Por José Pedro Soares Martins
Campinas, 28 de maio de 2021
Como aconteceu em todo mundo, a pandemia de Covid-19 atingiu como um tsunami as atividades das universidades públicas brasileiras, que registraram forte impacto nos eixos de ensino, pesquisa e extensão. Cada instituição procurou se adaptar de acordo com sua realidade, mas algumas estratégias tornaram-se padrão, como a busca de agilidade na preparação dos ambientes virtuais de ensino e aprendizagem, a mudança de prioridades e a procura de recursos adicionais, extraorçamentários, para financiar as ações emergenciais direcionadas ao enfrentamento da gigantesca crise sanitária.
Para dar suporte ao ensino remoto, obrigatório em função das restrições impostas pela pandemia, a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) reformou ou adquiriu tablets, notebooks e desktops, que foram distribuídos para mais de 1.000 alunos, e intensificou os esforços de capacitação dos docentes, por meio do Espaço de Apoio ao Ensino e Aprendizagem (EA)², um órgão da Pró-Reitoria de Graduação.
Como forma de manter a prestação de serviços à comunidade, a Universidade Federal de Uberlândia (UFU) criou o Orienta Covid UDI, um canal de atendimento por telefone, por estudantes do Curso de Medicina, para tirar dúvidas da população sobre os melhores procedimentos durante a pandemia.
Atendendo a demandas da comunidade regional, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) implementou a Rede de Assessoria SOS-PME, de apoio a pequenas e médias empresas. Em resumo, houve um esforço generalizado de dar a melhor resposta possível aos múltiplos desafios derivados da pandemia.
Como nota Cármino Antônio de Souza, professor da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp e membro do Conselho Superior da Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo (Fapesp), “com o fechamento dos laboratórios, a dramática diminuição de pedidos de bolsas e a redução dos projetos científicos que não estiveram relacionados com a Covid-19, o prejuízo da pandemia para o ensino e a aprendizagem e para a pesquisa é irreparável, não se pode prever quanto tempo vai demorar para recuperar tudo isso”. Mas, de muitos modos, como o próprio Cármino de Souza observa, exercendo uma enorme criatividade e capacidade de reinvenção as Universidades públicas mais uma vez demonstraram resistência e resiliência, em um cenário nacional e internacional adverso, para manter suas missões institucionais.
Rapidez para garantir o ensino remoto emergencial
A Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) foi a primeira universidade pública brasileira a adotar o ensino remoto emergencial. A medida foi definida pela reitoria através da deliberação GR nº 24/2020, de 13 de março de 2020, dois dias após a Organização Mundial da Saúde (OMS) ter proclamado que o surto de SARS-CoV-2 se tratava de uma pandemia. A Pró-Reitoria de Graduação foi então encarregada de coordenar o processo de mudanças no formato do ensino e aprendizagem,
“Não havia experiências locais para compartilhar, procuramos então conversar com universidades estrangeiras”, lembra Eliana Amaral, pró-reitora de Graduação da Unicamp na oportunidade. Ela afirma que a Universidade Tecnológica de Monterrey, no México, foi uma das instituições com as quais a Unicamp procurou dialogar naquele momento. Após a sua preparação, foi a própria Unicamp que passou a ser procurada por instituições brasileiras para esclarecimentos sobre como poderiam se adequar à nova realidade.
A ex-pró-reitora nota que a Unicamp já trabalhava há tempos na capacitação do corpo docente para a incorporação de recursos tecnológicos e esse antecedente facilitou a transição. Entretanto, diante da rapidez de propagação da pandemia de Covid-19, que exigiu medidas imediatas de adaptação por parte das Universidades de modo geral, atingindo um contingente enorme de alunos e docentes, não faltaram desafios, ela admite.
Somente na Unicamp são aproximadamente 20 mil alunos e 2 mil professores, além de 7,5 mil servidores não-docentes. Em toda a América Latina, são 26 milhões de estudantes e 1,4 milhão de professores no ensino superior, que tiveram que se conectar de forma célere à nova conjuntura educacional.
