Por Rafa Carvalho
Nesta sessão de sua coluna, Rafa Carvalho cria um singelo inventário dos projetos artísticos que o perpassam, sempre pelo seu viés de considerar o artista como um simples meio. Ao longo de sua carreira, o poeta vai criando inúmeros projetos que, ao mesmo tempo, vão criando sua própria vida. Assim, indescritivelmente, vida e arte inteiras se misturam. Tudo passa a ser sua obra; trabalho: um emprego da energia ao existir. E deste mesmo modo: tudo passa a ser processo. Sempre em curso. Assim, o que temos aqui é nosso colunista mais uma vez querendo juntar o segregado, fluir o que se entrava; ousando falar do indizível. Sejam bem-vindos e aproveitem, pois a lista é longa.
Eu realmente tenho muitos projetos – não falaria 400 mil assim à toa.
Mas dentre todos este é, sem dúvidas, o mais distinto. Não é por ser tão íntimo; tão biográfico e vital… Afinal, muitos de meus projetos o são. Vivo dizendo que rasguei o véu que separa a vida da obra. Tudo é obra. E tudo é vida. Tenho tentado viver com isso. Do mesmo modo em que não acredito em espiritualidade se o divino estiver separado do mundano; o profano do sagrado. Mesmo motivo que me faz desacreditar em nacionalidades, por exemplo. Nossa única nação aqui na Terra – assim, para efeitos de atribuição de importância – é a própria Terra. Todo o resto é a delícia da nossa cultura, humana, com todas as diversidades suas – e ainda as do planeta.
Acontece que quando participei da geração de um filho… quando fizemos de tudo pra mantê-lo vivo, mesmo ouvindo de uma enfermeira que ele não viveria… quando apontaram uma arma na minha cara e tudo que eu pensava era ele… quando o peguei escorregadio com minhas mãos, no instante exato em que foi dado à luz por sua mãe, agachada, às 7h59 da manhã daquele dia fatídico: tudo mudou.
Ser pai é maravilhoso e arriscado demais. E essas características se transmitem inteiras para o andar com Fé. De uma forma que ele se distingua… no mais perigoso e utópico – cheio de esperanças – dos meus projetos.
Nós, homens, ainda não processamos muito bem nosso machismo e seus efeitos terríveis para a humanidade – incluindo a nós mesmos. Levou tempo a que eu me desse conta de que nunca contemplei o pensamento binário, nem que fosse ignorado pelo mesmo em minha essência. Demorei até vislumbrar minha pansexualidade com todos os seus pormenores de características muito específicas. No entanto, não é isso o que conta aqui, mas sim: o reconhecimento social que nos é dado no momento em que nascemos, como homens; sob os signos do qual somos criados; e as expectativas e imposições que isso nos gera, desde o início.
Quais são nossas referências de homem bom? De bom pai? A própria imagem e idéia de Deus, como força paterna e masculina, a meu ver, é corrompida em si desses nossos valores distorcidos do que represente: ser homem. Logo, por mais que eu ame muito meu pai, avôs e tios; meus amigos, irmãos, professores e mestres… por mais que os compreenda e aceite… que referências tenho – salvando uma ou outra de um generalismo ignorante e da total desesperança – senão essas todas equivocadas?
Eu cometi muitos enganos por machismo até hoje. Por outro lado, muitas falhas minhas que aparentemente estariam relacionadas a ele, podem ter suas causas enraizadas em outros fatores. Coisas de temperamento, índole, personalidade; das visões de mundo, situação de alma e desencaixes com os padrões vigentes… independente do sexo com que tenha nascido e ao qual seja vinculado. É evidente, contudo, que nada disso está desvinculado do que sou no mundo. Também não nego que: ser reconhecido como homem socialmente me “isentaria” de certas cargas e cobranças, “legitimando” muitas dessas atitudes.
Porém, por outro lado ainda, cada indivíduo é um universo inteiro. E as relações estão sempre submetidas a esta grandeza. Todas essas tensões históricas, políticas e socioculturais contam muito sim. Mas as tramas não se acabam por aí… há ainda os mistérios da mente, de ânima; do espírito.
E enfim: eu invento muitas verdades, realidades; mas não tolero fingi-las.
Assim, a construção de um projeto como este, de partilhar uma história de família, entrando numa relação conjugal, no mais íntimo do dia a dia, envolvendo a dois indivíduos complexos, que decidem conviver de uma vida, chegando até um filho – outra complexidade maior – nascido homem neste mundo, sendo um pai – um homem – sem referências e querendo ainda assim poder sinalizar qualquer alternativa, melhor se possível, de como sermos neste mundo: não poderia ser algo apenas tranquilo.
Bom, isso introduz o andar com Fé numa perspectiva muito pessoal de minha trajetória até ele. Mas o mais importante aqui é: o que ele é, o projeto? E como acomoda tantos trajetos diversos, pessoais, nessa caminhada única?
Pois então vamos lá… Precisamos ter muita fé para que Fé nascesse. E ele nasceu, graças à Vida. Mas aí nos demos conta disso: ele tinha nascido… e agora? Sa e eu somos duas pessoas de origem bastante simples… ela rural e eu urbana. Demos muito duro, cada qual à sua maneira, para fazer a vida. Trabalhamos em diversas funções. Sa foi atendente em videolocadora, eu dei aulas de defesa pessoal pra polícia militar; ela foi corretora de seguros, eu raspei e pintei cascos de pequenas embarcações; ela vendia carros numa concessionária, eu demoli casas e fui servente à construção de outras. Coincidentemente, ambos nos tornamos educadores, artistas e produtores culturais no fim das contas. E assim, juntos com essa classe quase toda, somos subvalorizados no Brasil.
Vínhamos vivendo assim, com várias lutas em curso… buscando os reconhecimentos, interlocuções; aquela sensação de existir. Tentando grana, pagar as contas; financiamentos. Querendo um parto digno, humano ao nosso filho. E vendo em volta o mundo pegar fogo. Grupos de família rachando ao telefone; a mesma bipolaridade destruindo as redes sociais; pessoas cada vez menos pacientes, mais à flor da pele… o mundo cada vez mais doente: depressões, suicídios, genocídios, desesperos, desesperanças, mentiras, injúrias, corrupção, pessimismos, golpes… meu Deus – nós pensamos. Pra que mundo nós estávamos trazendo um filho?
Vou dar um tempo pra essa pergunta ecoar por aí… E volto logo para terminar este texto. Faço isso por intenção e necessidade: vocês verão quando este texto continuar, que uma das maiores dificuldades é manter tudo organizado no meio deste caos por onde estamos. No entanto, seguimos com Fé. E para se inteirar mais do projeto, enquanto isso, você pode se juntar a nós nos seguintes links:
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Um abraço e até já, deste Rafa que torce por andarmos juntos.
(CONTINUA)