«Que tipo de mundo queremos deixar a quem vai suceder-nos, às crianças que estão crescendo?» A pergunta está no texto de Laudato si, a encíclica anunciada no dia 18 de junho de 2015 pelo papa Francisco e que marcou, com grande atraso, mas com muita força, a chegada do Vaticano à questão ambiental. O Conselho Mundial de Igrejas (CMI), que une as igrejas evangélicas históricas, há mais de três décadas discute a temática, em função do processo denominado Justiça, Paz e Integridade da Criação (JPIC), iniciado por ocasião da Assembleia de Vancouver, de 1983. De fato, a nova encíclica de Francisco marcou uma reviravolta no pensamento católico oficial, repercutindo inclusive nos rumos da Conferência do Clima (COP-21) em Paris.
A reviravolta é caracterizada pelo resgate das pioneiras doutrinas de São Francisco, a evidente influência do cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio na escolha de seu nome como papa, nas ideias que vem defendendo para a renovação da Igreja Católica e na própria elaboração da encíclica. Laudato si é uma referência direta à invocação de São Francisco, “Louvado sejas, meu Senhor”, que no seu Cântico das criaturas enfatizou que a terra «se pode comparar ora a uma irmã, com quem partilhamos a existência, ora a uma boa mãe, que nos acolhe nos seus braços», como destaca a encíclica papal logo no seu primeiro parágrafo. Os próprios seres humanos «somos terra (cfr Gen 2,7). O nosso corpo é constituído pelos elementos do planeta; o seu ar permite-nos respirar e a sua água vivifica-nos e restaura-nos», diz o texto, no segundo parágrafo.
Pois esta irmã terra, assinala a encíclica, “clama contra o mal que lhe provocamos por causa do uso irresponsável e do abuso dos bens que Deus nela colocou”. Daí a urgência da comunidade humana mudar sua postura em relação ao planeta, pede o papa Francisco. «A humanidade possui ainda a capacidade de colaborar na construção da nossa casa comum», convoca a encíclica, no parágrafo 13. Apesar das previsões alarmantes já feitas por cientistas, por exemplo em relação ao rumo das mudanças climáticas, Laudato si mantém o otimismo quanto ao poder de reversão do quadro ambiental planetário: «o ser humano ainda é capaz de intervir de forma positiva», destaca o parágrafo 58; «nem tudo está perdido, porque os seres humanos, capazes de tocar o fundo da degradação, podem também superar-se, voltar a escolher o bem e regenerar-se», reitera o documento, no parágrafo 205.
Seis capítulos - A encíclica está dividida em seis capítulos. No primeiro, “O que está a acontecer à nossa casa”, faz um balanço do panorama e dos principais desafios ambientais atuais, como no caso das mudanças climáticas. «As mudanças climáticas são um problema global com graves implicações ambientais, sociais, econômicas, distributivas e políticas, constituindo atualmente um dos principais desafios para a humanidade», afirma o parágrafo 25.
Sobre a questão hídrica, o texto do papa salienta que «o acesso à água potável e segura é um direito humano essencial, fundamental e universal, porque determina a sobrevivência das pessoas e, portanto, é condição para o exercício dos outros direitos humanos ». Privar os pobres do acesso à água representa «negar-lhes o direito à vida radicado na sua dignidade inalienável », como descreve o parágrafo 30.
A preservação da biodiversidade é outro desafio gigantesco, alerta a encíclica. «Anualmente, desaparecem milhares de espécies vegetais e animais que já não poderemos conhecer mais, que os nossos filhos não poderão ver, perdidas para sempre», lamenta o documento, no parágrafo 33. O papa evidencia que «são louváveis e, às vezes, admiráveis os esforços de cientistas e técnicos que procuram dar solução aos problemas criados pelo ser humano», mas observa que a ação humana, quando a serviço das finanças e do consumismo, «faz com que esta terra onde
vivemos se torne realmente menos rica e bela, cada vez mais limitada e cinzenta», nos termos do parágrafo 34.