Um estudo implementado no âmbito do Observatório de Inovação Educativa da Universidade Tecnológica de Monterrey, com apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e abrangendo mais de 800 docentes universitários da América Latina, 3 em cada 4 docentes não se viam preparados para assimilar ferramentas digitais em atividades virtuais. De acordo com o mesmo estudo, antes da pandemia apenas 19% dos programas de instituições superiores de ensino na América Latina estavam centrados em educação à distância e somente 16% empregavam modalidades híbridas nas Universidades com enfoque virtual.
Eliana Amaral assinala que, de fato, “alguns profissionais estavam prontos para a mudança imediata, mas outros ainda precisavam encontrar o seu caminho”. O cronograma de ajustes à realidade pandêmica teve que ser formulado com grande velocidade. A deliberação GR nº 24 previa, além da suspensão imediata das atividades presenciais, que as 24 unidades acadêmicas, entre institutos e faculdades, apresentassem em um mês planos de ensino emergenciais para o primeiro semestre de 2020. Ao final do mês estipulado, os planos apresentados apontavam o cancelamento pelas unidades de somente 2,6% das disciplinas dos 69 cursos de graduação.
A ex-pró-reitora Eliana Amaral nota que houve uma rápida e intensa mobilização de todo corpo docente e discente, de modo a mitigar os prejuízos decorrentes da paralisação das práticas presenciais. Para os docentes, oferecidos novos recursos, além daqueles que já existiam, para a adaptação ao ensino remoto emergencial.
Ela reconhece que havia resistência por parte de alguns docentes e discentes à suspensão das atividades presenciais, comportamento que foi se modificando com a evolução da pandemia. Eliana Amaral nota que houve muita solidariedade por parte de professores e alunos que já tinham maior conhecimento e prática com recursos eletrônicos, para auxiliar aqueles com menor intimidade com ambientes digitais. “Alunos bolsistas auxiliares, que já são da geração eletrônica, ajudaram professores com dificuldades”, relata a ex-pró-reitora de Graduação da Unicamp.
Na esfera de capacitação dos docentes, para a apropriada inserção na complexa paisagem dos ambientes virtuais se ensino e aprendizagem, foram intensificadas ações no âmbito do Espaço de Apoio ao Ensino e Aprendizagem (EA)²/Unicamp. O órgão criou um espaço especialmente para atender às demandas docentes em função da pandemia, oferecendo Dicas para Planejamento e Organização de Disciplinas e Aulas e capacitação para uso do Moodle, um dos Ambientes Virtuais de Aprendizagem (AVA) utilizados pela Unicamp. Tutoriais e vídeos foram disponibilizados para o uso de todas as ferramentas do Moodle, incluindo a aplicação de provas e avaliações, além de sua utilização pelo celular. O (EA)²/Unicamp ofereceu esses mesmos serviços aos estudantes da instituição, além de detalhar o uso adequado também do outro AVA, o Google Classroom, para docentes e discentes.
Moodle e Google Classroom são as plataformas que passaram a substituir o próprio AVA da Unicamp, o Teleduc, que estava em operação desde 1997. No primeiro semestre de 2020, de acordo com Eliana Amaral e Soely Polidoro, estavam inscritos “53 mil usuários nesses AVAs, sendo 1617 docentes no Moodle® e 1005 no Google Classroom®. Nas disciplinas/turmas de graduação, foi registrado um crescimento do uso em 31,76%, comparativamente aos valores observados no primeiro semestre de 2019″, relataram as autoras, no estudo “Os desafios da mudança para o ensino remoto emergencial na graduação da Unicamp – Brasil”.
Em termos de preparação dos alunos para o novo status institucional, e visando atender sobretudo as necessidades dos discentes de menor renda, foi deflagrado um mutirão, coordenado pelo Observatório de Direitos Humanos (ligado à Diretoria Executiva de Direitos Humanos), para ajustes e adaptação de dispositivos que estavam sem uso em função da interrupção das atividades presenciais. Eram desktops, tablets e notebooks que foram emprestados a centenas de estudantes, sob assinatura de termo de responsabilidade pelo discente.
