POR RAFA CARVALHO
Um filho é quase um terremoto.
Algo como um tremor que dá na gente. Forte. Desaba tudo, que é feito de mentira. Deixa em pé só o que está firme. Inclusive, aquilo que não gostamos. Coisas que não assumimos. E até, o que nem sabemos.
Um filho também é uma espécie de química reveladora das hipocrisias. Que nos expõe como demagogos, escancarando contradições, e o nosso toque blasé em sermos tão intelectuais, certos das coisas segundo este e aquele. Isto, aquilo. E sobretudo: eu mesmo.
E porque receber – e criar – um filho é nascer com ele, uma experiência totalmente prática, vou ser prático no exemplo. Sim, eu amei a Xuxa em minha infância. Morri de amores por Miúxa Bruxa. E muito afeito a algumas outras. Depois fui aprendendo a surpresa – e mais tarde a complexidade – da vida com elas. Vendo os tais filmes da Xuxa, a revista, reconhecendo a uma das paquitas, queridas, seminua outro dia, no outdoor dum luxuoso american bar da cidade, por onde eu passava voltando da escola, quando no colégio atravessava a pé a cidade pra estudar em condição melhor. O anúncio dizia: agora não para os baixinhos. E enfim, chegou o tempo de sentir uma profunda vergonha – e mesmo arrependimento – de um dia ter gostado disso. De ter gastado tanto tempo, sonho e energia nisso. De ter tocado “ilariê” na única festa de aniversário que tive, quando criança. E de tanta coisa mais.
Sei lá o que a gente pensa. Acho que vem uma bobice posterior e idealizamos o quanto seria lindo mamãe sentar e nos ler James Joyce ao chão da sala entre uns brinquedos. Ter uma companhia apresentando “O banquete” do Platão, na festinha de cinco anos. Não sei. Mas o fato é que a Xuxa habitou minha infância, junto com a de um bairro inteiro. E muito mais que ele – eu sei. Mas àquele tempo o mundo era mesmo só isso: o bairro.
Os seus discos rodando ao contrário, a boneca dela assassina, tudo isto. Meu irmão inclusive animou familiares no enterro de meu vô, dançando “Coco”, a dança que remexe, em uma performance memorável. Ele tinha três anos e um cérebro o qual até hoje, medicina nenhuma consegue explicar. A Xuxa foi tudo isso. Dessa abrangência e – por que não dizer: importância. Não adianta que eu me arrependa, ou finja que não.
Daí, a gente faz um discurso magnífico de criação dos filhos, com Paulo Freire e tudo que o governo tenta destruir. Com esse mesclun tão gourmet e elaborado de antroposofia, cultura indígena nativa, zen-budismo e Hakim Bey. E de repente, numa quarta-feira de outono suave e despretensiosa, cê se pega cantando algum hit dos baixinhos pra seu filho. Num momento de desespero, mera distração, uma manha, à contenção de algum choro repentino que insiste. Qualquer daqueles momentos bobos esplêndidos que temos na frente deles, em seus carrinhos e bebês confortos.
E pronto: bate aquela bad. Tipo depressão mesmo. Sensação amarga de haver traído. A si mesmo, aos princípios, metas, mestres, referências bibliográficas. À evolução da espécie, a classe artística, crítico-social, formadora de opinião e transformadora do mundo. Dá uma dor no peito. Uma vontade de tomar um conhaque olhando pro fracasso. Ouvindo aquele Tom Waits que você vai apresentar pro seu filho quando ele estiver mais velho. Num blend com Nina Simone e Billie Holiday, sustendo a ilusão de que ele não vai antes passar por Anitta e outras tantas. Vozes e trilhas distintas.
Pois não. Um filho é um terremoto. E a Xuxa fica. Em pé, sim. Porque ela foi real em nossas vidas, pais nascidos em 80. Pelo menos à maioria de nós, em que eu me incluo. A vida é dura. Surpreendente e complexa. E que dure assim, a vida. Passando de geração pra geração. Com a gente vendo esse mundo girar. Girando com ele. E por que não aprendendo? Que o encanto da vida, consiste mesmo nisto: a possibilidade de desenvolvermos.
Não é preciso demolir os monumentos do passado. Negar que dançou poperô, pra legitimar Pina Bausch. Eu aprendi a dançar Michael Jackson até o chão com um cachecol de paetês enrolando meu pescoço, com um japa chamado Tadashi Endo: que é “só” a grande referência viva do butô mundial. Toco na roda de samba um Chico Buarque vencedor do Camões, com a mesma veemência que toco um Exalta, o Molejão, ou Katinguelê. Paulo Freire não negaria Xuxa, Anitta. Nossos filhos não vão crescer em aquários, redomas. Como nós também não crescemos. Nem como sequer teria graça.
