Por José Pedro Soares Martins
Campinas, 16 de dezembro de 2022
Desde o dia 7 e até 19 de dezembro a cidade de Montreal, no Canadá, sedia a Décima Quinta Conferência das Partes (COP) da Convenção da Diversidade Biológica (CDB). Ao contrário das COPs da Convenção das Mudanças Climáticas, as COPs da Biodiversidade recebem pouca atenção da mídia e sociedade em geral e com a COP-15 não tem sido diferente. Enquanto boa parte das atenções mundiais está voltada para a COPA do Qatar e não para a COP de Montreal, o evento segue sem perspectiva de acordos sobre metas concretas e ambiciosas para reverter a grave situação global da biodiversidade. Cientistas afirmam que o planeta está atravessando a sexta extinção em massa. Especialistas do painel de apoio à CDB afirmam que 1 milhão de espécies estão sob ameaça de extinção.
Um dos propósitos da COP-15 é tentar um acordo sobre metas efetivas para deter a erosão da biodiversidade. Em 2010 em Nagoya, província de Aichi, no Japão, a COP-10 estabeleceu uma série de metas para o período 2011-2020. Elaborado como um dos documentos de trabalho para a COP-15, relatório da própria secretaria da CDB e Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) mostrou que 13 das 20 Metas de Aichi não foram cumpridas e sete tiveram cumprimento apenas parcial.
Em Montreal seria então definido um novo conjunto de metas, para o período 2021-2030, coincidindo com a data final dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, da Agenda 2030. Algumas das metas sensíveis propostas para a COP-15 estão gerando controvérsia. Caso da meta 3, de proteção de ao menos 30% das áreas de importância biológica até 2030. Comunidades e grupos indígenas sustentam que a meta tem sentido se devidamente valorizados e respeitados os direitos dos povos originários. No dia 14 de dezembro, as representações da União Europeia, Noruega, Canadá, Nova Zelândia e Austrália chegaram a bloquear a inclusão de territórios indígenas na meta 3. Ainda no âmbito da meta 3, existe o temor de que ela não contemple como seria esperado a proteção da biodiversidade marinha.
Outra polêmica tem sido em relação ao financiamento das ações em proteção da biodiversidade. Países ricos (maiores responsáveis historicamente pela destruição da biodiversidade) querem que nações como Brasil e China deem maior contribuição ao financiamento. Atualmente, Brasil, China, Índia, México e Indonésia, países megadiversos, recebem a maior parte dos recursos para biodiversidade do Global Environmental Facility (GEF). Países em desenvolvimento chegar a deixar as negociações, lamentando que os países ricos não estejam se comprometendo como poderiam.
A delegação brasileira que está em Montreal, ainda sob o governo de Jair Bolsonaro (que promoveu um grande desmonte das estruturas governamentais de proteção ao meio ambiente), tem recebido críticas. Ela não estaria muito incisiva, por exemplo, na defesa da agroecologia como um dos caminhos para a proteção global da biodiversidade. Também há polêmica em relação à possibilidade de empresas garantirem propriedade intelectual de produtos da biodiversidade encontrados orginalmente em territórios de comunidades tradicionais, sem ter que pagar por isso.
A Agência Social de Notícias entrevistou uma das referências em proteção da biodiversidade no Brasil, Claudio Maretti, sobre suas expectativas em relação à COP-15. Pós-doutorando em geografia sobre conservação colaborativa, Maretti foi presidente e diretor do Instituto Chico Mendes (ICMBio) e é vice-presidente da Comissão de Áreas Protegidas da União Internacional de Conservação da Natureza (IUCN).
ASN – Por que em sua opinião as questões da biodiversidade, apesar da gravidade da extinção das espécies, e consequentemente a CDB e suas COPs, têm chamado tão menos a atenção da mídia, governos e sociedade em geral? O que fazer para mudar esse quadro? Lembrando que a Meta 1 de Aichi, sobre o aumento da consciência sobre o valor da diversidade biológica, foi considerada como não cumprida pela secretaria da CDB.
