Por José Pedro Martins
A arte sempre projeta luzes em tempos sombrios e conturbados. Grande parte das obras da mostra Gravado, em cartaz no SESC-Piracicaba até o dia 26 de junho, pode ser interpretada como um grito de alerta contra as ditaduras, de farda, colete ou colarinho branco. Uma séria reflexão, em momento em que parte da sociedade brasileira manifesta nostalgia em relação aos períodos autoritários que marcam a maior parte de nossa história.
Gravado é composta por obras de artistas brasileiros do Acervo SESC, produzidas com as diversas técnicas de gravura conhecidas ou em experimentação. No conjunto, a mostra traça um painel da arte contemporânea no país, pela presença de alguns dos grandes nomes das nossas artes plásticas e de criadores jovens que sinalizam o vigor e as perspectivas positivas nesse segmento.
Parcela importante dessas obras foi realizada no período da ditadura militar (1964-1984) e expressa, portanto, a inquietação de nossos artistas com aquele tempo que se imaginava definitivamente enterrado. No cenário político, cultural e social atual, a mostra provoca novos questionamentos, sobre se vale à pena repetir golpes em nossa tão recente democracia.
Xilogravura – O percurso começa com a xilogravura, a técnica que utiliza como matriz a madeira entalhada, semelhante a um carimbo. Igualmente conhecida como “gravura em relevo”, com a imagem sendo esculpida com entalhes na madeira. Depois a tinta é aplicada na matriz, em seguida aplicada ao papel. Por ser uma técnica que exige poucos recursos, a xilogravura é largamente utilizada, por exemplo, pela arte popular do Nordeste brasileiro, como na elaboração das capas da literatura de cordel.
Exemplares disso estão na mostra no SESC-Piracicaba, nas obras de Manassés (“O vendedor de coco”), J.Miguel (“Os artesãos”) e Gilvan Samico (“No reino da ave dos três punhais” e “As três irmãs camponesas”, esta de 1963, um ano antes do golpe militar-empresarial no Brasil).
Outro destaque na seção de xilogravura é “Balada do terror”, de Maria Bonomi. É uma das obras mais fortes da exposição, mantendo o impacto de quando foi concebida, em 1973, auge da ditadura. Um jogo intenso entre vermelho e negro, podendo representar, quem sabe?, o sangue jorrado sobre impressões digitais ou, até, o odioso pau-de-arara utilizado como instrumento de tortura. A leitura é pesada, de qualquer forma.
Gravura em metal – Obras relevantes também na ala de gravura em metal. Trata-se de um processo de gravura executado com matriz de metal, geralmente cobre. São várias técnicas que utilizam a gravura em metal, incluindo água-forte e água-tinta, que usam ácidos.
É a hora de apreciar obras de Marcelo Sallum (“Sem Título I e II”), da grande Tomie Otahke (“Sem título”, 1993) e Marcelo Grassmann (“Sem título” de 1980 e 1989), outro expoente da arte contemporânea verde-amarela.
Litografia – Gravura a partir da pedra calcária. A pedra é limpa com solvente e, depois do desengorduramento, é granida geralmente com areia, para produzir o efeito de granulação na superfície. O desenho é então produzido sobre a pedra com lápis litográfico ou tinta oleosa.
A técnica é representada na mostra com obras de Mariana Quito e Antonio Carlos Dumas Seixas. Este artista comparece com “Desmapeamento”, uma litografia que lembra o mapa de São Paulo “desmanchando”, podendo significar, talvez, a destruição da Mata Atlântica ou outros recursos naturais no estado mais rico do país – uma riqueza construída, sabemos, em boa parte com a degradação ambiental.
Fotogravura – Mescla gravura e fotografia, com a utilização de água-tinta para a gravação de imagens fotográficas. Uma das obras em exposição é a série RG, de Ubirajara Ribeiro, de 1980. São “fotos de carteira de identidade” em decomposição, como a identidade naquele momento crítico da vida do país.
Serigrafia – Também conhecida como silk-screen, é um processo de impressão em que a tinta é vazada através de uma tela preparada, com o uso da pressão de um rodo ou puxador de tinta. A matriz serigráfica é normalmente confeccionada de poliéster ou nylon e esticada em um quadro de madeira, alumínio ou aço. A fixação da imagem ocorre pela fotossensibilidade.
A série “Amores”, de Wesley Dike Lee, de 1980, é uma das obras do segmento. Em tempos de ódio, “amor” é uma palavra muito subversiva. Outras obras são “Vulto” (1987), de Ivald Granato; “Bandeirinhas” (1979), de Alfredo Volpi; e “Poste” (1975”, de Carmen Bardy.
E mais três obras de Athos Bulcão: “Natividade” (1958), “Preto e Branco” (1971) e Sem título branco e azul (1959). Athos Bulcão foi assistente de Cândido Portinari na montagem do painel de São Francisco de Assis na Igreja da Pampulha, em Belo Horizonte, e tem uma carreira muito associada à construção de Brasília, pela parceria com os arquitetos Oscar Niemeyer e João Filgueiras Lima, o “Lelé”.
Em muitas de suas obras, Athos Bulcão deu aos operários o poder de executar como desejassem a montagem dos painéis de sua autoria. Por isso, vários desses painéis apresentam padrões geométricos “distorcidos”, pela forma como os operários fixavam os azulejos. Uma metáfora da democracia que deve ser erguida pelo povo? A utopia que Brasília representava, e ultimamente tão golpeada.
Outras técnicas – Outras técnicas de gravura estão presentes na mostra Gravado, no SESC-Piracicaba. A “ferrogravura”, com o “Ferro de engomar sobre papel”, de 1974, de Paulo Bruscky, um grande inspirador de Arnaldo Antunes. A monotipia sobre organza “Sem título”, de 2000, de Mirella Mostoni.
Duas obras, de técnicas já citadas, merecem especial atenção do visitante, que ainda tem um bom tempo para não perder essa mostra muito expressiva da arte brasileira. A série “Paulistana” é uma sequência de fotogravuras de Alex Flemming, de 1980, mostrando o cidadão comum, oprimido, excluído no cenário da maior e mais rica cidade brasileira. A xilogravura “Bananas” de Antonio Henrique Amaral, de 1971, pode indicar um corpo sendo carregado pela multidão. Não, não queremos a volta de qualquer tipo de ditadura, nos diz “Gravado”, no SESC-Piracicaba, que ainda contém outras preciosidades.