Por Daniela Prandi
O motorista do ônibus me pergunta: “onde vai ficar?” Eu não sei, vim em busca da certidão de nascimento do meu nonno, que deixou Moliterno, a pequena cidade com pouco mais de 4 mil habitantes no alto de uma montanha nos Apeninos aos 9 anos de idade, em 1887. Antes de fechar a porta o motorista avisa: “é bom saber porque não há mais ônibus para descer a montanha hoje”.
Moliterno me recebe com um vento cortante, que me descabela e dá calafrios. O mesmo vento que me recebeu em Potenza, a cidade onde desci do trem vindo de Roma para pegar o ônibus que me levaria, numa estrada de 70km com curvas acentuadas e cenários deslumbrantes, até a terra-natal dos meus antepassados. A primeira placa “Moliterno” demora a aparecer e a forasteira ali, naquele ônibus lotado de estudantes que enfrentam duas horas para ir e voltar da escola todos os dias, chama a atenção. O motorista, intrigado com a minha presença, não demora a fazer contato. Eu entendo um pouco de italiano, mas conversar é “un’altra cosa”.
Os estudantes riem, falam alto, tiram sarro uns dos outros, enquanto espero meu destino, tentando assimilar o que o motorista está me falando. Vários vão ficando pelas pequenas cidades e, no final, sobram eu e outros poucos. Ali todos já sabem que sou brasiliana e é impossível não sentir a curiosidade no ar.
O motorista me mostra onde é o prédio da comune, como são chamadas as prefeituras, e segue seu destino. O lugar está vazio, caminho pelos corredores do antigo casarão em busca de alguém que me indique em qual daquelas portas é o cartório, o “anagrafe”, em italiano. Uma senhora aparece e diz que é preciso esperar, logo vão reabrir. A mesma mulher, que depois descubro ser a faxineira do lugar, com muita gentileza me chama. Entro no cartório pela porta dos fundos, me desculpo pela confusão, e logo ganho uma cadeira e um cantinho para colocar a mochila.
Quem me atende é a senhora Maria, que olha as cópias dos documentos que carrego comigo e, aos poucos, começamos a nos entender. Sei o endereço onde meu nonno nasceu e ela se surpreende quando mostro a foto tirada do Google Earth. Com os papéis prontos, ela me pergunta onde vou passar a noite e me indica um lugar para dormir, um pequeno apartamento em cima de um bar-restaurante chamado Arcimboldi, a alguns metros dali, enquanto abre o computador para me mostrar as fotos do lugar, diz o preço, conta que conhece muito bem a proprietária, e eu cada vez mais agradecida. Então, Maria começa a telefonar para conhecidos para tentar encontrar algum parente, embora eu tenha dito que não há mais ninguém por lá.
Com os papéis que precisava nas mãos, saio feliz, com o vento batendo no rosto, em direção ao Arcimboldi. O castelo de Moliterno, deslumbrante, começava a ganhar os tons do cair da tarde. Francesca, a sorridente proprietária, me recebe com uma piadina recém-assada e aquele pastel de queijo cuja receita remonta aos tempos romanos realmente me conforta. O apartamento é muito acolhedor e decido ficar duas noites. Quero andar pela cidade, pelas mesmas ruas onde meu nonno cresceu, sentir o clima, afinal. Comento com Francesca sobre a casa onde minha família vivia e prontamente ela me leva até lá, no endereço que fica a poucos metros dali. Percorremos a Via Tempone até encontrarmos a casa. E aquela imagem borrada tirada do Google Earth finalmente se materializa. A emoção bate forte.
Na mesma noite recebo uma visita inesperada. Francesca bate na porta e me avisa: o prefeito, “sindaco” em italiano, veio me conhecer. Guiseppe, mesmo nome do meu nonno, já tinha respeitosamente respondido ao meu e-mail semanas antes, quando, ainda no Brasil, escrevi dizendo que iria a Moliterno. O senhor alto, de modos gentis, me convida para conhecer a cidade no dia seguinte e eu prontamente aceito.
