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Dez anos depois, sem perspectivas para fim do conflito na Síria
Paulo Sergio Pinheiro: "Escravocratas persistem no Brasil do século 21" (Foto UN independent international commission of inquiry on the Syrian Arab Republic, Geneva)

Dez anos depois, sem perspectivas para fim do conflito na Síria

Por José Pedro Soares Martins

Em 2021 serão completados dez anos do conflito na Síria, que já produziu 6,6 milhões de deslocados internamente e 5,6 milhões de refugiados. São 9,3 milhões os sírios em situação de insegurança alimentar. Esses números que sintetizam o horror vivido em uma década pela população foram agravados em 2020 pela pandemia de Covid-19.

No cenário de um conflito internacionalizado, com várias potências envolvidas, não há perspectiva para um efetivo processo de paz. É o que afirma em entrevista exclusiva à Agência Social de Notícias o presidente da Comissão de Investigação das Nações Unidas sobre a República Árabe da Síria, o brasileiro Paulo Sergio Pinheiro. A Comissão que fica seriada em Genebra, na Suíça, vinculada ao Conselho de Direitos Humanos da ONU.

“Mesmo que todos afirmem que não há solução militar para o conflito, vários atores continuam a atuar como houvesse uma solução militar. Há anos vimos dizendo que todas as partes envolvidas no conflitos não levam em conta os interesses dos sírias e sírios”, protesta Pinheiro, um dos mais conhecidos defensores dos direitos humanos no Brasil, integrando atualmente a Comissão Arns, formada por várias personalidades de atuação histórica no setor.

Na ONU, Paulo Sergio Pinheiro foi Expert Independente do Secretário-Geral para o Relatório mundial sobre violência contra a criança; relator de direitos humanos para o Burundi e Myanmar. É autor dos Princípios de restituição de moradia e propriedade para refugiados e deslocados internamente da ONU [Pinheiro Principles] e integrou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA).

Pinheiro é professor titular de ciência política (aposentado) da Universidade de São Paulo (USP), pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP, que fundou com Sérgio Adorno, em 1987. Integrou a Comissão Nacional da Verdade (2012 a 2014) e foi ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos do governo Fernando Henrique Cardoso. Foi fundador, com Severo Gomes, e membro da Comissão Teotônio Vilela de Direitos Humanos (1983 a 2016).

População civil continua sofrendo violações de direitos e agressões (Imagem de Linus Schütz por Pixabay)

População civil continua sofrendo violações de direitos e agressões (Imagem de Linus Schütz por Pixabay)

Como a pandemia agravou a situação dos sírios e, vice-versa, como a guerra civil opera como fator indutor da Covid-19?

Minha resposta se baseia  em parte em dados do OCHA  (The United Nations Office for the Coordination of Humanitarian Affairs https://reliefweb.int/report/syrian-arab-republic/syria-country-office-covid-19-humanitarian-response-flash-update-no-8-10 e em nosso relatório de setembro, minhas intervenções no Conselho de Direitos Humanos (HRC, na sigla em inglês). Quando falo nós me refiro à Comissão de Investigação sobre a Síria) Em 13 de outubro de 2020, o Ministério da Saúde da Síria (MS) relatou 4.826 casos de COVID-19 em toda a Síria: 3.231 ativos, 1.364 recuperações e 231 mortes registradas. O primeiro caso positivo foi anunciado em 22 de março de 2020, com a primeira fatalidade relatada em 29 de março de 2020.

De acordo com o Ministério da Saúde da Síria, 143 profissionais de saúde tiveram resultado positivo para COVID-19. O aumento constante de profissionais de saúde afetados relatado desde julho destaca o frágil sistema de saúde da Síria, com números já insuficientes de profissionais de saúde qualificados, e o potencial de sua capacidade de saúde sobrecarregada ser ainda mais comprometida. Apenas 64% dos hospitais e 52% dos centros de saúde primários estão funcionando, enquanto 70% da força de trabalho da saúde deixou o país, de acordo com a Organização Mundial da Saúde.

