelo próprio Ministério da Saúde. Segundo o Boletim Epidemiológico Doença de Chagas, divulgado em março de 2021, foram notificados 2193 casos suspeitos de Doença de Chagas em 2020, contra 4169 em 2019, o que representa uma redução de 47,39%. Foram confirmados 146 casos em 2020, 62,27% a menos do que os 387 casos em 2019. Foram três óbitos confirmados pela doença, todos no estado do Pará. No período de março a agosto de 2020, foram registrados 125.691 óbitos por Covid-19 no Brasil, dos quais 0,2% (n=207) fazendo menção à Doença de Chagas como comorbidade que contribuiu para a morte.
O gerente de pesquisa e desenvolvimento da DNDi, Jadel Kratz, nota que a organização tem se esforçado, desde o começo da pandemia, em utilizar a própria experiência para mobilizar as redes e plataformas com as quais trabalha e contribuir com a resposta à Covid-19. “Desde o ponto de vista do cuidado das pessoas, a Covid-19 é um desafio relativamente novo e ainda não existem evidências científicas suficientes sobre sua interação com outras doenças infecciosas. Os profissionais com quem trabalhamos com pesquisa e desenvolvimento de medicamentos para doenças negligenciadas, como a doença de Chagas sabem que pessoas com problemas cardíacos – comuns entre indivíduos afetados pela doença de Chagas – têm mais risco de desenvolver formas mais agressivas de Covid”, ele comenta.
Jadel Kratz assinala que, pensando em trazer soluções para todas as pessoas acometidas pela doença de Chagas e para os profissionais de saúde que cuidam delas, a DNDi, em parceria com a Coalizão Chagas, desenvolveu uma série de perguntas e respostas que abrangem medidas básicas de proteção contra o novo coronavírus.
Além disso, completa Jadel Kratz, a DNDi, junto a um grupo de especialistas em Chagas de diversos países, apresentou artigo para a revista Global Heart Journal, da Federação Mundial do Coração, com recomendações para os professionais de saúde sobre o manejo de pacientes com doença de Chagas e Covid-19.
Atraso na distribuição de medicamentos afeta hansenianos
As estratégias de enfrentamento da hanseníase foram particularmente afetadas pela pandemia de Covid-19 e por equívocos na gestão, fatores que colocaram em risco conquistas importantes no combate à doença considerada negligenciada pela OMS e em relação à qual o Brasil ocupa o segundo lugar no ranking mundial de casos, atrás apenas da Índia. O Brasil lidera o ranking, entretanto, em termos das maiores taxas de infecção por 100.000 habitantes.
De fato, os números de casos novos de hanseníase estavam declinando no Brasil, de 50,5 mil em 2004 para 31 mil em 2014 e 25,2 mil casos em 2016, segundo dados do Ministério da Saúde. Um sinal de alerta já havia sido verificado com o aumento para 28.660 casos em 2018. No cenário da pandemia, o combate à doença ficou em xeque. A hanseníase é doença infectocontagiosa e o agente etiológico é o bacilo Mycobacterium leprae (M. Leprae).
Um dos agravantes no panorama da pandemia foi o colapso na entrega de medicamentos para portadores de hanseníase no Brasil ao longo de 2020. Na realidade, datam de março de 2020 os primeiros relatos de que pessoas com hanseníase não estavam conseguindo acesso, em unidades do Sistema Único de Saúde (SUS), aos medicamentos usados na poliquimioterapia (PQT) empregada no tratamento da doença. A PQT prescrita pela Organização Mundial da Saúde (OMS) abrange medicamentos como rifampicina, dapsona e clofazimina.
Como as denúncias começaram a se intensificar, no dia 17 de agosto o Movimento de Reintegração das Pessoas Afetas pela Hanseníase e seus Familiares (Morhan) pediu providências ao Ministério da Saúde. “É importante salientar que a falta de medicamentos para tratamento de pessoas acometidas pela hanseníase é uma situação gravíssima, pois os mesmos podem ser prejudicados por problemas de incapacidade física e psicológica, o que historicamente temos combatido com muito esforço”, afirmou o coordenador nacional do Morhan, Artur Custódio, em carta encaminhada à Coordenação Geral de Hanseníase e Doenças em Eliminação do Ministério da Saúde.