Claudio Maretti – Nós estamos vivendo o que dizem ser uma crise de biodiversidade, uma onda de extinção de espécies que seria a sexta onda na história geológica e biológica do planeta. O mais grave é que a gente tem uma série de crises provocadas por deficiência de sistemas ecológicos, por ciclos ecológicos que resultam em serviços ecológicos com menor qualidade nos últimos tempos. Tem sido muito falada por exemplo a questão do impacto do desmatamento nos rios aéreos, que são condutos, canais de correntes aéreas com grande umidade e que transportam essa umidade da Amazônia e distribuem pelo continente sul-americano. Mas nós também podemos falar da crise da saúde nas áreas urbanas por falta de natureza, por falta de contato com a natureza, e de poluição por falta de filtragem pela natureza. Uma das crises mais drásticas é a das mortes das camadas mais pobres, soterradas em deslizamentos e sobretudo nas enchentes pois não temos uma boa política habitacional, de forma associada, claro, a uma falta de gestão urbana de riscos e também de áreas naturais verdes e azuis bem gerenciadas e conservadas. Então as consequências estão aí evidentes e elas se agravam pela crise da emergência climática.
Agora por que a gente não dá a mesma importância para a crise da biodiversidade? Em primeiro lugar porque eu acho que é muito difícil e difuso explicar essa crise. Ela está associada talvez a uma série de elementos de mais difícil compreensão, quando a gente vai para argumentação da biodiversidade. Por outro lado, na minha concepção acadêmica, eu acho que foi na Revolução Industrial e na sequência das revoluções industriais que a ciência se desenvolveu, com uma pretensão de domínio do homem, de que a tecnologia e a engenharia podiam resolver tudo. É o caso da química e suas soluções, depois entrou a tecnologia das fábricas de forma mais eficaz, a tecnologia do transporte e depois a internet e comunicações em geral. Portanto, eu acredito que mais do que nas origens culturais da antiguidade e das linhas religiosas, é nesse momento de supremacia da tecnologia com as revoluções industriais que se desenvolve o conceito de que a humanidade não depende da natureza. Ela pode resolver as coisas sem a natureza e a partir daí a natureza começa a ser vista como maléfica. O processo de urbanização intensa ocorre depois disso, desse processo da Revolução Industrial que segundo alguns vem desde o século 18, que se aprofunda muito no século 19. É nesse processo que se dá a constituição da ciência oficial como a gente conhece hoje e é também dessa época que são formalizadas as linhas científicas e as as cadeiras universitárias acadêmicas.
Então aí eu estou tratando de uma dificuldade cultural, que é essa suposição da supremacia humana e que com as suas tecnologias o homem consegue construir coisas limpas entre aspas. Esta é uma questão cultural que tem que ser revertida de forma coletiva. Não dá para a gente pensar que só com uma ou outra pessoa se reconectando com a natureza isso será revertido. É por isso que as áreas protegidas são tão importantes, é no sentido de promover uma reconexão coletiva. Mas claro que elas precisam de uma gestão, uma governança muito mais receptiva aos interesses da sociedade, às dinâmicas e às características culturais da diversidade. É preciso uma gestão e uma governança muito mais equitativas, propositivas e inclusivas nesse sentido, para promover essa transformação social que resgata a reconexão da humanidade com a natureza.
ASN – Como protagonista e estudioso há anos da área, quais principais avanços já obtidos com a Convenção da Diversidade Biológica?
Claudio Maretti – A gente sempre discute a eficácia desses processos multilaterais internacionais, sobretudo esses que demandam decisões por consenso, não só por maioria, não por uma centralidade. Então fica parecendo que o Conselho de Segurança das Nações Unidas, por exemplo, é mais eficaz porque meia dúzia pode resolver, mas na verdade é um país rico implementando, é um país poderoso direcionando. Quando o processo é coletivo, é por consenso, ele tem limitações, é muito desgastante, lento e sobretudo ele abre espaço demais para uma série de protelações, de contestações etcetera. Entretanto, é ele que traz a lógica coletiva das nações e seria bom que a gente pudesse ir além das nações, como já começa a ocorrer com os setores empresariais, com cidades, com povos originários. Eu esperaria que as comunidades tradicionais como temos no Brasil também fossem reconhecidas.
Assim, mesmo que esses processos sejam muito lentos, muito morosos, não obstante é importante a gente lembrar que a Convenção sobre Diversidade Biológica traz o conceito de equidade logo no seu início. Na verdade, antes do texto ser definido, toda discussão já falava em equidade, embora se falasse mais em equidade entre nações, entre estados nacionais como os conhecemos hoje. A Convenção se estabelece com objetivos claros e o objetivo número 1 é conservar a biodiversidade. O objetivo número 2 é promover o uso sustentável dessa biodiversidade e aí são incluídos os povos e comunidades tradicionais no sentido de se promover a justa repartição dos benefícios da biodiversidade, que é um conceito básico de equidade.