Vai, Fé. Continua quebrando tudo. Pondo abaixo o que é inverdade. Vamos amar o passado com toda sua imperfeição, como eu amo a paisagem dos barracos pensos pelos morros gigantes, amontoados entre a garoa e a neblina, na cidade em que nasci. Vamos curtir o presente. E erguer um futuro humano. Só isso nos basta: que seja mais humano. Com contradição, com tudo. Mas que possa haver amor. Cada vez mais: amor.
Mães, pais, de repente aproveitem o amor por seus filhos, suas filhas – este amor indescritível – pra se libertarem, num renascimento com elas e eles. Humor e amor andam juntos, na rotina dos dias. A gente talvez gaste muita energia sustentando o que é mentira. E escondendo montanhas inteiras da nossa história, sólidas e reais. Minas de um futuro mais brilhante e luminoso, quem sabe – se assim as trabalharmos. Coisas que devemos assumir. Afinal, há que se encarar os túneis. Escaladas, travessias. Pois também, se não nos cuidamos, não tem colar de âmbar do báltico que resolva, em nossas crias, as doenças de nós mesmos, às quais lhes sirvamos de hospedeiros.
Eu vivi tanta coisa distinta. E cheguei num presente tão interessante assim. Sim, muito imperfeito ainda. Mas tranquilo, sabem. Com J. Joyce e Sorriso Maroto. Tanta dona Irene, quanto Bakhtin. Que solfejo Mozart, Bach, pro meu filho dormir. Mas no que ele pira mesmo, de gargalhar todo dia: é em nossa versão de “Vem neném”, do Harmonia.
Meu filho resgatou em mim a capacidade – ou a necessidade – do choro. De saudade. Coisa que já fiz muito nessa vida. Mas que havia muito não fazia. Como se os motivos mais sutis não me afetassem mais, com a vida vindo assim, endurecendo. Às cascas que isso cria. Fui passar o dia noutra cidade, trabalhando, e no ônibus, na volta, escorado à janela, tudo noturno: chorei. De saudade. Do filho. Tinha passado doze horas longe de casa. Uma dúzia delas, meio dia somente. E já consegui chorar as águas abundantes da saudade. Até aí, tudo bem, eu acho. É fofo e tal. Vocês vão achar bonitinho, sensível. Ou mesmo natural. Quero dizer, as pessoas que tenham vivência, empatia e desbloqueio emocional o suficiente para isso. De repente a maioria das mães, e uns três, quatro pais. Talvez quase todas as mulheres, e alguns homens – não mais que um time de futebol; por enquanto.
Mas tá. Passado esse papo de Xuxa: e se eu disser que, embora eu não tenha assistido Teletubbies – já não era a minha época, e vi muito mais deles nas sátiras do Casseta pelas terças, que em suas próprias sessões matinais. Se eu disser que mesmo assim: eu olhava o breu pela janela, do ônibus, e imaginava ali o rosto do Fé dentro de um Sol, bem daquele jeito brega, cafona e até um pouco medonho, ensolarando minha vida entre sorrisos, aquecendo o momento com um gritinho desses que derretem a gente. Que antes de rir da cena, tamanha a minha bobeira, eu chorei sim, de saudade e em bicas, à imagem de meu filho, no Sol dum seriado bobo, que sei lá porque me veio à mente. E se eu disser?
Eu, que outrora jurei que não veria esses programas, de musiquinha de galinha, tubarão, dinossauro roxo, porca rosa e outros animaizinhos coloridos no quintal, com essas faixas de abertura que levam três meses pra sair do repeat à cabeça da gente. Eu que tive arrepios na espinha, gastura por ver menininhas de princesa gritando let it go, let it go ao congelarem pessoas imaginariamente. E meninos, fazendo coisas nada menos angustiantes. Já não digo mais nada. Apenas que: conte comigo pra tudo, sempre, filho. Tamojunto nisso de nascer. Se for pra nos vestirmos de princesa e congelar uma galera por aí, vamos nessa. Pula-pula, bole-bole. Que a vida dure, filho – mesmo quando dura – como tem durado pro seu pai. E que você faça do seu mundo de verdade, um mundo onde seja possível: ser feliz. Mesmo com a tristeza, a contradição. Mesmo com a gente, filho. Faça delícia de tudo, no final das suas contas.
E deste texto, por agora: é hora de dar tchau. Tcha-au!