Custódio citou no documento relatos recebidos de pacientes de cidades como Escada e Recife, em Pernambuco, e Aparecida de Goiânia, de Goiás. Mas as denúncias prosseguiram e no dia 3 de setembro a Sociedade Brasileira de Hansenologia (SBH) e o Morhan protocolaram representação junto ao Ministério Público Federal (MPF), solicitando instauração de inquérito civil para garantir a regularização do abastecimento de medicamentos para tratamento de hanseníase no país e responsabilizar o poder público por prejuízos causados à saúde e vida dos usuários que dependem do SUS. A representação foi protocolada pelo advogado integrante da Rede Jurídica e de Direitos Humanos do Morhan, Carlos Nicodemos.
Além disso, a Sociedade Brasileira de Hansenologia também encaminhou questionamento à Organização Mundial da Saúde (OMS), sobre se teria conhecimento da falta de medicamentos para tratamento da hanseníase. A OMS é a fornecedora da maior parte dos medicamentos utilizados na poliquimioterapia aplicada em acometidos pela doença.
Documento divulgado pela SBH informou que o comunicado à OMS foi feito no dia 28 de outubro de 2020. A resposta da Organização Mundial da Saúde chegou dois dias depois, com estas informações, segundo o documento da SBH: “1. Que a OMS estava ciente da falta de PQT no Brasil desde agosto de 2020; 2. Que a quantidade de PQT solicitada pelo Brasil à OMS era suficiente para tratar os pacientes de 2020; 3. Que havia problemas com o envio da PQT para o Brasil; 4. Que há problemas com o suprimento de antibióticos da PQT do fornecedor para a OMS; 5. Que espera que um novo envio seja feito ao Brasil por via aérea dentro de 10 dias, “para diminuir o impacto da falta de PQT nos pacientes brasileiros”; 6. Que a produção dos blisters continua, mas que a capacidade de produção permanece limitada e, finalmente; 7. Que não é somente no Brasil que há falta de PQT”.
No documento datado de 3 de novembro, o presidente da SBH, Claudio Guedes Salgado, declarou ser “inexplicável não haver um estoque de emergência de PQT tanto na OMS quanto no próprio Brasil, primeiro país no mundo na taxa de detecção de casos novos”.
No dia 26 de novembro, a Coordenadoria Geral de Doenças em Eliminação (CGDE) do Ministério da Saúde, em webinário com serviços públicos de saúde das regiões Sul e Sudeste, alertou que a falta de medicamentos para tratamento da hanseníase no país seria agravada. Com a continuidade dos casos, o Morhan abriu um canal para receber relatos de pessoas com problemas para ter acesso aos medicamentos usados na poliquimioterapia de hanseníase.
O quadro inquietante devastador chegou ao conhecimento do Conselho de Direitos Humanos da ONU. Em comunicado divulgado em Genebra, na Suíça, no dia 28 de janeiro de 2021, a Relatora Especial das Nações Unidas sobre a Eliminação da Discriminação contra as Pessoas Afetadas pela Hanseníase, Alice Cruz, advertiu que o “impacto desproporcionalmente negativo” da pandemia sobre as pessoas portadoras de hanseníase pode levar ao “retrocesso no controle e transmissão” da doença e também na “prevenção de deficiências”. Se não é diagnosticada e tratada a tempo, a hanseníase pode ser incapacitante e provocadora de graves sequelas nos afetados.
Depois de salientar que a falta de distribuição e acesso aos medicamentos essenciais “está agravando tanto as deficiências quanto a transmissão e vem causando grande sofrimento” a acometidos pela hanseníase, Alice Cruz recordou que “a história da hanseníase mostra o quanto a discriminação e as desigualdades podem ser custosas, não apenas para os pacientes e seus familiares, mas também para as sociedades como um todo”.