Eu acho que também é muito positivo na Convenção sobre a Diversidade Biológica o Protocolo de Nagoya, que estabeleceu as bases para negociações internacionais sobre o chamado acesso aos recursos genéticos ou acesso à biodiversidade e os conhecimentos tradicionais associados. Agora na COP-15 da Convenção da Diversidade Biológica um dos elementos importantes será a discussão da possibilidade de reconhecer ou não a digitalização dessas informações genéticas, ou seja, a transformação em informações digitais daquelas informações identificadas na diversidade genética ou na diversidade é biológica, considerando os seu três níveis, de ecossistemas, espécies e variedades específicas.
Eu coloco uma diferença fundamental entre o que ocorreu até 2010 e o que ocorreu a partir de 2010 com as metas definidas em Nagoya na COP-10. A gente conseguiu fazer avançar muito mais os sistemas internacionais do que anteriormente. O nosso querido Bráulio Dias, que foi secretário-executivo da Convenção sobre Diversidade Biológica, dizia que o mais importante para essa Convenção era implementar, implementar e implementar e eu acredito que a implementação avançou a partir da COP-10 com as Metas de Aichi até 2020. Muito se crítica que as metas não foram alcançadas, mas muita coisa foi feita e aí no campo específico, voltando para a minha especialidade das estratégias espaciais de conservação, especialmente das áreas protegidas, das unidades de conservação e outros tipos de áreas protegidas, ocorreu um avanço muito grande. Há uma insistência de leitura até dos mais esclarecidos e também de governantes, só da porcentagem de cobertura da área protegida e não da meta toda, que são sistemas de áreas protegidas e conservadas, ecologicamente representativos e geridos de forma eficaz e equitativa, bem conectados entre si e integrados nas suas sub-regiões.
A decisão mais importante que pode ocorrer nessa COP-15 e que não pode ser mais atrasado, pois deveria ocorrer em 2020, é a definição do novo plano estratégico que tem sido chamado do Marco Global da Biodiversidade. Será fundamental para a natureza e para a humanidade, com a ampliação do esforço de proteção não só em unidades de conservação, não só reconhecendo os territórios tradicionais, indígenas, quilombolas e de outras comunidades tradicionais, mas também reconhecendo a conservação feita por outros setores da sociedade, inclusive por militares, espaços turísticos, de proteção de águas, de paisagens, proteção cultural e assim por diante.
ASN – E quais são as lacunas ainda existentes relacionadas à Convenção da Diversidade Biológica?
Claudio Maretti – Eu diria que em primeiro lugar é a dificuldade da sua implementação, então deveria haver mais financiamento associado, financiamento mais volumoso, novo, e também que ele fosse executado de forma mais acessível aos países menos desenvolvidos. Porque senão acaba entrando naquela dificuldade que nós temos por exemplo com os sistemas de incentivo à cultura no Brasil, onde eles são muito interessantes, mas quem tem mais condições de acesso são setores que já têm financiamento, já têm condições, não são os setores mais populares, mais afastados e mais remotos e com maior dificuldade de se manter. Outro ponto que eu acho fundamental é que a gente trabalhe mais esse lado da distribuição dos benefícios e isso está muito concentrado na questão do acesso aos recursos genéticos. É fundamental o respeito e valorização do papel de povos indígenas e comunidades locais na conservação. Também acho que a gente podia desenvolver muito mais as parcerias com organizações da sociedade civil ,o voluntariado e sobretudo as parcerias público comunitárias.
ASN – Qual a sua expectativa em relação à COP-15? Em alguns círculos há um sentimento de ceticismo quanto a um acordo mais ambicioso.
Claudio Maretti – Eu espero que haja sucesso na decisão de um novo plano estratégico para a proteção da biodiversidade, que seja ambicioso e amplie a proteção de unidades de conservação e outros tipos de áreas protegidas e conservadas para 30% como mínimo. Também que haja equidade em todos os objetivos e metas, inclusive nessa da ampliação das áreas protegidas.
Eu entendo que o reconhecimento nominal de povos indígenas ou povos originários, como alguns preferem hoje em dia, está bem consolidado. Não existe decisão ou declaração que não inclua isso, reconhecendo os direitos dos povos indígenas ou comunidades tradicionais. No Brasil esse é um movimento muito forte, que começou com os seringueiros liderados por Chico Mendes e isso se espalhou de forma significativa. Mas existem pontos de vista diferentes, sobre por exemplo que seria considerado indígena, dependendo do país ou região. Essas divergências podem impactar nas negociações.
Também espero que haja uma decisão mais ambiciosa sobre um plano de financiamento mais robusto, que considere a justa repartição dos benefícios. Houve avanços importantes após a COP-10, com as Metas de Aichi, e que agora o processo avance ainda mais.