Por José Pedro Soares Martins
Era uma vez um local batizado de Freguesia de Nossa Senhora da Conceição das Campinas do Mato Grosso, assim denominado pela floresta que cobria toda a região. Desde o batismo, em 14 de julho de 1774, a área que se tornou uma metrópole perdeu quase 95% de sua vegetação nativa original de Mata Atlântica, em um dos maiores crimes ambientais ocorridos no Brasil. Um dos instrumentos criados, muito recentemente, para a proteção do que resta de vegetação remanescente no município é a Área de Proteção Ambiental (APA) de Campinas. A discussão sobre como efetivamente garantir a implantação da APA é retomada agora, com a produção do documentário “Um resto de Mata Atlântica – Mata Ribeirão Cachoeira”, de Angela Podolsky. O filme será exibido no próximo domingo, dia 25 de setembro, a partir das 17 horas, na Rabeca Cultural, no distrito de Sousas, seguido de debate sobre Matas, Águas e APAs, com a participação de nomes históricos da luta pela preservação ambiental.
O curta de 13 minutos resgata a história de um dos remanescentes de floresta original da cidade, localizado na APA de Campinas, no distrito de Sousas. Com direção geral de Angela Podolsky e produção do Studio Eletrônico, o filme foi produzido entre 2021 e 2022, e tem imagens que dão a dimensão desse grande patrimônio natural de Campinas. “A Mata Ribeirão Cachoeira é um remanescente da floresta original que cobria a Campinas do Mato Grosso. No documentário, os pesquisadores entrevistados contam a história dessa região e também evidenciam como a constante pressão humana tem ameaçado os remanescentes florestais de Campinas. A Mata Ribeirão Cachoeira é uma entre as 50 florestas, que são consideradas Área de Preservação Permanente e protegida pela lei da APA. São 300 hectares de biodiversidade que esperam nosso cuidar”, enfatiza Angela Podolsky.
Angela Podolsky é uma das fundadoras da ONG APAVIVA que há anos luta pela conservação das últimas matas de Campinas e pela restauração de corredores ecológicos para proteger a biodiversidade da Mata Atlântica e manter o cinturão verde de Campinas. Entre outros pesquisadores, participou do documentário a Dra. Dionete Santin, cuja tese de doutorado contemplou o mapeamento da cobertura vegetal de Campinas e embasou políticas de preservação e tombamento de áreas verdes do município.
Também participou a zoóloga Dra. Denise Gaspar, autora de estudos pioneiros sobre população de mamíferos da Mata Ribeirão Cachoeira; a historiadora Dra. Suzana Barreto, autora do livro “Sesmarias, Engenhos e Fazendas do Arraial de Sousas, Joaquim Egidio e Jaguary (1792-1930)”; e o engenheiro agrônomo Dr. Ary Vieira Paiva (In Memorian), especialista em recursos florestais.
O debate após a exibição do documentário contará com a participação de Maria Helena Novais Rodrigues, presidente do Conselho Municipal de Meio Ambiente de Campinas (Comdema); Vicente Andreu Guilo, especialista em águas, ex-presidente da Agência Nacional de Águas (ANA); Dra. Suzana Barreto, historiadora; Dr. Paulo de Tarso Gerace da Rocha e Silva, da Divisão de Meio Ambiente da Unicamp; Angela Podolsky, presidente da APAVIVA; Dra. Dionete Santin, engenheira agrônoma; Pedro Tourinho, médico sanitarista e Professor; e Wagner Romão, professor de Ciência Política. A mediação será de Cesar Cury. A entrada é grátis. A Rabeca Cultural fica na avenida Dona Maria Franco Salgado, 250, Sousas, Campinas, SP. A organização sugere o uso de máscara e que os interessados estejam bem agasalhados. Haverá o serviço de bar da Rabeca Cultural, que aceita cartões de débito.
A luta histórica pela APA de Campinas
A APA de Campinas foi criada pela Lei Municipal 10.805/01, de 7 de junho de 2001, assinada pelo então prefeito Antônio da Costa Santos. A ocupação de forma sustentável do território da APA, que soma 28% do território municipal, é estratégica para o futuro de Campinas e região. A APA soma grande parte da vegetação nativa remanescente no município e é nela que se encontra a principal fonte de abastecimento de água para Campinas, a estação de captação no rio Atibaia, em Sousas. O conjunto da APA também reúne importantíssimo patrimônio histórico local, sobretudo com relação às antigas fazendas de café.
Mas a luta pelo desenvolvimento sustentável do território correspondente à APA é bem mais antiga, o que demonstra a dificuldade que representa a sua ocupação de forma organizada, protegendo os ricos recursos naturais e culturais. Como uma das consequências das discussões iniciadas no I Fórum Ecológico de Sousas, em abril de 1991, e no clima global gerado pela proximidade da Eco-92, realizada em junho de 1992, em novembro de 1991 o então deputado federal José Roberto Magalhães Teixeira apresentou dois projetos de lei, criando as APAs federais de Sousas e Joaquim Egídio.