A distribuição de medicamentos para tratamento da hanseníase voltou a ser normalizada em março de 2021, segundo anunciou o Ministério da Saúde, após tratativas com a Organização Panamericana da Saúde (OPAS/OMS) e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Entretanto, como alerta o coordenador nacional do Morhan, Artur Custódio, o problema estrutural permanece, segundo fundamental o investimento em recursos para que o Brasil não dependa mais do fornecimento externo.
Ainda não podem ser mensurados, contudo, todos os impactos da pandemia no enfrentamento da hanseníase no Brasil. Uma pesquisa realizada pela NHR Brasil, representante no país da organização nascida na Holanda NLR, mostrou um agravamento geral das condições de vida dos hansenianos. “Houve um agravamento da condição socioeconômica em razão do isolamento social, com perdas de postos de trabalho, e também dificuldade no acesso aos serviços de saúde sobrecarregados com o atendimento às vítimas da Covid-19″, comenta o diretor nacional de NHR Brasil, Alexandre Menezes.
Resultados preliminares da pesquisa mostraram que houve uma redução de 20% a 70% na notificação de casos novos de hanseníase no Brasil. “Sem esse diagnóstico, consequentemente aumenta o risco de, no futuro, serem agravadas as sequelas decorrentes da falta de tratamento, podendo levar o paciente à incapacidade física”, alerta Alexandre Menezes.
Com a demora na entrega de medicamentos e a expressiva subnotificação de casos novos, o coordenador de NHR Brasil entende que pode haver, sim, importante retrocesso no combate à hanseníase. Ele entende que o momento é oportuno para a ampliação da discussão sobre “caminhos efetivos que levem à produção de fármacos e vacinas há muito desejadas para o combate à hanseníase e outras doenças negligenciadas no Brasil” e em outros países.
Alexandre Menezes entende ser essencial a priorização das doenças negligenciadas nas políticas públicas e a maior integração entre o setor público e as organizações sociais que atuam no enfrentamento dessas enfermidades. “É raríssimo encontrar nos planos estaduais e municipais de saúde ações concretas de enfrentamento das doenças negligenciadas”, acrescenta o coordenador de NHR Brasil.
A NHR Brasil tem promovido várias ações no contexto da pandemia de Covid-19. Uma delas é a entrega de cestas básicas, itens de higiene e de autocuidado, como as que foram realizadas para famílias escolhidas no Ceará, em Pernambuco e em Rondônia.
Estas pessoas foram selecionadas dentre membros de grupos de autocuidado apoiados pela organização. Para esta seleção, foram adotados critérios para identificar famílias em situação de vulnerabilidade econômica e social, agravada com a pandemia.
A NHR Brasil é uma das organizações integrantes do Fórum Social Brasileiro de Enfrentamento das Doenças Infecciosas e Negligenciadas, constituído em 2016. A 30 de janeiro de 2021, por ocasião do Dia Mundial das Doenças Tropicais Negligenciadas, o Fórum reforçou a divulgação da Carta Aberta do 5ª Encontro Brasileiro de Movimentos Sociais de Luta contra Doenças Infecciosas e Negligenciadas, realizado de forma virtual ente os dias 10 e 12 de dezembro de 2020.
Entre os apelos contidos na Carta Aberta, estava a de inclusão, entre os grupos prioritários para a vacinação contra a Covid-19, de pessoas afetadas por doenças negligenciadas que apresentem aumento da vulnerabilidade para desenvolver síndrome respiratória grave em função da infecção pelo vírus Sars-CoV-2, tais como as pessoas afetadas por doença de Chagas, pessoas em tratamento de reações hansênicas, pessoas com leishmaniose visceral com comorbidades, pessoas portadoras de hepatites virais e outras DTN associadas a condições crônicas. Essa reivindicação não foi contemplada, entretanto, no Programa Nacional de Imunização contra a Covid-19.
