Antes ícones de avanços civilizatórios, as cidades se transformaram em ambiente hostil e gerador de violência e desigualdade. Mas este status pode mudar se depender de cinco mulheres que, através de suas obras, expressam a possibilidade de redesenhar as cidades, na perspectiva da gentileza e defesa de direitos. São as artistas que foram reunidas pela Q Galeria, em Campinas, na exposição “Urbana”, que teve sua vernissage na noite da última sexta-feira, dia 10 de junho.
“Urbana” contempla obras das artistas Gisele Ulisse, Kika Marciano, Isabela Senatore, Luciana Miyuki e a norte-americana Joan Hacker. Na abertura da exposição, a Q Galeria promoveu mais uma edição do projeto “Troque Cultura”, que oferece conferências e debates sobre temas emergentes no cenário das artes, em troca de um livro em bom estado que e encaminhado a entidades sociais.
Em sintonia com a temática da exposição, a convidada da noite foi a socióloga e professora de História da Arte da Unicamp, Silvana Rubino. Ela acentuou como, apesar de muito presentes na Arte e Arquitetura no país, as mulheres muitas vezes não são lembradas como autoras de obras relevantes expostas por todos os cantos nos centros urbanos. “Urbana” pode ser visitada até o dia 25 de junho, das 9 às 18 horas, de segunda a sexta, e das 9 às 13 horas, aos sábados, na Q Galeria, rua Américo Brasiliense, 163, no Cambuí, em Campinas, com entrada grátis.
Um olhar diferenciado sobre o urbano – A curadora da exposição e da Q Galeria, Patrícia Freitas, comenta o conceito utilizado para “Urbana”. Quando se fala em arquitetura e urbanismo no Brasil, nota ela, geralmente são logo lembrados grandes nomes como os de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa. Então, “a ideia era trazer um pouco mais desse protagonismo da mulher representando a cidade”, diz a curadora, que cita por exemplo a trajetória de Lina Bo Bardi, a arquiteta responsável por um dos prédios mais icônicos de São Paulo, o do MASP na avenida Paulista.
“Ainda existe uma lacuna na história e no jeito com que a gente narra a história a respeito do protagonismo das mulheres nas cidades. E a Urbana é sobre isso. É sobre como a mulher tem uma visão particular da cidade e merece um espaço de destaque dentro da história da arte”, conclui Patrícia Freitas. Ela afirma que, a partir de “Urbana”, a Q Galeria confirma a sua proposta de não oferecer somente exposições de arte, mas “trazer algo que tenha conteúdo e que agregue outros conteúdos e formas de pensar e refletir na área de cultura em Campinas”.
Quatro das cinco artistas reunidas na exposição participaram da abertura. Nascida em Jundiaí, Gisele Ulisse conta como a motivação para pintar o urbano, como uma nova vertente em sua trajetória artística, nasceu de uma espécie de epifania, com uma experiência que teve justamente na avenida Paulista, o endereço do emblemático edifício do MASP.
Tendo trabalhado durante muito tempo com os índios brasileiros como inspiração, Gisele lembra que estava no consulado italiano, à espera do pai, quando se viu imersa na observação “da correria das pessoas, pessoas se cruzando, gordas, magras, bem vestidas, mal vestidas, correndo, passeando, e aquilo mexeu muito comigo, a história da vida dessas pessoas se cruzando ali. Foi isso que começou a passar a ideia para minha arte, foi o povo”.
Outra linha apresentada na “Urbana” é a da paulistana Luciana Miyuki, formada em artes plásticas pela Unicamp em 2010. São de sua autoria três cartões postais, destacando monumentos que foram retirados da cidade. “Eu fotografo esses lugares sem o monumento e realizo um recorte com a silhueta desse monumento, em uma tentativa de recuperar essa imagem no cartão postal, perguntando então o que a cidade elege como sua referência, por que ela retira um monumento e começa a perder sua identidade”.
Luciana Miuki nota que a sua pesquisa artística é precisamente sobre o espaço. “Ela começa com o desenho e exploro o espaço do papel, as linhas, os traços que vão orientando o olhar pelo desenho, e depois vou para os objetos, a instalação. O cartão postal é uma vontade de retornar ao bidimensional, mas ainda estou falando do espaço e aí estou falando de um espaço maior que é o espaço urbano”.