Enfermeiras, médicos e voluntários médicos foram atacados, detidos e desaparecidos pelas partes no conflito. Mesmo enquanto os números oficiais atuais permanecem relativamente baixos, está claro que a situação epidemiológica na Síria evoluiu rapidamente. Desde julho, os números oficiais aumentaram acentuadamente; incluindo um pico de mais de 1.600 casos confirmados (cerca de metade do total atual) em agosto.

Uma avaliação do impacto socioeconômico interagencial do COVID-19 foi concluída. As descobertas indicam uma grande desaceleração econômica e impactos sociais significativos, amplificados pela crise financeira em curso no Líbano. Como resultado das crises múltiplas (incluindo, mas não apenas COVID-19), estima-se que 200.000-300.000 empregos foram perdidos para sempre. O setor informal e as empresas foram fortemente afetadas, com 15 por cento das pequenas e médias empresas relatando fechamento permanente. Além disso, estima-se que as remessas, das quais muitas famílias dependem fortemente, tenham reduzido em até 50%.

Desse modo,  como mostramos no relatório ao HRC  em setembro de 2020, a negação deliberada dos direitos dos sírios é imensamente agravada pelo aprofundamento da crise econômica, sanções mais severas e COVID-19 – que agora , como disse antes, está se espalhando rapidamente pela Síria, com números muito mais altos do que as contas oficiais.

Com 9,3 milhões de sírios agora em situação de insegurança alimentar, nós reiteramos a necessidade de facilitar ou dispensar as sanções setoriais para garantir o acesso a alimentos, suprimentos essenciais de saúde e apoio médico COVID-19 e para evitar a destruição de uma população já desesperada. Vimos em outros lugares como o COVID-19 pode se espalhar rapidamente em locais de detenção e para a equipe de detenção e fora dela. Nós mais uma vez  reiteramos nosso apelo à libertação imediata de todos os detidos de forma arbitrária ou ilegal, bem como de todas as crianças, idosos, deficientes e enfermos, sem demora.

A pandemia contribuiu para atrasar ainda mais eventuais negociações de paz?

Devo dizer que a Comissão sobre a Síria não é parte do processo político – nosso mandato como você sabe é o de investigar e relatar violações do direito internacional com vistas a uma responsabilização (accountability)  dos perpetradores dessa violações.

Dito isto, no momento não há negociações de paz propriamente ditas. O único elemento da negociação política coordenada pela ONU que está funcionando é a formação do Comitê Constitucional, sob a responsabilidade do Enviado do Conselho de Segurança das Nações Unidas (UN SG, em inglês) para a Síria, Gerd Pedersen. O Comitê Constitucional é composto por 50 representantes do governo, 50 da oposição e 50 membros da sociedade civil. E quase 30% dos integrantes são mulheres, uma exigência das Nações Unidas. Comitê composto portanto por 150 membros.

Seu  mandato é  claro: deve, no contexto do processo de Genebra facilitado pela ONU, preparar e redigir para aprovação popular uma reforma constitucional como uma contribuição para o acordo político na Síria e a implementação da resolução 2254. A reforma constitucional deverá, inter alia, incorporar na constituição e nas práticas constitucionais do país a letra e o espírito dos 12 princípios essenciais intra-sírios vivos que surgiram no processo de Genebra e foram afirmados em Sochi. O Comitê pode revisar a constituição de 2012, incluindo no contexto de outras experiências constitucionais da Síria e emendar a constituição atual ou redigir uma nova constituição.

Segundo o briefing de Pedersen ao UN SC em setembro, a terceira rodada de discussões, do chamado small body (o mini-comitê é uma versão reduzida do grande comitê, análogo a um comitê parlamentar, com 15 membros de cada um dos grupos do grande comitê), com 45 membros realizada em agosto, foi em sua maioria substantiva e as partes concordaram com um esboço da agenda. Os co-presidentes expressaram a sensação de que um terreno comum estava surgindo em algumas áreas. A reunião num certo momento foi suspensa porque 3 dos 45 membros foram infectados por Covid-19.