Outra resolução tomada pela direção da Unicamp, desta vez voltada para assegurar a permanência dos estudantes, foi a transformação do benefício de auxílio transporte, concedido a alunos de renda mais baixa, no Benefício Emergencial de Atividades Não Presenciais (BENP).
Uma outra linha de adaptações adotada pela Unicamp, nota Eliana Amaral, foi no sentido de modificações na avaliação do desempenho dos estudantes. Além disso, houve a permissão para que os alunos pudessem trancar disciplinas até o final do semestre, sem prejuízos posteriores em sua carreira acadêmica.
Havia a expectativa na Unicamp de que as atividades presenciais voltassem no segundo semestre de 2020. Como o retorno não foi possível, a Reitoria postergou a retomada das atividades presenciais para uma data indefinida, dependendo da evolução da pandemia.
Professora na Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp e agora coordenadora do Núcleo de Avaliação e Pesquisa em Educação Médica (Napem) da instituição, Eliana Amaral lembra que, apesar dos percalços, barreiras foram superadas e o número de formados na Unicamp em 2020 foi até superior ao do ano anterior. A cada dois meses, nota a ex-pró-reitora de Graduação, era feita uma avaliação do ensino remoto emergencial, com os devidos ajustes feitos logo em seguida.
Ao contrário de 2020, completa Eliana Amaral, a recepção aos calouros em 2021 foi também de forma remota. “Estamos na expectativa enorme para o retorno de atividades presenciais”, diz ela.
Grande esforço foi feito, em síntese, para a adaptação das Universidades públicas brasileiras às urgências do ensino remoto determinadas pela pandemia. Mas sem dúvidas houve prejuízos, para discentes e docentes, inclusive porque não havia simetria para viabilizar acesso integral aos recursos que os ambientes virtuais pressupõem.
O estudo do Observatório de Inovação Educativa da Universidade Tecnológica de Monterrey/BID revelou que, em todos os países pesquisados, a falta de capacitação docente realmente representava uma das principais dificuldades para para a utilização de tecnologias digitais. Na Argentina e no Perú, 40% e 30% dos docentes, respectivamente, apontaram a falta de acesso à internet como o principal obstáculo para a ampla e democrática utilização dos ambientes virtuais de aprendizagem no cenário da pandemia.
A percepção de dificuldades para a adequada implementação do ensino remoto emergencial foi mundial, de acordo com os resultados do primeiro Inquérito Global da Associação Internacional de Universidades sobre o Impacto do COVID-19 no Ensino Superior, efetuado com a participação de 424 universidades e outras instituições de ensino superior de 111 países e territórios.
O estudo mostrou que 91% das instituições relataram ter infraestrutura apropriada para garantir o contato com funcionários, docentes e alunos, mas reconhecendo ser um desafio a garantia de fluxos de comunicação claros e eficazes. O Inquérito revelou ainda que dois terços haviam substituído o ensino presencial pelo ensino remoto emergencial, mas igualmente com desafios a superar em termos de infraestrutura técnica, competências e pedagogias para uso dos ambientes virtuais de ensino e aprendizagem.
Professor no Departamento de Saúde Coletiva da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Stefan Vilges de Oliveira entende que professores e alunos procuraram se adequar de melhor forma possível, “aprendendo com os erros e com os recursos disponíveis”, à realidade do ensino remoto.
Ele chama a atenção para um dos impactos dessa nova modalidade de ensino e aprendizagem, o da extensa carga horária imposta a docentes e alunos, que passaram a ficar muito tempo diante do computador, inclusive com efeitos em termos de saúde mental. “É muito diferente de quando as atividades são realizadas de forma prática, em laboratórios e outros espaços das universidades, com a convivência entre alunos e professores”, comenta o professor Stefan Vilges de Oliveira, que adverte para a carga imposta sobretudo às docentes do sexo feminino, com a nova realidade do ensino à distância.