Ela esclarece que a opção pelo cartão-postal, na era do e-mail e da comunicação digital, não se trata de uma nostalgia, um romantismo. “Não, de forma alguma. Minha pesquisa com postais, que apresento na Q Galeria, começa com o trabalho de uma amiga que atua com monumentos na cidade de São Paulo. Ela me conta sobre a retirada de vários monumentos que apareciam em cartões postais da época. Então a minha referência são cartões postais antigos, e a partir deles passo para uma coisa mais contemporânea, revela a artista paulistana.
Outro eixo com fotografia em “Urbana” é o da campineira Isabela Senatore, fotografa há 20 anos, formada em fotografia em Boston, Estados Unidos, e autora de um livro a cores sobre patrimônio imaterial. Ela descreve como trabalha com varias exposições fotograficas, uma sobre a outra, “porque este e o jeito que vejo a cidade”. “Não vejo uma coisa so quando estou em uma cidade. Eu olho as pessoas andando, carros passando, prédio, então quis passar o que eu vejo, sinto, e e tudo misturado, com um jogo de luzes e sombras que completam a imagem. Esse mundo urbano que eu vejo e tudo misturado e acaba ficando uma confusão organizada”, sintetiza, a respeito das fotos que levou para a Q Galeria.
Isabela enfatiza que a fotografa mostra claramente o real, “e às vezes exagera, para as pessoas entenderem que existem coisas certas e coisas muito erradas também. A fotografia enfatiza isso, o olhar do fotógrafo é fundamental para documentar o mundo urbano atual”.
Também nascida em Campinas, Kika Marciano tem desenvolvido uma obra que mescla arte e arquitetura, na qual ela se formou profissionalmente. “Estas duas coisas estão unidas. Estou apenas tentando fazer uma leitura sobre como a arquitetura e a arte estão unidas”, salienta. “Quando entrego um projeto de arquitetura é um projeto técnico, e sempre fica uma mágoa porque na minha mesa, na minha prancheta, fica a criação artística. O cliente leva a parte técnica. Agora, sem o compromisso com o cliente, posso passar para as pessoas a parte artística que desenvolvo”, conta Kika.
Ela explica que, com relação à técnica que utiliza, primeiro imprime os projetos, a partir do Autocad, sem outros recursos de computador. Surge então uma base horizontal e vertical e depois a artista aplica nessa base “o colorido que no momento é o ideal para dar, com várias camadas de nanquim, lápis de cor, grafite”.
As cinco artistas ficaram comovidas com a possibilidade de, juntas, poderem transmitir visões diferenciadas sobre a mulher no mosaico urbano. “A mulher vive mais ainda a correria do contexto urbano, podemos ver muito mais mulheres durante o dia, correndo, buscando filho, indo para o trabalho”, destaca Gisele Ulisse.
“Acho inovadora (a proposta da exposição), falta ainda a gente discutir o olhar da mulher e falta uma representação da mulher na cidade. Até com relação às esculturas que tenho destacado e foram retiradas da cidade de São Paulo, poucas retratam mulheres. Então onde está a mulher no espaço urbano e o olhar dessa mulher sobre esse espaço? Essa exposição coloca um ponto de interrogação para nós artistas e para o público também”, comenta Luciana Miyuki.
Para Isabela Senatore, a exposição é uma revelação. “Gostei da mistura de vários estilos de arte, cada uma com seu olhar, a cores ou em preto e branco, com muita transição e confusão geral, como é a própria cidade, ninguém simplificou”, analisa.
Kika Marciano acentua, por sua vez, que como arquiteta enxerga a cidade “como o nosso reflexo”. “Se a cidade é linda, bem cuidada, é porque as pessoas cuidam”, pondera, acrescentando: “A cidade poderia ser melhor, mais civilizada, e agora devemos passar isso para as crianças, como é ser pedestre, motorista, como cuidar dos parques e jardins”. Nesse sentido Kika afirma ter adorado a ideia central da exposição, que considerou “uma proposta muito séria”.
A quinta artista c0m obras na exposição “Urbana” é a fotógrafa nova-iorquina Joan Hacker, que enviou suas fotos diretamente dos Estados Unidos para a Q Galeria. As obras, inéditas no Brasil, fazem parte da série At Night (À noite) e mostram uma versão nada comum da cidade que nunca dorme. (Por José Pedro Martins)