O projeto da APA de Sousas foi arquivado em 1994, mas o de Joaquim Egídio teve continuidade, até arquivamento pelo Senado em 2007 (chegou a receber parecer favorável da senadora Marina Silva). O projeto da APA de Sousas voltou a ser apresentado pelo deputado Luciano Zica, em 1995, sendo arquivado quatro anos depois.
Mas em 28 de maio de 1993 o de novo prefeito Magalhães Teixeira editava o Decreto 11.172, criando a APA Municipal de Sousas e Joaquim Egídio. Em novembro de 1993 a Secretaria Municipal de Planejamento apresentou uma “Proposta Preliminar de Macrozoneamento Ambiental das APAs de Sousas e Joaquim Egídio”, que estabelecia cinco macrozonas nos dois distritos. Muitos debates e seminários foram realizados desde então, mas efetivamente a APA, com esta configuração, acabou não sendo concretizada.
Neste cenário surgiu uma grande polêmica, relacionada ao projeto de pavimentação da estrada de terra que liga Campinas a Pedreira, passando por Sousas. Foi a gênese do Movimento pela Qualidade de Vida de Campinas, que passou a questionar o projeto, até que ele foi arquivado.
Nasce o Reviva o Rio Atibaia – O Movimento foi a semente da criação m 1996 da Jaguatibaia – Associação de Proteção Ambiental, que já em 1997 lançou o Reviva o Rio Atibaia, em parceria com a Associação de Remo de Sousas e Merck Sharp & Dohme. O Reviva retomou o debate sobre a APA. Na segunda edição, em 1998, foi realizado o fórum Resgate do Plano Gestor da APA.
A mobilização se intensificou nas edições seguintes e, a 7 de junho de 2001, durante a Semana do Meio Ambiente, o prefeito Antônio da Costa Santos sancionou a Lei 10.850, criando a APA de Campinas, englobando os distritos de Sousas e Joaquim Egídio e também a região a nordeste do município localizada entre o distrito de Sousas, o Rio Atibaia e o limite intermunicipal Campinas-Jaguariúna e Campinas-Pedreira.
É esta a configuração atual da APA. Em 25 de janeiro de 2002 a prefeita Izalene Tiene editou o Decreto 13.835, criando o Conselho Gestor da APA (Congeapa), já previsto na Lei 10.850. Somente 15 anos depois começaria a ser elaborado o Plano de Manejo da APA, com o propósito de orientar – espera-se – a ocupação ordenada, sustentável, da região. O Plano de Manejo demorou para ser viabilizado, apesar da contribuição recorrente de profissionais de instituições como Unicamp, PUC-Campinas, Instituto Agronômico e Embrapa Monitoramento por Satélite.
São quase três décadas, portanto, do movimento de cidadania, de ambientalistas, cientistas e jornalistas, direcionado para a proteção e ocupação adequada da área da APA, estratégica em termos ambientais, mas também preciosa em termos culturais, sociais e civilizatórios. Lembrando que na APA está situado o primeiro observatório municipal do Brasil, inaugurado em 15 de janeiro de 1977. O Observatório Municipal de Campinas “Jean Nicolini” é um símbolo da vocação de Campinas para ver longe, toda vez que assume a ousadia.
O início da elaboração do Plano de Manejo, pela empresa contratada, deveu-se ao empenho do Congeapa, sob a presidência do advogado Rafael Moya. O Congeapa chegou a declarar moratória na análise dos projetos de novos empreendimentos para o território da APA, enquanto o Plano de Manejo não fosse elaborado.
Foram, enfim, muitos percalços, e muita pressão política e econômica. A crise hídrica de 2014-2016, que deixou o rio Atibaia praticamente seco, comprovou como a cidade e região deve olhar com mais atenção para os recursos hídricos e de biodiversidade localizados na APA.
A expectativa é de que sejam efetivamente colocadas em prática ferramentas para a proteção integral da APA, incluindo matas como a do Ribeirão Cachoeira, a exemplo do que já ocorre com a Mata de Santa Genebra, maior área de vegetação nativa remanescente de Campinas, situada no distrito de Barão Geraldo. A Mata de Santa Genebra se transformou em uma Área de Relevante Interesse Ecológico (ARIE) e é mantida pela Fundação José Pedro de Oliveira.
Campinas precisa agilizar instrumentos semelhantes para proteger também o que há de muito relevante no território da APA, pois riscos permanecem. Muitos pesquisadores e ambientalistas temem por exemplo os impactos na APA da construção de uma barragem em Pedreira, município vizinho a Sousas.
Logo haverá mais uma nova edição do Reviva o Rio Atibaia, dando novo impulso a essa discussão estratégica para o futuro de Campinas e região e que deve estar acima de interesses pessoais, políticos e econômicos.