Por José Pedro Soares Martins
9 de março de 2021
Marisqueiras, pescadores, estudantes e ambientalistas somam forças para salvar e recompor o manguezal em Salinas da Margarida, litoral da Bahia, nordeste brasileiro.
Nesta segunda-feira, 8 de março, quando organizações do mundo inteiro promoveram atividades relacionadas ao Dia Internacional da Mulher, Malena Mendes Marinho de Jesus acordou logo cedo tentando saber como estava a maré. Como estava alta, não pôde cumprir o seu ritual cotidiano, de acordar perto das 5 horas da manhã, tomar banho e, após um rápido café, pegar seus instrumentos de trabalho e ir para a praia. Caminha por cerca de 30 minutos e logo, com as demais companheiras, começa a cavar a areia à busca de um minúsculo molusco bivalve, o Anomalocardia brasiliana na definição científica – chumbinho, como a população conhece. Um molusco comestível, de corpo mole, envolvido por um exoesqueleto no formato de concha com duas valvas. “Hoje não deu, mas na quarta-feira (10 de março) a maré deve estar baixa e vou acordar de novo às 5 da manhã para mariscar”, conta Malena.
Este é o cotidiano de grande parte das mulheres de Salinas da Margarida, município com pouco mais de 15 mil habitantes no litoral do estado da Bahia, região Nordeste do Brasil. As “marisqueiras”, como são chamadas, são personagens fundamentais do paradisíaco cenário local, dependendo do que a natureza oferece, e de uma árdua jornada, para gerar a renda fundamental na cobertura do orçamento doméstico.
“A natureza é um porto seguro que a gente tem. Não colocamos nada e encontramos nela a nossa subsistência de todo dia”, diz Malena. “Por isso precisamos cuidar e muito bem da natureza”, ela completa. Nos últimos anos, a comunidade intensificou os esforços para salvar o maior tesouro natural local, o manguezal, alvo de muitas ameaças.
Malena e outras marisqueiras necessitam trabalhar pesado para obter o chumbinho. Tudo depende da maré, se está alta ou baixa. Quando ela abaixa, as mulheres logo estão na praia ou no manguezal. Pés firmes no chão, curvadas para o processo de catagem.
Geralmente usam peças fabricadas por elas mesmas para remexer a areia na busca do marisco. Encontrado, o chumbinho é depositado em um balde, bacia ou outro recipiente. Às vezes as marisqueiras usam o jereré, que é uma rede pequena empregada na pesca de peixes pequenos ou camarões.
Quando entendem que já coletaram o suficiente, as marisqueiras voltam para a casa porque o trabalho ainda não terminou. O transporte da bacia é na cabeça mesmo ou, eventualmente, de bicicleta. Chegando na residência, os mariscos são limpos e cozidos e, depois, catados um a um, para a retirada das conchas. O corpo do molusco é então colocado em sacos, até completar um quilo.
São muitos quilos coletados e processados para se obter um quilo pronto para consumo. Depois das várias etapas, os chumbinhos estão enfim prontos para ir para a geladeira, onde permanecem ensacados até a entrega aos compradores, ou negociantes como são chamados.
Na atualidade, os negociantes adquirem o chumbinho por R$ 15,00 (cerca de 2,21 euros) o quilo. O preço chega a R$ 20,00 ou R$ 25,00 quando se trata de encomenda individual de alguma pessoa para a marisqueira.
Os negociantes vendem o chumbinho para o comércio local ou em outras localidades. Salinas da Margarida fica a 230 quilômetros de Salvador, a capital da Bahia, um dos destinos turísticos mais procurados do Brasil.
Grande parcela da consciência e mobilização crescentes em Salinas da Margarida, sobre a importância do manguezal, é devido à atuação da VIVA, sigla de Viver, Informar e Valorizar o Ambiente, uma organização não-governamental criada em 2015 por um grupo de ativistas preocupados com os riscos para a população de botos (Sotalia guianensis) da Baía de Todos os Santos, onde Salinas da Margarida está situada.
Com o tempo, e considerando a relevância do ecossistema para a população local, a VIVA também passou a atuar em educação ambiental e na proteção e recuperação dos mangues.
Presidente da VIVA, o biólogo Luciano Raimundo Alardo Souto comenta ser um grande desafio, de ordem cultural, reverter o processo de degradação. “Existe a visão de que o mangue fede, só tem lama e mosquito. Esse tipo de perspectiva facilita a invasão do mangue e a sua derrubada”, observa.
