Capa » Comportamento » A União faz a força
A União faz a força
Berlim: sentimos sua falta (Foto Newton Gmurczyk)

A União faz a força

Por Lucila Vieira e Newton Gmurczyk

Como Berlim enfrentou – e superou – sua maior crise após a segunda guerra, aos olhos de dois moradores brasileiros na cidade.

Berlim é uma cidade de contrastes. É jovem, cosmopolita e intensa. Os berlinenses e gente de várias partes do mundo alimentam de vida uma cidade marcada pelo sofrimento. Arte na rua, grafites, cartazes anunciando concertos, peças de teatro e exposições estão por todo lado. É também uma cidade antiga, repleta de história, marcas da guerra e cicatrizes ainda de muitos anos dividida por um muro. A guerra acabou, o muro caiu, tudo mudou de um dia para outro. Os berlinenses  sabem enfrentar mudanças e situações adversas com rapidez. Mudar é parte de pertencer a Berlim. Aqui tudo acontece, tudo muda rápido, tudo é contraste, inovação, desafio e aceitação. Com dois anos morando na cidade, é interessante observar a pandemia por aqui.

Chaussestrasse vazia (Foto  Newton Gmurczyk)

Chaussestrasse vazia (Foto
Newton Gmurczyk)

Um governo presente – A União

A Alemanha é uma república parlamentar formada por estados e com um governo central. Logo que se percebeu que a coisa era séria, os estados e a chanceler Angela Merkel começaram a agir. Decidiram conjuntamente como avaliar os perigos da pandemia para a saúde das pessoas, os impactos na economia, a capacidade do sistema de saúde para atender a população, as ações a serem tomadas. Um plano claro foi traçado e as ações de restrição social foram sendo tomadas paulatinamente. Decidiram conjuntamente, mas não em absoluta concordância. Houve debates, conflito de ideias, oposição (sim, aqui também tem políticos…) mas, uma vez decidido o que fazer, todos aceitam e fazem. A impressão é de que todos remam para o mesmo lado.

Escolas fecharam, o comércio parou. O turismo – tão forte por aqui – teve que encerrar suas atividades da noite para o dia. A cidade “apagou”, sem seus bares, cafés, restaurantes, hotéis e gente, gente, muita gente. Somente farmácias, correios e locais de compra de alimentos funcionaram. Mesmo assim, com restrição do número de pessoas dentro. Houve momentos de relativo desabastecimento e filas se formavam nas ruas. Nenhum tipo de reunião ou aglomeração. Não houve proibição de sair de casa, mas circular na rua somente com um bom motivo e, no máximo, aos pares e se as duas pessoas morassem na mesma casa. No pico, a polícia andava pelas ruas dispersando as pessoas.

As ações foram duras, tomadas com um olho na economia e outro olho no que falava o Instituto Robert Koch, órgão federal que cuida do controle e prevenção de doenças. Um país com mais de 100 prêmios Nobel (29 só em Berlim) sempre escuta seus cientistas.

A presença do governo também era intensa na mídia. Tudo era comunicado e explicado. O discurso era sempre o de falar o que seria feito e o porquê de fazer. A própria Merkel foi à TV em rede nacional falar das ações do governo, assim como o presidente Steinmeier. Mensagens e entrevistas com o prefeito Michael Müller eram quase que diárias. Além das orientações à população e a satisfação sobre o que estava sendo feito, palavras de união, compaixão e solidariedade também faziam parte do discurso.

A garantia de atendimento médico a todos os cidadãos foi também uma das coisas sempre reforçadas pela chanceler em seus discursos diários na TV. O lema “leave no one behind” acompanhava todas as campanhas e ações médicas e sanitárias. Para cumprir esse compromisso, os hospitais se equiparam devidamente com material da melhor qualidade e em quantidade e ações intensas para angariar mão de obra na área médica – todos os tipos de profissionais de saúde – e voluntários para serviços de apoio foram levantadas em todo o país. Particularmente Berlim construiu em poucas semanas um hospital de campanha para abrigar até 1000 infectados.  Foi tudo surpreendente. A população se sentiu o tempo todo amparada.

Muito se discutiu, e ainda se discute, sobre o que fazer com a economia, que sofreu com a queda das atividades. Negócios quebraram, outros vão demorar muito para se recuperar, gente perdeu o emprego. Berlim é uma cidade turística e o prejuízo de hotéis, restaurante, bares é imenso. Há muitos planos de ajuda sendo discutidos e muita discussão e crítica ao governo também (sim, aqui também tem políticos…). De concreto, pelo menos, o governo deu 5 mil Euros para o que chamamos no Brasil de microempresas. Milhares delas. Tudo online: a empresa solicitava a ajuda em uma plataforma da web e, se aprovada, em 3 dias o dinheiro estava na conta.  Tudo bem, a Alemanha é rica. Mas sabe o que fazer com o seu dinheiro.

Kudamm - a rua do comércio chic vazia (Foto  Newton Gmurczyk)

Kudamm – a rua do comércio chic vazia (Foto
Newton Gmurczyk)

O povo cooperando – a força

A impressão é de que o alemão convive muito bem com regras. Ainda mais: não vive muito bem sem elas. Uma vez que haja uma regra clara e organização para cumpri-la, o alemão aceita e vai em frente. No geral, todos respeitaram as restrições e as violações, que não foram tão poucas assim e foram reprimidas pela polícia.