Vacinas e medicamentos para DTNs demandam investimentos e nova governança
O desenvolvimento em tempo recorde não apenas de uma, mas de várias vacinas para combater a Covid-19 representa em princípio uma esperança para que processos similares ocorram no enfrentamento a algumas das doenças tropicais negligenciadas. Entretanto, muitos desafios precisam ser superados, advertem especialistas como Cristina Possas, assessora científica sênior do Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos/Fiocruz). O Bio-Manguinhos produz no Brasil, com transferência de tecnologia, a vacina ChAdOx-1 ou AZD1222, conhecida como vacina de Oxford, desenvolvida em parceria entre a universidade britânica e a farmacêutica AstraZeneca, detentora da patente.
Cristina Possas nota que diversos fatores contribuíram para a resposta acelerada no desenvolvimento e produção de vacinas na pandemia, em uma extraordinária conquista científica da humanidade. “O mais importante deles foi a intensificação da colaboração internacional apoiada por importantes mecanismos de financiamento, como a Operation Warp Speed nos EUA (US$ 1,5 bilhões) e outros. As parcerias público-privadas foram fundamentais nesse processo” comenta Cristina Possas.
Ela nota que nunca na história do desenvolvimento de vacinas “tantos governos, institutos de pesquisa públicos e privados e fundos públicos e privados estiveram envolvidos em iniciativas colaborativas, proporcionando, em menos de nove meses do surgimento da pandemia em Wuhan, China, enormes investimentos para o desenvolvimento de uma vacina”.
Esse cenário colaborativo, continua, levou a uma busca internacional acelerada sem paralelo por uma vacina, com mais de 195 projetos em todo o mundo. “Essa velocidade acelerada no desenvolvimento de vacinas inovadoras, com novas tecnologias no cenário da chamada Vacinologia 4.0, como vacinas de mRNA (Moderna, Pfizer / BioNTech) e vetores virais não replicantes (Oxford / AstraZeneca), se beneficiou também de desenvolvimentos inovadores anteriores de vacinas para outras doenças emergentes, como as vacinas contra SARS e Zika”, explica a assessora sênior da Biomanguinhos/Fiocruz.
Para Cristina Possas, de fato esse prazo recorde na produção de vacinas contra o novo coronavírus permite a esperança de que vacinas para o combate de algumas das doenças tropicais negligenciadas sejam mais rapidamente viabilizadas. “Sem dúvida, há uma esperança, pois esse é um gigantesco problema global e a consciência de sua importância vem aumentando. As DTN são responsáveis pelo adoecimento e morte de mais de um bilhão de pessoas em todo o mundo”, ela lembra.
A especialista adverte entretanto que existe o desafio de “assegurar um financiamento sustentável de longo prazo para vacinas contra essas doenças negligenciadas, consideradas “da pobreza” e sub-financiadas, pois não têm a mesma visibilidade do COVID-19 e outras doenças como HIV/AIDS”.
Cristina Possas lamenta que, pela menor visibilidade das doenças tropicais negligenciadas, apesar de seu altíssimo custo para as populações de mais baixa renda, ocorre um “baixíssimo financiamento que reflete a falta de prioridade nos organismos internacionais e nos países”. Com isso, na sua avaliação, as vacinas contra doenças negligenciadas “têm caído na quase totalidade em um ´vale da morte`, por não conseguirem passar da pesquisa básica ao desenvolvimento tecnológico e produção (“scale up’)”. A maioria dos projetos no mundo para vacinas contra doenças negligenciadas acaba sendo interrompida na fase da pesquisa básica por falta de financiamento sustentável, acrescenta.
Cristina Possas alerta que não basta somente a chamada “vontade política” para a produção de vacinas para o enfrentamento de doenças tropicais negligenciadas. “Se o financiamento sustentável for assegurado, o compartilhamento de plataformas tecnológicas inovadoras para vacinas de diversas doenças e os extraordinários avanços na inovação e desenvolvimento tecnológico dessas vacinas para Covid-19 poderão contribuir para acelerar o desenvolvimento de vacinas para doenças negligenciadas”, analisa.