O papa admite que existe uma “verdadeira dívida ecológica” (parágrafo 51), acentuando o papel dos países industrializados nesse sentido. O pontífice lamenta a “fraqueza das reações” e denuncia, no parágrafo 59, “um certo torpor e uma alegre irresponsabilidade”.
“O evangelho da criação” é o título do segundo capítulo, onde o papa assinala que a necessidade de proteção dos recursos naturais, da vida toda, já está apontada na Bíblia. «Essas narrações sugerem que a existência humana se baseia sobre três relações fundamentais intimamente ligadas: as relações com Deus, com o próximo e com a terra. Segundo a Bíblia, essas três relações vitais romperam-se não só exteriormente, mas também dentro de nós. Esta ruptura é o pecado», afirma o parágrafo 66.
Há uma clara condenação do antropocentrismo na encíclica, pois o papa alerta que os «cristãos, algumas vezes interpretamos de forma incorreta as Escrituras, hoje devemos decididamente rejeitar que, do fato de ser criados à imagem de Deus e do mandato de dominar a terra, se deduza um domínio absoluto sobre as outras criaturas» (parágrafo 67). A incorporação do antropocentrismo na doutrina católica é justamente uma das críticas históricas à conduta da Igreja em relação às questões ambientais.
“A raiz humana da crise ecológica” é o título do terceiro capítulo. Há um alerta nesse capítulo sobre a tecnologia, que contribui para a melhoria das condições de vida, mas possibilita «àqueles que detêm o conhecimento e sobretudo o poder econômico para o desfrutar, um domínio impressionante sobre o conjunto do gênero humano e do mundo inteiro» (parágrafo 104).
Como resposta aos grandes desafios, o papa propõe “Uma ecologia integral”, título do quarto capítulo. A ecologia integral envolve questões humanas, sociais e ambientais, diz a encíclica. “Algumas linhas de orientação e ação” marcam o quinto capítulo. Uma delas, o debate que não seja marcado por ideologia, como pede o parágrafo 188: «Há discussões sobre questões relativas ao meio ambiente, onde é difícil chegar a um consenso. […] a Igreja não pretende definir as questões científicas, nem substituir-se à política, mas [eu] convido a um debate honesto e transparente para que as necessidades particulares ou as ideologias não lesem o bem comum».
E o sexto e último capítulo trata da “Educação e espiritualidade ecológicas”, na opinião do papa fundamentais para reverter o quadro atual. «Toda mudança tem necessidade de motivações e dum caminho educativo», assinala o documento, acrescentando que devem estar envolvidos todos os ambientes educacionais, «a escola, a família, os meios de comunicação, a catequese» (parágrafo 213). O papa também defende a mudança de estilo de vida, para que haje menos consumismo e materialismo. «Uma ecologia integral é feita também de simples gestos cotidianos, pelos quais quebramos a lógica da violência, da exploração, do egoísmo», diz o parágrafo 230 da Laudato si, que apesar de tardia, marca o ingresso, com força, do Vaticano na questão ecológica planetária, a ponto de ter influência para que fosse alcançado o Acordo de Paris na COP-21.
Com efeito, durante a Conferência do Clima em vários momentos a encíclica de Francisco foi citada e reiterada como argumento para o avanço das negociações. No dia 28 de novembro, dois dias antes do início do evento, o cardeal brasileiro Claudio Hummes entregou aos organizadores da COP-21 uma petição assinada por 1,8 milhão de pessoas, sendo 800 mil católicos, com a defesa de cortes substantivos nas emissões atmosféricas que agravam o efeito-estufa. O documento é todo baseado na Laudato si.
No dia 6 de dezembro, o próprio papa se dirigiu aos representantes dos mais de 190 países reunidos em Paris. “Pelo bem da casa comum, de todos nós e das gerações futuras, todos os esforços de Paris devem ser voltados para atenuar os impactos das mudanças climáticas e, ao mesmo tempo, combater a pobreza e florescer a dignidade humana”, afirmou o papa, seguindo o espírito da encíclica, que de qualquer modo marcou um grande impulso ao debate planetário sobre a temática ambiental e da sustentabilidade. (Por José Pedro Martins)