Licenciado em Matemática e aluno de mestrado em Gestão e Tecnologias Aplicadas à Educação na Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Ademilson da Cruz Barreto observa que as atividades da instituição foram paralisadas no primeiro semestre de 2020, sendo retomadas as aulas de modo remoto a partir do segundo semestre. E ele admite ter sido um desafio a adaptação aos ambientes virtuais.
“Tem sido uma experiência desafiadora, porque não tínhamos esta vivência de ensino remoto e com as demandas que temos fica bem sobrecarregado”, admite Ademilson, que é professor do Ensino Fundamental em Salinas da Margarida, município localizado na Baía de Todos os Santos. “Mas os professores têm compreendido o cenário que estamos vivendo, o que torna o mestrado em ambiente virtual mais agradável”, conta.
Segundo Ademilson, as atividades do grupo de pesquisa de que faz parte foram mantidas de modo virtual. Ele destaca o esforço da UNEB em apoiar os alunos em situação de vulnerabilidade social na garantia do ensino remoto, através da concessão de Auxílio Suporte Emergencial à Inclusão Digital para acesso à Internet e eventual compra de equipamentos.
De acordo com o Painel Coronavírus de Monitoramento da Rede Federal de Educação, o Ministério da Educação realizou a entrega de 151.768 chips para viabilizar a inclusão digital no contexto do ensino remoto emergencial nas instituições federais. O Painel do MEC também informou que houve em 2020 um total de 7.820 formaturas antecipadas, sendo 5.549 de alunos de Medicina, 1.319 de Enfermagem, 552 de Fisioterapia e 400 de Farmácia, como parte dos esforços de enfrentamento da pandemia. Ainda segundo o Painel, foram efetuadas 1.357.287 matrículas em instituições federais em 2020, sendo 304.139 de ingressantes, e com 111.417 cancelamentos e 105.631 trancamentos de matrículas.
Prejuízos e adaptações na pesquisa
A pandemia de Covid-19 ocorre no Brasil, desde março de 2020, em uma conjuntura que já vinha sendo marcada por grandes cortes em atividades de pesquisa científica por parte do governo federal, desde 2016, ano de enorme crise política que resultou no impeachment da presidente Dilma Rousseff, a 31 de agosto. Depois de subir progressivamente, de R$ 6,6 bilhões em 2002 para R$ 15,1 bilhões em 2018, o orçamento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação foi sendo reduzido paulatinamente, de acordo com dados do Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (Siafi). Em 2020, o Ministério teve R$ 3,6 bilhões à disposição.
Para 2021, segundo a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), os cortes foram da ordem de 21%. O CNPq, principal agência de fomento à pesquisa em esfera federal, conta neste ano com um orçamento de somente R$ 23,7 milhões. Com isso, das 3080 bolsas de doutorado e pós-doutorado solicitadas ao CNPq e já aprovadas, somente 13% devem ser efetivamente cumpridas.
Dessa maneira, sobretudo as Universidades federais sofreram de modo superlativo em termos de limitação de recursos para atividades de pesquisa desde o início da pandemia. As limitações de mobilidade, levando por exemplo à falta de acesso a laboratórios, também foram muito prejudiciais para a pesquisa de modo geral.
“Com as restrições, por exemplo de acesso a laboratórios, os docentes que trabalham com pesquisa tiveram que se reinventar”, afirma o professor Stefan Vilges de Oliveira, da UFU. “Passaram por exemplo a trabalhar com dados já coletados anteriormente, ou com dados secundários que são produzidos pelos sistemas de informação. Isso para que não fossem paralisadas pesquisas em curso. Enfim, passou a haver uma forma diferenciada de pensar as abordagens de pesquisa”, assinala.
