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O nascimento de Miguel
Miguel: "Assim como as mulheres trans/travestis, os homens trans também têm suas questões com o corpo" (Foto Acervo Pessoal)

O nascimento de Miguel

Por Eduardo Gregori

Jornalista busca apoio para realizar cirurgia e dar um importante passo em seu processo de transição de gênero.

Conheci Miguel há alguns anos na redação da Rede Anhanguera de Comunicação (RAC). Repórter daquele tipo mãos para toda obra, que não se furta em sair em busca de uma boa notícia ou mesmo de cobrir uma trolha, jargão que os jornalistas usam para temas que geralmente são muito chatos e trabalhosos.

Naquela época, Miguel ainda não era Miguel, mas já estava em busca do seu verdadeiro eu. Busca esta que parece ter finalmente terminado, mas que é apenas a ponta de um iceberg no caminho para que possa se olhar no espelho e ver que a imagem refletida nele juntem corpo e mente.

Do alto de seus 29 anos, 10 deles dedicados ao jornalismo, Miguel Von Zuben promove uma “vaquinha” na internet para que possa dar mais um passo na sua jornada de transição de gênero. Miguel explica nesta entrevista como foi seu processo de descoberta como um homem trans, além de analisar questões como família, trabalho e políticas públicas para a população trans.

Se quiser contribuir com a vaquinha do Miguel é só acessar: www.vakinha.com.br/vaquinha/mamoplastia-do-miguel-miguel-von-zuben-dias

Como está a arrecadação da sua vaquinha?

Está incrível. Em menos de uma semana já arrecadei 70% do valor total que preciso! Os custos da cirurgia são bastante altos pro meu padrão financeiro e a vaquinha foi uma solução viável que me passou pela cabeça. Meus amigos e alguns parentes estão bem próximos do meu processo de transição e comecei a perceber a quantidade de mensagens e encontros positivos que tive desde o início. Isso me trouxe o pensamento de que eles poderiam me ajudar a realizar esse sonho e eu estava certo.

Quebrei várias barreiras com essa vaquinha e o medo da exposição foi um bom exemplo disso. Gravei um vídeo e dei uma causada no Instagram. Reuni o maior número de pessoas em um grupo, pedi: “galera, me ajudem a provocar um tsunami!”, e rolou! Esse vídeo de divulgação da vaquinha já teve mais de 11 mil visualizações no Insta. Teve gente do Brasil inteiro que me mandou mensagens de carinho e ajudou financeiramente. Sou muito grato por isso, me sinto amado e respeitado!

Em tempo de tantos haters, teve algum receio de fazê-la?

Não. Acho que o processo de transição tem me ajudado muito a me apropriar do meu corpo e das minhas verdades e isso acabou gerando uma imensa autoconfiança. Claro que uma pessoa trans sempre vai ser alvo de preconceitos e isso é muito ruim, mas não é tanto a ponto de me impedir de fazer algo que, na balança, é imensamente mais positivo pra mim. Além disso, sinto que meus amigos são grandes parceiros, e que se alguém falar alguma coisa pra eles, eles mesmos vão me defender. Isso não me isenta de sofrer preconceito, mas são aliados que cultivei ao longo do tempo.

Teve apoio de amigos e família?

Tive muito apoio dos amigos, eles se empenham em aprender mais sobre o assunto pra me deixarem confortável no convívio do dia-a-dia. Mas vou dizer que as pessoas que têm se feito mais presentes nesse processo são minha atual companheira, Luiza, e minha mãe. Elas são com certeza as pessoas mais importantes da minha vida. Quebraram barreiras gigantescas, trabalham constantemente uma desconstrução sobre o assunto e sobre si mesmas, e estão comigo de peito aberto encarando tudo. É amor que chama, né?

O que você pretende efetivamente fazer com o dinheiro que arrecadar?

Bom, a cirurgia já está marcada, mesmo que os 20 mil reais ainda não estejam 100% materializados. Mas eu sei que vão estar. Com esse dinheiro, pago toda a equipe médica, o hospital, os remédios e outras coisas que vou precisar usar no pós-operatório (como um colete que ajuda a proteger a cicatriz e melhora a circulação) e algumas viagens que vou fazer, porque o processo todo vai acontecer em São Paulo. Nada do que eu receber vai ficar sobrando, porque mesmo se vier um pouquinho a mais, ainda consigo usar pra pagar consultas médicas, terapia e até os hormônios de uso contínuo. É um grande investimento!

