Por José Pedro Soares Martins
Campinas, 18 de maio de 2016
Uma maior atenção do poder público, setor empresarial e sociedade em geral para as doenças negligenciadas, que representam uma ameaça permanente a cerca de 1 bilhão de pessoas no mundo todo, vem sendo reivindicada pela organização Médicos Sem Fronteiras durante a série de atividades Conexões MSF, promovida em Campinas até o próximo domingo, dia 22 de maio. Campinas é a primeira cidade brasileira a receber as Conexões MSF, um conjunto de eventos voltados para aproximar ainda mais a organização humanitária do público. Recife será a segunda cidade a sediar a iniciativa.
Um debate específico sobre “Mobilização social na luta contra as doenças negligenciadas” aconteceu nesta terça-feira, dia 17 de maio, na Casa do Lago, no campus da Unicamp, em Barão Geraldo. O debate teve a mediação da psicóloga Letícia Nolasco, que atua junto a Médicos Sem Fronteiras e acaba de voltar do Equador, recentemente atingido por forte terremoto.
Os desafios para uma maior atenção global para as doenças negligenciadas foram expostos pela médica Lucia Brum, referente em doenças infecciosas emergentes de MSF. A médica lembrou que doenças como tuberculose, malária, doença do sono, de Chagas e leishmaniose atingem mais de 14 milhões de pessoas a cada ano, sendo 90% delas em países em desenvolvimento. No total, a Organização Mundial da Saúde considera um grupo de 17 doenças como negligenciadas, incluindo calazar (ou leishmaniose visceral), tracoma e a própria dengue, que tem provocado um enorme drama para a saúde pública no Brasil.
Especialista em doença de Chagas, a médica falou especificamente sobre os dramas que continuam cercando essa doença. Relatou, por exemplo, sua recente passagem por uma região na Bolívia, que tem uma das mais altas incidências de doença de Chagas no planeta. Estudos de Médicos Sem Fronteiras apontam que a doença se transformou em endemia em 21 países, com 100 milhões de pessoas sob risco de infecção. Seriam atualmente 8 milhões de infectados. No Brasil, as estimativas são de 2 a 3 milhões de pessoas com Chagas.
Desde 1999 MSF atua em programas relacionados à Doença de Chagas na América Latina. A transmissão natural da infecção é pelo vetor Trypanossoma Cruzi. A doença também pode ser transmitida por transfusões de sangue, da mãe para o filho ou por alimentos contaminados.
A referente de MSF advertiu que existe um “Ciclo de Negligência”, que cerca a doença de Chagas e outras doenças negligenciadas. Este ciclo, explicou, é caracterizado por um círculo vicioso, que continua deixando a enfermidade no esquecimento. Existe um “silêncio epidemiológico”, responsável por não considerar a doença de Chagas e outras como grande problema de saúde pública.
Não existem, em decorrência, previsões orçamentárias dos governos para o diagnóstico e tratamento dessas doenças. Sem orçamentos governamentais, existe menor interesse da comunidade científica e da indústria farmacêutica, que consideram não haver mercado para vacinas e medicamentos – isto, apesar de milhões de afetados todos os anos e outros milhões de ameaçados. “É preciso romper urgentemente esse ciclo de negligência”, pediu a médica.
Entre os desafios para maior atenção médica com relação à doença de Chagas, a profissional de MSF citou a necessidade de sustentabilidade das ações; o empoderamento, participação e responsabilidade dos profissionais de saúde e governos; a cobertura gratuita para os mais vulneráveis; o acesso ao diagnóstico e tratamento na atenção primária de saúde; a estruturação de uma rede de atenção primária conectada a centros de referência se segundo e terceiro nível; a disponibilidade de insumos médicos; a formação continuada de profissionais; e a estruturação de centros de referência dispostos a oferecer uma atenção integral, com recursos terapêuticos de acordo com as necessidades dos pacientes.