Por outro lado, diz Cristina Possas, o fato da vacina de Covid-19 ter se beneficiado de desenvolvimentos prévios para vacinas de doenças emergentes que afetam as populações mais pobres, como Zika e Dengue, “mostra como pode ser danosa esta baixa prioridade para vacinas para doenças negligenciadas como sendo ´vacinas de pobreza` e de ´menor interesse global`”.
Hoje, adverte a assessora da Bio-Manguinhos/Fiocruz, “com a intensificação da mobilidade populacional por viagens internacionais e o risco exponencialmente aumentado de exposição e transmissão para as populações que cada vez mais se deslocam, todas as doenças são de interesse global, não há mais doenças infecciosas que possam ser negligenciadas! Isto é um enorme equívoco na estratégia política global. As doenças negligenciadas precisam ser devidamente valorizadas em toda a sua complexidade e não confinadas a um ´nicho da pobreza’, condenadas ao chamado ´vale da morte` em que novas vacinas para essas doenças acabem ´morrendo` por não receberem financiamento e incentivos suficientes para a vacina chegar aos estágios finais de desenvolvimento e produção”.
Países em desenvolvimento como o Brasil, defende a especialista, precisam urgentemente “criar capacidade local para autossuficiência no desenvolvimento e produção dessas vacinas, tanto para Covid-19 quanto para DTNs, reduzindo urgentemente a atual elevada dependência de importação de insumos da Índia e da China”.
Na sua opinião, esta capacitação local no desenvolvimento de vacinas deve ser apoiada por um Plano Estratégico Nacional de Inovação, Desenvolvimento e Produção de Vacinas para os próximos 30 anos, até 2050, apoiado por sua vez com “forte financiamento e incentivos, de forma sustentável a longo prazo”.
O gerente de pesquisa e desenvovimento da DNDi América Latina, Jadel Kratz, considera que, de fato, no caso do Sars-CoV-2, houve a oportunidade de validar novas plataformas, como as vacinas de mRNA, consolidando anos de pesquisa prévia de uma forma rápida e útil do ponto de vista de saúde pública. “Se pensarmos que o vírus foi sequenciado em janeiro do ano passado e no final do ano estávamos fazendo ensaios clínicos de fase 3 (a fase mais avançada antes da liberação para o público), tudo isso em um ano, é impressionante”, afirma.
Para Jadel Kratz, entretanto, o sucesso obtido com as vacinas para Sars-CoV-2 não garante que o mesmo nível de sucesso será obtido para todas as demais doenças. “Vírus, protozoários, bactérias são organismos bem diferentes entre si, e cada patologia tem peculiaridades e facetas únicas que dificultam o desenvolvimento de novas terapias. Mas ficou claro com esta experiência que é possível desenvolver vacinas ou medicamentos de qualidade muito mais rápido do que estamos acostumados quando se tem prioridade, financiamento, colaboração e objetivos em comum. E melhor ainda se os objetivos em comum forem aqueles dos pacientes que sofrem com necessidades médicas não atendidas”, defende o gerente de P&D da DNDi América Latina.
“Nesse sentido, além do desafio tecnológico, ainda falta tornar as novas ferramentas de saúde um bem comum, livre de restrições relacionadas à propriedade intelectual, e que o investimento em pesquisa, assim como a produção de medicamentos, transparente e sustentável ao ponto de que a população tenha acesso equitativo a estas vacinas e/ou medicamentos”, sustenta Jadel Kratz.
O pesquisador da Unicamp, Luiz Carlos Dias, lembra que no século 21 não foi produzido nenhum medicamento inovador para qualquer uma das doenças tropicais negligenciadas. Ele nota que muitas das DTNs são transmitidas por parasitas, cujo ciclo de vida é muito complexo, adquirindo rápida resistência a vacinas e medicamentos.