Miguel e a companheira Luiza: "É amor que chama, né?" (Foto Acervo Pessoal)

Miguel e a companheira Luiza: “É amor que chama, né?” (Foto Acervo Pessoal)

Você é jornalista e não vemos muita representatividade LGBTQI+ nas redações. Você pensou nisso quando decidiu avançar na sua transição? 

Isso não tem relação com a tomada de decisão, mas de fato a nossa comunidade ainda é muito invisibilizada e deixada de lado em várias profissões e o jornalismo é um lugar ainda muito hostil pra gente. O que me deixa triste nisso tudo é que as redações não estão preparadas para receber profissionais como nós, muito menos pra falarem sobre essa pauta em suas publicações. Já vi muitas situações de desrespeito acontecerem porque o profissional não sabe lidar com o assunto, mas quer ou tem que falar dele mesmo assim.

Pessoas preconceituosas existem em todos os setores da sociedade. Você enfrentou ou acredita que vá enfrentar algum tipo de discriminação no ambiente de trabalho?

Até agora eu não tive situações de preconceito no trabalho, mas existe um receio toda vez que encontro uma equipe nova pra trabalhar. Fica aquela situação: “Será que eu falo? Será que vão perceber sozinhos? Se eu disser, será que vão me tratar diferente?” isso é desconfortável, acho que nesse ponto ainda estou me apropriando desse espaço com o novo eu.

Como teus amigos e família receberam a notícia de sua transição?

Algumas pessoas ficaram meio: “Nossa, como é tudo isso?” A transexualidade começou a ser mais vista de uns tempos pra cá, mas ainda assim, muita gente nunca conviveu com uma pessoa trans. É muito louco isso, né? Mas meus amigos e minha família foram receptivos sim! Meus pais tiveram um pouco de dificuldade no começo porque isso envolve muita coisa para além de mudar nome e gênero – é como você ver a sua cria renascer, né? Acontece um processo de luto por aquela figura que não vai mais existir, para então vir a recepção pelo filho que tá ali, nascendo de novo.

As mulheres trans têm mais visibilidade do que os homens e logo uma maior aceitação por parte da sociedade. Por que você acha que isto ainda aconteça?

Historicamente, falando principalmente em conquistas de espaços e de direitos tanto da bandeira trans, quanto da bandeira LGBTQIA+, as mulheres trans e travestis sempre estiveram na linha de frente e foram pioneiras em muitos movimentos.

Mas falando de uma sociedade mais atual, no dia-a-dia do povo, eu vejo duas situações diferentes que me chamam atenção… a sociedade tem um hábito de validar a mulher trans/travesti quando ela está em uma posição de entreter, sabe? Então a gente vê elas cantoras, artistas, conquistando espaços lindos e gerando representatividade, mas quando a gente vê uma mulher trans/travesti advogada, contadora, professora, será que elas têm esse mesmo respeito e admiração da sociedade?

Já no caso dos homens trans, acho que a gente tá começando a aparecer mais, mas parece que existe uma validação pelo fato de sermos homens, entende? Um homem trans consegue uma passabilidade razoável só de ter barba na cara, então muitos de nós não somos nem vistos como transexuais – o que em alguns casos é até bom, seguro, mas em outros apaga a nossa bandeira. No fim das contas, acho que nosso caso figura um microcosmo da lógica de uma sociedade patriarcal.

Como foi na sua cabeça o descobrimento como uma pessoa trans?

Foi uma montanha-russa! Esse é um tema que me permeia desde o fim da faculdade, quando um grupo de amigas fez um TCC sobre transexualidade. Depois disso essa pauta vinha até mim o tempo todo. Em 2018, fiz um projeto fotográfico com um amigo em que registramos mulheres trans em situação de rua em Campinas. Dali pra frente o negócio deslanchou, em redações eu era sempre a pessoa que escrevia sobre o assunto, até que no 2º semestre de 2019 eu entrei em uma depressão muito complicada porque parecia que meu mundo ia desabar. Foi a época mais difícil da minha vida e ali eu precisei tomar essa decisão. Era meio que uma coisa: “Ou vai ou vai!”. E fui!

Você se sentiu mais completo como ser humano a partir do momento que entendeu sua identidade de gênero?