Na manhã seguinte, madrugo e retorno à Via Tempone para tirar fotos. Algumas senhoras saem de suas casas em direção a uma pequena igreja na esquina, onde começam as rezas. O cheiro de café e pão fresco aguça meus sentidos e “quase” posso ver meus antepassados se preparando para mais um dia em Moliterno. Como deve ter sido difícil deixar aquele belo lugar para uma aventura além-mar e o que os terias levado a tomar a decisão de imigrar para o Brasil …
Estou pronta para o passeio no carro oficial da prefeitura, mas antes conheço a bibliotecária Nilla, que me apresenta a história da cidade e me presenteia com folhetos, livro e até um DVD sobre a região enquanto mostra a premiada biblioteca, instalada em um prédio muito bem preservado, onde, além de livros, fotografias e documentos, há diversos objetos históricos, como as roupas que as mulheres usavam no passado. “Provavelmente era assim que sua bisavó se vestia”, afirma, ao mostrar a saia preta com muitas possibilidades de ajuste na cintura para as mulheres usarem também quando estavam grávidas.
Moliterno está localizada na intersecção de três regiões, Campania, Calabria e Basilicata, e seu nome tem origem na palavra latina “mulcternum”, que significa “lugar onde o leite é ordenhado e coagulado”. O queijo pecorino dali é um dos orgulhos nacionais, produzido com leite de ovelhas e cabras de pastagens naturais. E é com pecorino que o passeio começa. Junto com o prefeito e o vice-prefeito, visito a loja de queijos do senhor Rocco Cassino, que mostra alguns dos pecorinos à venda enquanto nos prepara uma deliciosa degustação.
A conversa é animada e, mais uma vez, a memória dos meus antepassados me emociona, já que eles, assim como a família Cassino, também era produtora de queijos, como, desconfio, a maioria de quem vivia ali no século 19. No retorno, com o castelo a acompanhar o trajeto, pergunto se é possível visitar o local. O sindaco diz que está fechado, que pena… Mas há uma “possibilità”.
Francesca me convida para almoçar com ela e o marido. Preparou “comida de domingo”, com uma massa recheada de pecorino, mais salsichas, frutas e sorvete. Almoçamos vendo o noticiário da TV, como uma família, e conversamos animadamente. Mais tarde passei algum tempo com sua jovem ajudante, Liliana, fã de rock e com boas histórias para contar e disposição para se fazer entender. “Lili” mora no campo e encara todos o dias o trajeto até Moliterno, faça chuva, faça sol ou até mesmo quando neva. Costuma postar seu dia a dia no Instagram e prontamente ficamos amigas, reais e virtuais.
Nilla e o prefeito fizeram seus arranjos e o castelo, enfim, poderá ser visitado. Naquela tarde, guiada por Pasquale, responsável pelas atividades turísticas de Moliterno, Francesca me acompanha. Na cidade que começou a se organizar em torno do castelo por volta do século 8, atravessamos ruelas, encaramos subidas íngremes, passamos pela bela igreja Madre Della’Assunta, do século 11, e chegamos ao ponto final.
A construção não é comumente aberta à visitação, mas naquela tarde Pasquale, com um grande molho de chaves nas mãos, abriu as portas do patrimônio histórico que guarda tantas lembranças e que testemunhou o nascimento do núcleo original moliternense. A 880 metros acima do nível do mar, a vista dali é deslumbrante, com as montanhas verdejantes ao fundo. No retorno, paramos em dois pequenos museus, um deles onde se reproduz uma moradia do passado. Mais uma vez foi impossível não pensar na minha família.
Na manhã seguinte, revigorada com tanta gentileza, tanto carinho, feliz pela experiência, continuei o meu caminho. Nas primeiras horas do dia, deixei Moliterno, mas Moliterno não me deixou. A terra do meu nonno ganhou um lugar especial no meu coração e só tenho a agradecer.
PS – Optei por preservar os sobrenomes dos meus novos amigos por privacidade