O especialista considera que as conquistas no combate ao Sars-CoV-2 mostram ser possível acelerar as fases de desenvolvimento de medicamentos e vacinas, sem prejuízo para a segurança e a eficácia. “Precisamos aproveitar esses esforços para combater doenças negligenciadas há décadas”, defende Dias.
Pandemia impacta roteiro da OMS para enfrentamento das DTNs até 2030
No final de janeiro de 2021 a Organização Mundial da Saúde lançou um novo roteiro para o enfrentamento das doenças tropicais negligenciadas até 2030, em consonância com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). O roteiro Ending the neglect to attain the Sustainable Development Goals: a road map for neglected tropical diseases 2021–2030 tem o propósito de “acelerar a ação programática e renovar o ímpeto, propondo ações concretas focadas em plataformas integradas para a entrega de intervenções e, assim, melhorar a relação custo-eficácia e a cobertura de programas”. O roteiro foi aprovado pela Assembleia Mundial da Saúde (WHA 73) em novembro de 2020.
Entre as metas do roteiro estão a erradicação da dracunculíase (doença do verme-da-guiné) e da bouba, que pelo menos 100 países eliminem ao menos uma das DTNs, a redução em 75% dos anos de vida perdidos ajustados por incapacidade (DALYs) relacionados às DTNs e a redução de 90% na necessidade de tratamento para doenças tropicais negligenciadas até 2030.
O roteiro é fruto do trabalho de dois anos e foi concluído após ampla consulta global, iniciada portanto antes da pandemia de Covid-19. Para vários especialistas, a pandemia pode afetar consideravelmente o cumprimento das metas da iniciativa da OMS.
A Relatora Especial das Nações Unidas para a Eliminação da Discriminação contra as Pessoas Afetadas pela Hanseníase e seus Familiares, Alice Cruz, enfatiza que, realmente, o documento produzido pela OMS reflete a situação epidemiológica e dos sistemas de saúde nos países endêmicos anterior à pandemia de Covid-19. “Creio que a pandemia alterou toda essa situação e que nesse momento lidamos com a realidade dramática de uma diminuição de cerca de 50% na descoberta de novos casos, em todos países afetados pela hanseníase”, alerta.
Alice Cruz entende que, que neste contexto, “se não houver uma melhoria rápida, urgente, dessa situação de queda abrupta na capacidade diagnóstico da hanseníase nos países endêmicos”, as metas indicadas no roteiro da OMS não serão cumpridas. O roteiro contempla as metas de 75 países com zero novos casos autóctones de hanseníase até 2023, 95 países até 2025 e 120 países até 2030.
A relatora da ONU lembra que ainda não existem tecnologias suficientemente eficazes para interromper a transmissão de hanseníase, apesar do programa global recomendar a quimioprofilaxia, cuja aplicação depende, entretanto, de “situações sociais e econômicas que se deterioram muito, junto com a queda na capacidade de diagnóstico, no contexto da pandemia”.
A assessora sênior de Bio-Manguinhos/Fiocruz, Cristina Possas, considera que o documento “Ending the neglect to attain the Sustainable Development Goals: a road map for neglected tropical diseases 2021–2030” tem “a maior importância, tem caráter estratégico global e metas ambiciosas na perspectiva do desenvolvimento sustentável”. Ela destaca a ênfase do roteiro em “intervenções intersetoriais integradas, com investimento inteligente e amplo engajamento da comunidade, com vistas a fortalecer e sustentar os sistemas nacionais de saúde”.
Contudo, Cristina Possas considera que o Brasil “precisa com urgência, em uma parceria entre o Ministério da Saúde e o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, elaborar um Plano Estratégico Nacional para Redução das DTNs até 2030 , que contemple este novo roadmap da OMS na perspectiva do desenvolvimento sustentável, assegurando ações efetivas de impacto não apenas no âmbito da assistência no SUS mas também na inovação, desenvolvimento tecnológico e produção de produtos estratégicos para alcançar essas metas da OMS, como novas vacinas, kits para diagnóstico, biofármacos e medicamentos, reduzindo a elevada dependência externa”. Esse Plano Estratégico, acrescenta, deve ser “implementado e monitorado de perto com indicadores de alcance das metas estabelecidas em consonância com o roadmap da OMS”.