Entre outros trabalhos com sua assinatura, o professor Vilges é co-autor do estudo “Análise das internações e da mortalidade por doenças febris, infecciosas e parasitárias durante a pandemia da COVID-19 no Brasil“, em parceria com Nikolas Lisboa Coda Dias, aluno na UFU, e Álvaro A. Faccini-Martínez, médico e pesquisador, do Instituto de Investigaciones Biológicas del Trópico, Universidade de Córdoba, de Córdoba, Colômbia.
No estado de São Paulo, as bolsas que haviam sido concedidas pela Fapesp foram integralmente mantidas. Novos projetos, entretanto, passaram a ser apoiados sobretudo em termos de pesquisas relacionadas ao enfrentamento da pandemia. O direcionamento de grande parte dos recursos existentes em pesquisa para projetos relacionados à Covid-19 foi um padrão observado em esfera internacional.
A agência paulista de apoio à pesquisa abriu vários editais nesse sentido, resultando no apoio a múltiplos projetos de diferentes universidades e instituições de pesquisa. Na Universidade de São Paulo, entre outros, foi apoiado o projeto “Impacto na saúde mental da pandemia do novo Coronavírus (COVID-19) nos participantes do Estudo Longitudinal de Saúde do Adulto (ELSA-Brasil) do estado de São Paulo”.
Coordenado pelo professor André Brunoni, da Faculdade de Medicina da USP, e com a participação de outros pesquisadores, o estudo abrangeu 2.117 funcionários e aposentados da Universidade de São Paulo com idades entre 50 e 80 anos e integrantes do ELSA, que tem dimensão nacional. A pesquisa mostrou que, na faixa etária contemplada, houve prevalência de transtornos mentais ao longo da pandemia. Os pesquisadores lembraram, entretanto, que a cidade de São Paulo já apresenta um dos mais altos índices de transtornos psiquiátricos no planeta.
Uma das pesquisas de destaque apoiadas pela Fapesp foi aquela que resultou no desenvolvimento de uma vacina contra a Covid-19 pelo Instituto Butantan. Tendo em vista a preparação para novas possíveis pandemias, a Fapesp deu suporte por exemplo à pesquisa “Eco-epidemiologia e caracterização molecular de coronavírus em morcegos e roedores de diferentes gradientes de distúrbio ecológico: análise do potencial genético e ecológico para o surgimento de novos coronavírus no Brasil”, que tem como pesquisador responsável Edison Luiz Durigon, do Instituto de Ciências Biomédicas da USP.
Pesquisas relacionadas à Covid-19 ocorreram em universidades públicas de todo o país, com destaque para a Região Sudeste. Um estudo realizado no âmbito do Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências (DPCT/IG) da Unicamp, a partir da análise de 6.989 currículos integrados à Plataforma Lattes, mostrou que somente até o dia 21 de junho de 2020 um total de 1.649 pesquisadores haviam indicado a publicação em algum periódico de ao menos um artigo científico sobre a Covid-19.
O estudo conduzido por Lucas Rodrigo da Silva, pesquisador associado do DPCT/IG/Unicamp, e Roney Fraga Souza, professor de Economia na mesma Universidade, revelou a existência da diversidade de interesses em pesquisas sobre a Covid-19 no Brasil. Entre 2.059 artigos identificados, a maior parcela, de 870, era de profissionais de Ciências da Saúde, mas também foram publicados 324 artigos no campo das Ciências Humanas, 287 em Ciências Biológicas e 246 em Ciências Sociais Aplicadas, entre outras áreas de conhecimento. Pesquisadores da USP, Unicamp, Unifesp e Fiocruz são aqueles que mais publicam artigos sobre a Covid-19, em meios nacionais e internacionais, com acesso aberto ou fechado.
Adequações na extensão universitária
Como aconteceu nos eixos do ensino e pesquisa, adequações à realidade pandêmica foram igualmente imperativas na esfera da extensão universitária. Cada instituição pública brasileira procurou responder a demandas da comunidade onde está inserida, mas muitos serviços que eram feitos anteriormente tiveram que ser paralisados pelas dificuldades exigidas pelo distanciamento social.