A ong promove o replantio de mangue, nas áreas mais devastadas. “Colhemos sementes de mangue vermelho, branco e preto, em diferentes locais para termos maior diversidade de matrizes”, explica o biólogo. No último sábado, dia 6 de março, Luciano acordou cedo para plantar 116 mudas de mangue preto, devidamente protegido com máscara.
Uma participante em atividades da VIVA, como voluntária, é Valdineide dos Reis Santos, mais conhecida na comunidade como Lola. Ela faz há muitos anos, para uma empresa particular, um trabalho de monitoramento da situação socioeconômica de pescadores e marisqueiras na região. O trabalho está ligado a programa relacionado ao gasoduto da Petrobras que atravessa a região. Lola atua nas campanhas de limpeza das praias e replantio do manguezal.
“O mangue tem ficado muito poluído. As pessoas jogam plástico, lixo”, ela lamenta. Para valorizar e divulgar o trabalho das marisqueiras de Salinas, ela promoveu a realização de um documentário que tem sido sempre veiculado nos canais de televisão educativa. “As marisqueiras são muito batalhadoras, precisam maior reconhecimento”, sustenta Lola.
Uma cidadã é presença constante nas atividades da ong VIVA em defesa do manguezal de Salinas da Margarida. É a pescadora Eunice Maria Costa, há mais de 50 anos vivendo do mar.
“Todos seres vivos precisam um do outro em prol da sobrevivência de um e do outro”, diz Eunice. “Eu tinha 6 anos de idade quando ia no pescoço de meus irmãos para a praia ou o mangue. Eles me levavam assim porque de longe eu conseguia avistar o siri mole, que era muito importante para nós”, lembra ela. Hoje ela se diz satisfeita com a legislação que proíbe o trabalho infantil.
Eunice diz estar muito preocupada com o que está vendo. “É preciso fazer um estudo muito profundo sobre o mangue e todo o ambiente da nossa região, para ver porque está diminuindo o tamanho dos mariscos e porque eles estão diminuindo de população”, avisa a pescadora/marisqueira. “Vem muita poluição, resíduos sem tratamento, e a maré em Salinas não dá conta de limpar. Sumiram o peixe-pedra, peixe-monstro, o rala-coco, é muito difícil encontrar polvo e lagosta”, lamenta.
Eunice também busca salvar espécies. “Quando a maré baixa, muitos animais ficam debaixo da terra e podem morrer, por exemplo de ficarem muito no sol. Eu sempre estou tirando peixe ou siri da terra”, relata a pescadora/ambientalista.
Ela continua o hábito de tantos anos. “Pesco de tudo sem precisar de apetrecho. E fico feliz porque cada vez mais vejo pescador devolvendo peixinho miúdo ao mar. Sempre que posso oriento o pessoal”, conclui.
Outras ameaças pairam sobre as milhares de famílias, principalmente no Nordeste, que dependem do mar para sobreviver. Foi o caso da maré vermelha que atingiu a Baía de Todos os Santos em 2007, com grande mortandade de peixes em razão da alta concentração das microalgas Gymnodinium sanguineum no mar.
Na época, o Centro de Recursos Ambientais (CRA) do governo da Bahia divulgou laudo informando que a principal região afetada foi justamente a desembocadura do canal de São Roque do Paraguaçu, entre os municípios de Salinas da Margarida e Santo Amaro.
Mais recentemente, aconteceu o misterioso derramamento de óleo nas águas marinhas. Levantamento do Ibama apurou que 130 municípios em 11 estados foram especialmente atingidos e as marcas continuam mais de um ano depois do episódio, ocorrido a partir de agosto de 2019. Estima-se que mais de 500 mil pescadores tiveram suas atividades impactadas.
“São fatores que fogem do controle do pescador e da marisqueira e se não há organização de receita e despesa a situação fica difícil para a maioria. A crise da Covid-19 apenas agravou o cenário”, diz o professor de Matemática Ademilson da Cruz Barreto que, morador em Salinas da Margarida e preocupado com a situação econômica da comunidade, passou a difundir conceitos de educação financeira a seus alunos, do ensino fundamental e médio, com a perspectiva de que atuem como multiplicadores.