Nesse mesmo briefing, Pedersen  afirmou que apesar  desse progresso, o enviado especial destacou a “continuação da violência e do terrorismo, a presença de cinco exércitos internacionais ( PINHEIRO : A SABER SÍRIA, RUSSIA, TURQUIA, USA, COALIZÃO INTERNACIONAL)  abusos horríveis, uma sociedade profundamente dividida e um sentimento de desespero entre as pessoas dentro e fora do país.”

Geir Pedersen afirmou que “a confiança é quase inexistente” e que, por isso, o processo deve ser acompanhado de outras medidas para criar confiança entre sírios e a comunidade internacional. Pedersen disse acreditar  que haja um reconhecimento crescente entre muitos atores-chave de que realmente não há solução militar”, disse ele, “e que o único caminho a seguir é uma negociação e um acordo político, por mais difícil que seja”.

Além do Comitê Constitucional, ele disse que é muito cedo para dizer se as avaliações compartilhadas das realidades se transformarão em caminhos diplomáticos comuns para a implementação da resolução 2254 (2015).Embora ele procure cultivar esse potencial, a prioridade imediata é que os co-presidentes cheguem a um acordo sobre uma agenda, disse ele, com medidas de reforço mútuo entre os atores sírios e internacionais para forjar um processo político mais amplo.

Na minha intervenção no HRC em setembro de 2020, afirmo que “Justiça e responsabilização dos perpetradores de violações ( accountability)  nunca devem ser barganhadas em uma negociação política”. Essas questões costumam estar no cerne das necessidades mais urgentes das comunidades, que devem “comprar” o acordo político para que seja sustentável. Uma dessas questões é a dos detidos, pessoas desaparecidas e desaparecidos à força.

Apoiamos as mensagens de Geir Pedersen e concordamos que mais pode ser feito, por meio de seu escritório e de outros programas da ONU, para garantir a libertação dos prisioneiros detidos por todas as partes e para revelar o destino dos desaparecidos. O Conselho de Direitos Humanos também reconheceu isso e nos pediu para preparar um relatório sobre a detenção para sua próxima sessão. Os familiares das vítimas de desaparecimento forçado têm direito a saber a verdade sobre as circunstâncias do desaparecimento e o destino da vítima. A angústia mental que as mulheres e crianças sofrem como resultado do desaparecimento é uma violação dos direitos humanos em si mesma e pode ser considerada tortura. Nós esperamos que o comitê constitucional possa dar continuidade ao seu trabalho sem problemas.

Ressaltamos a importância do envolvimento da ONU no apoio ao trabalho do comitê constitucional. Acreditamos firmemente que um processo político reconhecido internacionalmente pode trazer uma solução de longo prazo para resolver a violência na Síria.

Conflito na Síria foi internacionalizado, dificultando processo de paz (Imagem de Michael Gaida por Pixabay)

Conflito na Síria foi internacionalizado, dificultando processo de paz (Imagem de Michael Gaida por Pixabay)

Qual a perspectiva de fim dos conflitos na Síria?

Dada a vasta internacionalização do conflito, a negociação visando ao fim do conflito e a paz é um processo muito difícil, com muitas oportunidades perdidas. Nem eu nem ninguém podemos fazer alguma previsão, levando em conta o comportamento errático das partes envolvidas. Mesmo que todos afirmem que não há solução militar para o conflito, vários atores continuam a atuar como houvesse uma solução militar. Há anos vimos dizendo que todas as partes envolvidas no conflitos não  levam em conta os interesses dos  sírias e sírios

Dito isto estamos testemunhando na Síria hoje uma redução relativa nas hostilidades em grande escala e ataques indiscriminados( quer dizer os bombardeios na maior parte do território da Síria não ocorrem mais), com o cessar-fogo de 5 de março em Idlib, no Noroeste da Síria em grande parte sendo mantido.