No geral, parece que há um tipo de solidariedade diferente da que conhecemos no Brasil. A solidariedade aqui não é individual, do tipo “vou ajudar você”, mas parece ser um tipo de solidariedade social: todos vão cumprir as regras e fiscalizar para que a sociedade toda as cumpra, porque assim foi determinado. Há um certo senso de confiança coletiva. É uma solidariedade que olha o todo, preserva o coletivo e não se foca na ação individualista. Por isso, é comum você levar uma tremenda bronca se entrar no supermercado sem máscara. Bronca de um outro cliente, não necessariamente do caixa.

Ou seja, concordando ou discordando, cumpre-se. Claro que isso gera tensões. Uma das maiores críticas à restrição de contato social foi em relação à liberdade de expressão. Berlim tem mais de 3.000 manifestações por ano, de vários tipos, desde a Greta falando da mudança climática para 5 mil adolescentes até um solitário falando da guerra no Yemen em cima de um caixote. E restringir isso foi inadmissível, na opinião de quem achava que a COVID-19 era fake news. Sim, aqui também tem partidários de teorias da conspiração que atacam Bill Gates, acham que o vírus é parte de um golpe comunista da China e saem para a rua para pedir ao governo (que é, claro, “parte de um complô global contra a democracia…”) que “libere geral”. Talvez sejam um bando de malucos, mas junto com eles vêm a extrema direita, neonazistas, movimentos antiislamita, antissemita e xenófobos. Eles não são poucos e estão bem presentes.

Interessante esse desejo de preservar a liberdade de expressão, em uma cidade que em menos de um século foi berço do mais agressivo regime fascista, que a destruiu quase que completamente e logo depois se viu dividida sob a opressão de um regime socialista.

Sinalizacao de rua (Foto  Newton Gmurczyk)

Sinalizacao de rua (Foto
Newton Gmurczyk)

Relaxamos

Agora, a coisa está mais relaxada. Tudo está voltando ao normal. O comércio reabriu, mas shows, teatros, cinemas e grandes eventos continuam proibidos. Duro para o berlinense, principalmente nessa primavera já com clima de verão, quando todo mundo fica louco para ir para a rua, tomar um sol bonito, mas que vai durar pouco, porque daqui a pouco já virá o frio alemão novamente.

Ainda há restrições de aglomerações, poucos clientes podem entrar nas lojas, máscaras são obrigatórias no comércio e transportes.

Segundo o Instituto Robert Koch, no dia 2 de maio foram registrados 35 novos casos de Corona vírus em Berlim. 130 pessoas estavam isoladas e tratadas em hospitais, 42 em unidades de terapia intensiva. 198 pessoas haviam morrido na cidade. Desde o começo da pandemia foram 6873 casos confirmados do novo vírus corona em Berlim.

O governo implantou um sistema de “3 semáforos” para indicar a necessidade de voltar com as medidas de restrição se o número de casos aumentar. Se dois semáforos ficarem vermelhos, medidas severas podem ser retomadas.

O primeiro semáforo é o número de infecções por semana. O segundo é a taxa de ocupação das unidades de terapia intensiva. O terceiro é o valor R, que indica quantas pessoas em média podem ser infectadas por uma pessoa com o vírus. O limite crítico é 1. Esse semáforo já está vermelho, com índice de 1,91, depois de um fim de semana de muito sol, com todo mundo nas ruas e parques. O povo sabe, mas parece que foi para a rua e a sensação é de que a pandemia já era.  Tudo bem, eles são craques em cumprirem as regras, se elas voltarem.

Outro lado bacana a salientar é que, como Berlim teve essa competência de se estruturar e, portanto, a taxa de mortalidade e de uso de unidades intensivas era bem inferior a capacidade instalada, a cidade passou a receber pacientes vindos de países vizinhos – França e Itália – dando assim suporte e manifestando solidariedade também com estrangeiros. No pico da crise, podíamos ouvir o barulho dos helicópteros chegando com enfermos.

Experiência incrível estar aqui neste momento. Berlim é uma cidade bacana.

Um dos parques de Berlim, após o relaxamento 2020 - perigo (Foto  Newton Gmurczyk)

Um dos parques de Berlim, após o relaxamento 2020 – perigo (Foto
Newton Gmurczyk)

 

Lucila Vieira é economista, mas dedicou quase toda sua vida às artes. Galerista e curadora, comandou por 25 anos a Quadrante Galeria em Campinas. É designer gráfica, com especialização em belas artes no London Institute of Arts e em curadoria pelo NODE Institute. Atualmente é diretora da Galeria Canoa Berlin.

Newton Gmurczyk é antropólogo e profissional de elaboração e gerência de projetos culturais.  Foi produtor musical em Campinas por 25 anos e fez parte do grupo musical Bons Tempos. Atualmente gerencia projetos musicais no Brasil e em Berlim. Trabalha também com memória corporativa e acervos históricos de empresas.

Há 4 anos Lucila e Newton deixaram o Brasil para se engajarem em uma experiência de voluntariado ligada ao budismo. Residem há dois anos em Berlim.

Sobre ASN

Organização sediada em Campinas (SP) de notícias, interpretação e reflexão sobre temas contemporâneos, com foco na defesa dos direitos de cidadania e valorização da qualidade de vida.