“Vi como os alunos tinham dificuldade em mensurar quanto eles e suas famílias ganhavam por mês, considerando tudo o que investiam nas embarcações, em alimentação. Não havia controle de despesas e às vezes gastavam mais do que ganhavam, sobrava pouco no final do mês”, relata Ademilson. “Se ocorre algum dano no motor ou na rede, os pescadores podem ficar dias sem trabalhar e, sem reservas, passam dificuldades”, completa.
Em 2020, o trabalho do professor de Matemática não foi interrompido durante a pandemia. Os contatos com os alunos foram mantidos com aulas remotas pela internet e em grupos de whatsapp. Ademilson pratica a mariscagem sempre quando não está dando aula ou pesquisando.
Outra preocupação constante para os pescadores e marisqueiras, de Salinas da Margarida e do Nordeste em geral, em termos de garantia da renda mínima para o sustento, é com o seguro-defeso, como é denominado pela legislação brasileira o subsídio governamental dado aos profissionais nos períodos de reprodução de peixes e moluscos e em que não podem exercer suas atividades.
O seguro-defeso é concedido oficialmente em abril e setembro, mas na prática o pagamento tem demorado um pouco mais. “Às vezes demora dois meses, o certo seria pagar no mês em que estamos parados”, defende Malena de Jesus.
“A realidade da pescadora é dolorosa, é árdua. Ainda há muito preconceito com pescadores e marisqueiras. Mas somos guerreiras, batalhadoras, enfrentamos o dia a dia sem desistir da autoestima e da esperança que um dia melhore”, conclui Eunice Maria Costa. Com os olhos na maré e o coração no manguezal, o trabalho continua.
PROTEÇÃO DE MANGUEZAL É MAIS EFETIVA COM ENGAJAMENTO DA COMUNIDADE, DIZ PESQUISADORA DA UNICAMP
As iniciativas de proteção dos manguezais são mais efetivas “quando ocorre o engajamento de toda a comunidade, quando todos os atores locais, incluindo poder público, setor privado e pessoas que dependem desse ecossistema, estão unidos com o mesmo objetivo”. A opinião é da engenharia agrônoma Simone Aparecida Vieira, pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (Nepam) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em São Paulo.
A pesquisadora nota que o manguezal tem uma enorme importância biológica, de impacto local e global. “O mangue é um sistema que liga a parte terrestre e marinha do planeta e por conta da variação do nível de água ocorre muita concentração de nutrientes, de matéria orgânica. Com isso, uma grande quantidade de organismos vai se beneficiar e se desenvolver em função desse sistema que atua como um berçário de muitas espécies”, ela explica.
“Quando os nutrientes aportados pelos rios chegam ao mar, aos poucos eles vão sendo depositados no fundo do mar. As águas dos mares são então pobres em nutrientes e os mangues funcionam como reservatório de nutrientes. Com a variação do nível das águas, das marés, vários organismos se desenvolvem nessa região dos mangues, que ora é mais e ora é menos salina. A vida marinha depende dos mangues”, acrescenta a pesquisadora do Nepam/Unicamp.
Com cerca de 7 mil quilômetros de litoral, o Brasil é naturalmente rico em manguezais, observa a especialista. Mas ela diz que esse ecossistema fundamental “tem sido atingido por diversas atividades e fatores, como o assoreamento dos rios e até a construção de aterros nos mangues para a construção de condomínios”.
Uma nova e crescente ameaça aos mangues deriva do aquecimento global. “Com o derretimento das calotas polares, está ocorrendo o aumento do nível dos mares e com isso provavelmente muitos mangues serão perdidos”, alerta. Por outro lado, a pesquisadora cita que os mangues ajudam no combate ao próprio aquecimento global, ao funcionarem como locais de armazenamento de carbono.
Além disso, os mangues operam no amortecimento das ondas, protegendo os litorais do aumento do nível das águas. Com o manguezal presente, as regiões costeiras estão portanto mais protegidas da erosão das praias, destaca a pesquisadora.
“Muitas populações tradicionais dependem do manguezal e toda a cadeia de vida em torno dele. Muitas atividades de pesca e coleta de mariscos, por exemplo, dependem do mangue preservado”, assinala.
Daí a importância, em sua opinião, da mobilização local. Simone Vieira frisa que a Década da Ciência Oceânica, que as Nações Unidas oficializaram para o período 2021-2030, representa importante oportunidade para a maior discussão sobre o papel essencial dos mangues, ecossistema cuja desestruturação “pode afetar o planeta como um todo”.