No entanto, os sírios não estão mais seguros e continuam a sofrer graves violações dos direitos humanos por parte de todos os atores que controlam o território. Apesar de uma redução relativa este ano nas hostilidades em grande escala, os sírios continuam a ser mortos em números inaceitáveis e a sofrer graves privações e graves violações de direitos, de acordo com as últimas revelações  da Comissão de Inquérito Síria da ONU.

O relatório de 25 páginas da Comissão de Inquérito submetido em setembro ao HRC  documenta contínuas violações e abusos cometidos por quase todos os atores do conflito que controlam o território na Síria. Também destaca um aumento em padrões de abusos direcionados, como assassinatos, violações sexuais contra mulheres e meninas de antecedentes, e pilhagem ou apropriação de certas propriedades privadas. O sofrimento civil é uma característica constante e pessoal desta crise.

Após a conclusão  em julho de uma investigação especial sobre Idlib e áreas circundantes, Noroeste da Síria, o relatório enfocou as violações que acontecem fora dos epicentros de hostilidades em grande escala durante o primeiro semestre de 2020.Quase uma década após o início do conflito, o desaparecimento forçado e a privação de liberdade continuam a ser instrumentalizado por quase todas as partes para instilar o medo e reprimir a dissidência entre a população civil ou simplesmente como extorsão para ganho financeiro.

O relatório documenta uma infinidade de casos relacionados à detenção violações por parte das forças do governo, o Exército Nacional da Síria, as Forças Democráticas da Síria (SDF),Hay’at Tahrir al-Sham e outras partes no conflito.

Enquanto isso , no Nordeste da Síria em  Afrin, Ras al Ayn e nas áreas circundantes, ataques de IEDs Improvised Explosive Devices (IEDs) e bombardeios ceifaram dezenas de vidas. O “Exército Nacional Sírio” (SNA) apoiado pela Turquia pode ter cometido os crimes de guerra de tomada de reféns, tratamento cruel e tortura e estupro. A pilhagem e o confisco de propriedades pelo SNA em áreas principalmente curdas são abundantes. Comunidades e culturas inteiras estão sob ataque.

Enquanto isso, mais ao Sul da região Nordeste da Síria em Dayr al-Zawr, Raqqa e Hasakah, o ISIL continuou seus ataques às “Forças Democráticas da Síria” (SDF) e à coalizão anti-ISIL. Dezoito meses desde que o ISIL perdeu seu bastião em Baghouz, mais de 60.000 mulheres e crianças permanecem no acampamento Al Hol e seu anexo, em condições terríveis. Com a recente disseminação do COVID-19 no campo, apenas cinco clínicas de saúde primárias permanecem abertas.

Quem afinal começou a guerra civil?

A crise que começou em 2011 com os protestos da sociedade civil contra o desrespeito de direitos humanos pelo governo sírio seguido de gravíssima repressão pelos aparelhos repressivos do Governo , com torturas, detenção arbitrária dos que protestavam entremeada com breves iniciativas de conciliação por parte do governo. Logo em seguida grupos ligados aos protestos começaram a ser armar, numa escalada de militarização do conflito provocada pela intervenção das monarquias do Golfo ( não necessariamente pelo governo mas por apoios de particulares a grupos armados), das democracias europeias ,que passaram a apoiar grupos armados específicos. Em 2015 a Federação Russa atendeu a um apelo da Síria para colaborar na luta contra a insurreição armada e o terrorismo. Logo o Irã e o Hezbollah se envolveram no conflito, a coalizão aliada liderada pelos EUA, e nessa última fase mais diretamente no Nordeste da Síria, a Turquia. Lembre-se dos cinco exércitos mencionados por Gerd Pedersen.

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