Em função do distanciamento exigido pelos protocolos de enfrentamento da Covid-19, muitos projetos tiveram que se adequar aos ambientes virtuais. Foi o caso do Grupo de Educação Financeira da Amazônia (GEFAM), projeto de extensão da Universidade Federal do Pará (UFPA). Criado em 2014, como um projeto de extensão do curso de Economia da UFPA, pelo professor Alexandre Vinicius Campos Damasceno e outros dois docentes, o GEFAM realiza atividades com comunidades ribeirinhas, quilombolas e de indígenas no território paraense. São os casos da comunidade quilombola Trindade e das Aldeias do Caruci (etnia Arapium), Lago da Praia (etnia Jaraqui) e Garimpo (etnia Tapajó), todas localizadas no Território Indígena Cobra Grande, na bacia do rio Tapajós.
“Tivemos que reduzir e restringir as pesquisas e também o contato e o atendimento, que eram uma das linhas de trabalho do GEFAM”, relata o professor Alexandre Damasceno. Ele informa que as ações do GEFAM passaram a ser realizadas de forma remota, com atendimento pela internet. “São marcados determinados horários para o atendimento através de programações como palestras, cursos, minicursos e outros eventos”, diz o docente da UFPA.
O coordenador do GEFAM admite que, com essa adaptação ao formato remoto, ocorre a desvantagem pela perda do contato físico, em uma relação que permite o melhor esclarecimento de dúvidas e compreensão sobre o que está sendo abordado. Por outro lado, o professor Alexandre Damasceno nota que o ensino remoto e os cursos à distância “permitiram a participação de maior quantidade de pessoas no nossos eventos, como palestras e cursos, além do aumento dos contatos com professores e pesquisadores de todo o Brasil”, com os quais a relação anteriormente era apenas presencial.
Um projeto de extensão que nasceu em função das demandas sociais geradas pela pandemia foi a Rede de Assessoria SOS-PME, criada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) para apoiar as pequenas e médias empresas do estado a enfrentar a crise sanitária. A ação da UFRGS foi motivada por estudos como o do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), indicando que as receitas de 88% das empresas do país nesse segmento foram afetadas pela pandemia.
O projeto SOS-PME “foi organizado em equipes de serviço, cada uma liderada por um coordenador, geralmente um membro da universidade (um professor ou um dos funcionários administrativos) ou um ex-aluno com reconhecida atuação em pesquisa, ou um empresário experiente, e pelo menos mais três voluntários. Os membros da equipe foram escolhidos pelo coordenador, de forma a garantir uma cobertura multidisciplinar e complementar das competências necessárias à empresa escolhida para ser atendida. A maioria dos integrantes da equipe era formada por alunos de pós-graduação, que consideraram o projeto como um valioso aprendizado, e como uma relevante contribuição social e econômica para a sociedade”, assinalam Daniela Francisco Brauner e demais autores do estudo “Universidade engajada: resgatando PMES na crise da Covid-19″, publicado na Revista de Administração de Empresas da FGV-EAESP.
Realizado a partir de formulários e relatórios preenchidos por empresários e voluntários do projeto, o estudo mostrou que a Rede SOS-PME, iniciada oficialmente a 6 de abril de 2020, com 20 empresas, acabou envolvendo várias unidades e empresas juniores da UFRGS, mas também organizações de outras instituições, como o parque tecnológico Tecnopuc da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Em outubro de 2020 eram 155 empresas atendidas, com o envolvimento de 340 voluntários nas diferentes forças-tarefa.
“A assistência à empresa oferece principalmente orientações e alternativas customizadas, considerando o contexto, a situação da empresa e o envolvimento do empresário na cocriação de caminhos alternativos para seus problemas específicos. Ao final da assistência, um relatório com recomendações é entregue ao empresário, juntamente com um link para o formulário de avaliação de satisfação. As empresas com requisitos especiais podem receber mais assessoria dos parceiros do projeto”, descrevem os autores do estudo sobre a Rede SOS-PME, exemplo de ação de extensão que emergiu na conjuntura criada pela pandemia.