A Dra.Lucia Brum assinala que o Brasil acumula grande conhecimento sobre a doença de Chagas. A doença tem esse nome porque o médico brasileiro Carlos Chagas foi o pioneiro em descrever a enfermidade, entre 1908 e 1909. Entretanto, até a década de 1960 a doença de Chagas era praticamente ignorada como problema de saúde pública no país.
Atualmente, a referente em doenças infecciosas emergentes de Médicos Sem Fronteiras assinala que o Brasil, apesar desse acúmulo de conhecimento, não tem um protocolo nacional de tratamento dos casos de atingidos pela doença de Chagas, e apenas os casos agudos são objeto de notificação compulsória. Como outras doenças negligenciadas, lamenta a médica, a doença de Chagas “continua na invisibilidade” no Brasil.
Afetados pela doença de Chagas – Também participaram do debate na Casa do Lago membros de organizações que representam afetados pela doença de Chagas. De modo especial, Ana Maria de Arruda Camargo, assistente social do Hospital de Clínicas da Unicamp, relatou a trajetória de constituição da Federação Internacional de Associações de Pessoas Afetadas pela Doença de Chagas (Findechagas), criada em 2009 em uma assembleia em Uberaba, Minas Gerais. A assistente social é membro do Conselho Consultivo de Findechagas.
A quarta assembleia de Findechagas aconteceu entre 13 e 16 de abril de 2016, em La Plata, Argentina, e a próxima está prevista para 2018, no México. Atualmente compõem a Federação 16 associações, inclusive três brasileiras, a Associação de Pacientes com Chagas, Insuficiência Cardíaca e Miocardiopatia de Pernambuco; Associação de Pacientes de Chagas da Grande São Paulo; e Associação de Pacientes de Chagas de Campinas e Região, que levou vários membros ao evento promovido pela Médicos Sem Fronteiras.
Ana Maria de Arruda Camargo evidenciou o caráter científico e de mobilização social da Findechagas, que já contou com o apoio de personalidades como Leo Messi e toda equipe de futebol do Barcelona. Tirar o véu de silêncio que ainda encobre a doença de Chagas e os milhões de afetados é um dos grandes objetivos da Federação, afirmou.
Morhan e a hanseníase no Brasil – Outra doença negligenciada discutida no evento na Casa do Lago, como parte das Conexões MSF, foi a hanseníase. A luta do Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan) foi apresentada pelo seu coordenador nacional, Artur Custódio.
Ele lembrou que o Morhan foi criado em 1981, no âmbito das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) da Igreja Católica. Entre 1986 e 1988, o Morhan apresentou várias propostas para a Assembleia Nacional Constituinte, encarregada de redigir a nova Constituição brasileira, após o período ditatorial de 1964 a 1984.
Em 1995, o Morhan comemorou a promulgação da Lei 9010, proibindo o uso da palavra “lepra” em documentos oficiais por qualquer órgão público, em qualquer nível de governo no Brasil. Em 2007, nova vitória, com a aprovação da Medida Provisória 373, instituindo pensão vitalícia às pessoas atingidas pela hanseníase que passaram pela internação compulsória, uma prática histórica muito comum no país até a década de 1970 nas colônias. Também em 2007, o Morhan recebe prêmio da Organização Mundial de Saúde em sua sede em Genebra, Suíça.
São enormes os desafios relacionados à hanseníase no Brasil, destacou Artur Custódio, lembrando que o país é o segundo do mundo em incidência da doença, atrás apenas da Índia. Aprimoramento dos diagnósticos, maior e melhor informação para diminuir o preconceito e ampliação da mobilização e controle social são algumas das ações essenciais em relação à hanseníase no Brasil, completou o coordenador nacional do Morhan.
Segundo o Ministério da Saúde, o número de casos novos de hanseníase caiu no Brasil de 50,5 mil em 2004 para 31 mil em 2014, queda de 38,5%. Os casos em menores de 15 anos declinaram de 4.075 em 2004 para 2.341 em 2014, queda de 43%. Os estados com maior concentração de casos são Rondônia, Pará, Tocantins, Maranhão, Mato Grosso do Sul e Mato Grosso.
Mais informações:
www.findechagas.com