Hoje eu sinto que encaixei uma parte importante que estava escondida dentro de mim e isso faz de mim um ser humano completo. Hoje eu olho pro meu passado e sinto que a pessoa que estava ali antes foi importante pra formação do meu caráter e dos meus princípios, e ela penou muito para isso. Mas hoje, não tinha como ser diferente, eu não ia conseguir sustentar aquela máscara e aquela representação a vida inteira. Me machucava muito.

Para as mulheres trans a operação de redesignação é muito importante. Neste campo a medicina está muito avançada. E como é esta questão para os homens trans, o que é mais importante? E a medicina tem avançado para ajudar nestas questões?

Assim como as mulheres trans/travestis, os homens trans também têm suas questões com o corpo, ou podem não ter questão nenhuma. Não é porque sou trans que odeio meu corpo, sabe? Muita gente acha que é assim, e na verdade não é. Tem várias partes de mim que eu amo muito e não quero mexer, mas outras me deixam bastante desconfortável e afetam o psicológico – a gente chama isso de disforia de gênero.

Sei que o procedimento que eu vou fazer, chamado de mamoplastia masculinizadora, já é realizado por alguns profissionais especialistas aqui no Brasil. São poucos, mas existem. E vou fazer essa cirurgia exatamente porque o peitoral que eu tenho hoje não condiz com o que enxergo em mim. Fico triste quando vou pra praia, piscina, cachoeira, e tenho que usar camiseta para esconder o que está ali, é complicado. Me sinto preso, como se existisse um peso enorme sobre mim.

O que eu acho que o Estado precisa melhorar é a oferta de serviços voltados pra este público. São pouquíssimos os hospitais no Brasil que oferecem este tipo de cirurgia – e como ela é bem cara pra maioria das pessoas, muitos ficam dependentes do SUS e acabam tendo que esperar anos para conseguirem fazer a cirurgia.

Você pode se beneficiar de alguma política pública para avançar na sua transição? Se sim, quais?

Uma das conquistas que tivemos nos últimos anos e é absurdamente importante é uma lei que tornou o processo de retificação de nome e gênero bem mais fácil. Até 2018, pra mudar o nome e gênero nos documentos, tinha que ir na Justiça, entrar com advogado e botar um monte de dinheiro e tempo nisso. Hoje, você consegue retificar em qualquer cartório do país. E esse reconhecimento legal e oficial dá ainda mais potência pra você se sentir bem consigo mesmo. É uma validação importante, porque é muito complicado você apresentar um documento que não condiz com quem você é. Isso infelizmente dá abertura pra uma série de chacotas, preconceitos e/ou situações desagradáveis.

https://www.anoreg.org.br/site/2018/06/29/provimento-no-73-do-cnj-regulamenta-a-alteracao-de-nome-e-sexo-no-registro-civil-2/

Como você se imagina daqui a 10 anos?

Me imagino morando em uma casa na praia cheia de bichos, com minha companheira, trabalhando com o que gosto, vivendo com menos dinheiro do que eu acho que preciso e viajando com frequência para lugares lindos e cheios de natureza. Só de pensar nisso o peito até respira mais aliviado!

Miguel quer casar, ter filhos?

Apesar de eu e Luiza não morarmos juntos, a gente se considera casados. Essa é uma coisa que sempre quis, ter alguém com essa parceria, carinho e respeito que temos um pelo outro. Eu particularmente quero ter um filho (ou uma filha), mas esse projeto é pra daqui alguns anos, hoje tenho outras coisas pra resolver antes de assumir essa grande responsabilidade.

O que você diria para pessoas que não entendem o que é ser uma pessoa trans.

Se você não entende o que é ser uma pessoa trans, tá tudo bem. Ninguém nasce sabendo! Isso só vai se tornar um problema se você quiser se manter nessa situação de não entendimento, porque a ignorância leva ao preconceito e ao desrespeito. Todo mundo é capaz de amar, de respeitar, de ver o outro como igual. Se você quer aprender, busque conviver com pessoas trans, isso vai trazer a compreensão de várias situações que passamos e que muitos invalidam, acham ‘mimimi’. Nosso corpo é a representação de uma luta, de muitas batalhas. A gente já sofreu e muitos ainda sofrem muito. Pratiquem a empatia.

Sobre ASN

Organização sediada em Campinas (SP) de notícias, interpretação e reflexão sobre temas contemporâneos, com foco na defesa dos direitos de cidadania e valorização da qualidade de vida.