Os serviços de extensão das Universidades públicas brasileiras foram e têm sido fundamentais, especialmente, nas ações diretas de cuidado da saúde da população no contexto da pandemia. Sob coordenação da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), ligada ao Ministério da Educação, uma rede de hospitais universitários federais, por exemplo, foi determinante na fase de testes de vacinas contra o novo coronavírus.
O Hospital Universitário de Brasília (HUB-UnB/Ebserh); o Complexo Hospital das Clínicas (CHC-UFPR/Ebserh), em Curitiba; o hospital de Pelotas (HE-UFPel/Ebserh); e o hospital de Cuiabá (HUJM-UFMT/Ebserh) participaram dos testes da Coronavac, desenvolvida em parceria entre a chinesa Sinovac e o Instituto Butantan. O Hospital de Salvador (Hupes-UFBA/Ebserh), por sua vez, participou dos testes da vacina desenvolvida pela farmacêutica Jansen-Cilag, do grupo Johnson & Johnson. E o Hospital de Santa Maria (HUSM-UFSM/Ebserh) participou dos testes da vacina da farmacêutica AstraZeneca, desenvolvida pela Universidade de Oxford. Outros hospitais participaram de testes de vacinas. O Hospital da PUC-Campinas participou dos testes da vacina da Janssen, indústria farmacêutica da Johnson & Johnson.
Outro exemplo de Universidade que está na linha de frente contra o SARS-CoV-2 desde o primeiro momento é o da Unicamp. Mesmo com o cancelamento das aulas presenciais e diminuição de muitas atividades, em função dos protocolos de combate à pandemia, pesquisas continuaram, assim como tem sido fundamental o papel do Hospital de Clínicas e outros serviços médicos da Universidade para atender as vítimas da Covid-19.
A Unicamp também se preparou para a realização de diagnósticos em massa da população, em Campinas e municípios da Região Metropolitana de Campinas (RMC) e outras regiões. Dezenas de milhares de testes RT-PCR foram realizados com os kits desenvolvidos na Universidade, tendo sido atendidos mais de 60 municípios.
A Universidade se equipou para ampliar sua capacidade de atendimento e realização de diagnóstico em massa, em razão da força-tarefa criada pelo ex-reitor Marcelo Knobel e com a participação central de órgãos como o Laboratório de Estudos de Vírus Emergentes (LEVE) da Universidade, o único de nível 3 de biossegurança na RMC. O LEVE atuou, por exemplo, na ampliação da capacidade do Laboratório de Patologia Clínica do Hospital de Clínicas, para fazer os diagnósticos em massa. O pesquisador do LEVE, José Módena, participou da rede de pesquisa que identificou a chamada variante de Manaus (P.1) do SARS-CoV-2.
A Unicamp estabeleceu igualmente parceria com a Universidade de Chiba, no Japão, a Agência Japonesa de Cooperação Internacional (JICA) e a empresa Eiken Chemical Co. Com o nome PACT-Brazil, Partnership for Accelerating Covid-19 Testing in Brazil, o acordo estipula que a Unicamp faça a validação de kits de testes, produzidos pela Eiken Co., para detecção do SARS-CoV-2 por meio de amostras de saliva.
Para fazer frente aos desafios da conjuntura adversa imposta pela pandemia, a Unicamp buscou fontes alternativas de recursos. O ex-reitor Marcelo Knobel criou um grupo de trabalho para coordenar operações de arrecadação de recursos na comunidade, além de dar transparência aos gastos. A campanha Ajude Unicamp resultou até o momento na arrecadação de R$ 19,9 milhões, sendo R$ 12,9 milhões em doações judiciais e o restante de empresas e cidadãos.