O diretor nacional de NHR Brasil, Alexandre Menezes, evidencia como um ponto positivo do roteiro traçado pela OMS a sua construção participativa, tendo sido ouvidas organizações que atuam no setor de todo o mundo, além de instâncias governamentais. E nessa linha ele salienta que o roteiro reforça a importância da participação e do controle social no desenho de políticas de enfrentamento da hanseníase. “Os Conselhos por exemplo são fundamentais, são espaços para a sociedade se manifestar, e infelizmente eles têm perdido força a partir da postura do governo atual”, ele lamenta.
Outro ingrediente relevante do roteiro da OMS, para Alexandre Menezes, é a interface das propostas de enfrentamento da hanseníase com o conjunto de Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030. “O roteiro mostra claramente a importância de desenvolvimento de políticas em outros setores além da saúde para que as metas propostas sejam alcançadas”, analisa o diretor nacional da NHR Brasil.
Para o gerente de pesquisa e desenvolvimento da DNDi América Latina, Jadel Kratz, é “difícil evitar os impactos negativos da pandemia como um todo, mas ainda é mais complicado medir as consequências no sistema de saúde, na pesquisa e desenvolvimento de medicamentos e no controle e eliminação de doenças”.
Ele considera que, em relação ao roteiro proposto pela OMS, será necessário “trabalhar muito para poder recuperar o retrocesso adquirido nos últimos meses e lutar para que as doenças negligenciadas sejam priorizadas para que juntos possamos avançar na prevenção, controle, eliminação ou erradicação de 20 doenças e grupos de doenças, bem como metas transversais alinhadas às estabelecidas pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS)”.
Permanecem dúvidas, em síntese, se o roteiro traçado pela OMS será suficiente para o enfrentamento das doenças tropicais negligenciadas no pós-pandemia. O quadro anterior já era inquietante, como demonstrou o Relatório G-Finder 2020, confirmando a estagnação por uma década em investimentos globais em pesquisa e desenvolvimento para o enfrentamento das DTNs. Em 2019, o investimento em P&D em doenças tropicais negligenciadas tinha aumentado somente US$7,5 milhões em relação ao ano anterior, chegando a US$ 328 milhões, ou 8,5% do financiamento global das doenças negligenciadas.
As tendências no pós-pandemia incomodam os pesquisadores. “Penso que se não houver preocupação das organizações internacionais e dos países, a pandemia poderá reduzir drasticamente o financiamento das vacinas para HIV/AIDS, Tuberculose e Malária pelo Fundo Global (Global Fund to Fight AIDS, Tuberculosis and Malaria) e sobretudo para as outras DTNs, já muito negligenciadas, pelas pressões na pandemia pelo redirecionamento dos recursos para vacinas para Covid-19 e também pela necessidade de redesenhar vacinas para as suas novas variantes (Reino Unido – B.1.1.7; África do Sul – B.1.351 e recentemente a do Brasil com a variante P.1. que surgiu na Amazônia e outra variante brasileira P.2)”, adverte Cristina Possas, da Bio-Manguinhos/Fiocruz.
Para ela, é “urgente portanto alertar para este redirecionamento de recursos por pressão pelo agravamento global da pandemia, que poderá reduzir recursos para DTNs e buscar um novo paradigma para o desenvolvimento e produção de vacinas para doenças negligenciadas. É uma questão de direitos humanos e soberania nacional”, conclui Cristina Possas, resumindo a angústia dominante sobre qual será o futuro do enfrentamento das doenças tropicais negligenciadas no Brasil, se as suas milhares de vítimas continuarem marginalizadas da agenda pública, de governos, empresas e sociedade em geral.