As Universidades federais também procuraram se adaptar à realidade da pandemia, oferecendo serviços de extensão em resposta aos desafios locais. A Universidade Federal do ABC promoveu a Campanha Hortas e Aldeias, visando combater a insegurança alimentar nas comunidades indígenas mais próximas da instituição. A Universidade Federal do Cariri lançou edital para concessão de Auxilio Inclusão Digital nos casos de aquisição de computador portátil, acesso a Internet e manutenção ou upgrade do computador, beneficiando alunos da instituição – até 2 de setembro de 2020, tinham sido deferidos 727 pedidos de forma integral e outros 31 alunos tiveram pedidos deferidos de modo parcial.
A Agência UFPB de Inovação Tecnológica (INOVA-UFPB), da Universidade Federal da Paraíba, abriu por sua vez um edital extraordinário para seleção de propostas para mitigação e prevenção dos efeitos da COVID-19.
Como muitas outras instituições, a Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) implementou iniciativa, em parceria com a sociedade civil local, poder público municipal e setor empresarial, relacionada diretamente ao combate à Covid-19, como no levantamento e distribuição de itens em alimentação, EPIs e outros recursos para a população em geral e profissionais da saúde em Sinop (MT), através do projeto “Não vamos de mãos dadas mas estamos todos juntos”.
A UFMT também produziu o livro infantil Coronavírus, elaborado em três idiomas e na versão em Libras (Língua Brasileira de Sinais), como parte da série Pequenos Cientistas e dentro do Programa MT Ciência. O livro pode ser baixado gratuitamente.
Incremento das redes de cooperação
Se houve perdas incomensuráveis no funcionamento das Universidades públicas, em função da Covid-19 e corte de recursos por parte do governo federal, por outro lado houve um incremento das redes de cooperação durante a pandemia. Redes de pesquisa relacionadas ao enfrentamento do novo coronavírus, especialmente, foram criadas envolvendo as Universidades brasileiras entre si e entre elas e instituições internacionais.
Todas as principais Universidade públicas brasileiras estão mantendo cooperação com a Fiocruz. No âmbito internacional, são mantidos, por exemplo, contatos entre USP e Universidades de Michigan (EUA), Politécnica de Hong Kong e Zhejiang (China), entre Unicamp e Universidade de Colúmbia (EUA), entre Unifesp e Universidade de Washington (EUA), entre Fiocruz e Universidades de Toronto (Canadá) e Washington (EUA).
Um trabalho cooperativo entre várias instituições, brasileiras e internacionais, resultou no estudo pioneiro sobre a chamada variante de Manaus (P.1) do SARS-CoV-2. Integraram a rede o LEVE-Unicamp, USP, Universidade de Oxford (Reino Unido), Universidade de Washington (St. Louis, EUA) e Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), que também está sediado em Campinas. A pesquisa recebeu o suporte de agências e instituições como Fapesp, Medical Research Council, Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), Finep, CNPq, Faepex, Capes e NIH.
O membro do Conselho Superior da Fapesp, Cármino de Souza, entende que a tendência é de fortalecimento das redes de cooperação no pós-pandemia. “A palavra de ordem em nível internacional é cooperação. Nenhum país será mais autossuficiente em nada. A cooperação é fundamental no contexto da globalização. A cooperação permitiu a produção de vacinas para Covid-19 em tempo recorde. Apenas a cooperação vai garantir a preparação adequada para o enfrentamento dos atuais e dos novos desafios que virão”, afirma o médico hematologista e professor da Unicamp.
Cármino de Souza foi secretário municipal da Saúde de Campinas durante oito anos, o último deles, o de 2020, dedicado ao combate à emergência e evolução da pandemia de Covid-19. A palavra cooperação, envolvendo as Universidades locais, foi essencial para as estratégias utilizadas no município, ele assinala. “Foi impressionante a solidariedade dos hospitais locais, como o de Clínicas da Unicamp e o da PUC-Campinas”, diz Cármino de Souza.
Que o imperativo da cooperação, uma característica marcante e essencial nos eixos de ensino, pesquisa e extensão das Universidades públicas brasileiras no panorama da pandemia de Covid-19, continue sendo celebrado e mantido no futuro ainda incerto para o planeta.