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Fórum Mundial da Água resgata polêmica sobre privatização do saneamento no Brasil
Todas as atenções estão voltadas para as ações do governo federal em Brasília (Foto Adriano Rosa)

Fórum Mundial da Água resgata polêmica sobre privatização do saneamento no Brasil

 Por José Pedro Martins

O Brasil tem o maior volume de água doce do planeta, com 12% das reservas. Apesar disso, somente em 2018 o Brasil terá a oportunidade de sediar, em Brasília (que no momento passa por uma grave crise hídrica), uma edição do Fórum Mundial da Água, maior evento do setor. Enquanto a realização do evento é comemorada em muitos círculos, em outros tem despertado inquietação, pelo que pode representar em termos do fortalecimento das propostas de privatização dos serviços de saneamento no país. Já está sendo inclusive esboçado um fórum paralelo, para marcar posição contra a privatização, igualmente sinalizada por medidas recentes do governo federal.

A capital federal será a sede, entre 18 e 23 de março de 2018, da oitava edição do Fórum Mundial da Água. É prevista a presença de chefes de Estado e governo e milhares de representantes de serviços públicos e empresas privadas do setor de recursos hídricos, além de organizações não-governamentais e das chamadas associações de usuários. A sétima edição aconteceu em Daegu e Gyeongju, na República da Coreia, em março de 2015, com a participação de mais de 40 mil pessoas de 168 países.

O tema do 8º Fórum Mundial da Água, em Brasília, será “Compartilhando Água”. Muito propício para um país que, apesar da abundância de recursos hídricos, engloba regiões com situações críticas, como as regiões metropolitanas de São Paulo e Campinas. A Grande São Paulo, especialmente, com a maior população e PIB do Brasil, consome muito mais do que a sua disponibilidade e apenas garante o seu abastecimento com as águas retiradas da região de Campinas, especificamente na bacia do rio Piracicaba, através do Sistema Cantareira.

A oitava edição do Fórum Mundial da Água também terá uma programação inspirada nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, conjunto de metas globais para 2030. Outra referência para o Fórum será o Acordo de Paris, visando limitar a emissão de gases que agravam o aquecimento global.

Conselho Mundial da Água – O Fórum Mundial da Água é realizado desde 1997, sendo uma iniciativa do Conselho Mundial da Água, formado dois anos antes. E é nesse aspecto que o Fórum em Brasília desperta preocupação quanto a seus possíveis impactos para reforçar os defensores da privatização de serviços de saneamento no Brasil.

O Conselho Mundial da Água foi criado e estruturado com o apoio de grandes empresas privadas do setor de saneamento, como as francesas Vivendi e Suez que, juntas, já dominam grande parte do mercado mundial da água. Sediado em Marselha, França, 0 Conselho também e integrado por empresas estatais, ministérios, organizações não-governamentais e associações profissionais de todo mundo.

Uma polêmica que tem acompanhado a trajetória do Conselho, desde a sua criação, é aquela relacionada à sua posição refratária a considerar a agua potável e o saneamento como direito humano básico, o que foi definido oficialmente pela Organização das Nações Unidas, depois de muita controvérsia, em julho de 2010.

Durante a sétima edição do Fórum, em março de 2015, na República da Coréia, em vários momentos foi destacada a importância da participação da iniciativa privada na área do saneamento, como é reafirmado no relatório final do evento. No tema 1.3, “Adaptação à mudança: manejo de riscos e incertezas para a resiliência e preparação para desastres”, a presença do setor privado é assim assinalada, como uma das estratégias para tratar do desafio de adaptação às mudanças climáticas: “Politicas nacionais, regionais e globais que permitam uma ação eficaz da sociedade civil, setor privado e todos os níveis de decisão”.

No tema 4.1, “Economia e financiamento para investimentos inovadores”, o investimento privado aparece novamente em destaque como uma das ações propostas: “O uso eficiente dos recursos financeiros existentes para a água seria significativo para nos ajudar a alcançar nossos objetivos relacionados com a água e aliviar as barreiras ao acesso a recursos que já existem.  Mecanismos inovadores de financiamento e de parceria público-privada são também essenciais”.

A defesa da participação da iniciativa privada no setor de saneamento aparece em muitos outros locais do relatório final do 7º Fórum Mundial da Água, refletindo as discussões no evento. O temor de setores anti-privatistas é o de que o mesmo ocorra no Brasil, fortalecendo as teses privatizantes que já existem no pais. (Relatório completo aqui, em inglês.)

Aparecido Hojaij, presidente da Assemae: "Brasil não pode ter esse retrocesso, com a privatização de serviços de saneamento" (Foto Assemae/Divulgação)

Aparecido Hojaij, presidente da Assemae: “Brasil não pode ter esse retrocesso, com a privatização de serviços de saneamento” (Foto Assemae/Divulgação)

Assemae – Entre outras organizações, a retomada do programa privatista preocupa a Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento (Assemae), que reúne serviços de vários estados. E para a Assemae, ao não ter sido convidada para integrar as discussões preliminares do Fórum Mundial da Água, os organizadores do evento sinalizam uma postura muito nitida, a da defesa da presença do capital privado no setor saneamento.

“Participamos de todos os fóruns sobre recursos hídricos e saneamento, temos assento em todos os principais fóruns e colegiados nesse sentido. Não fomos entretanto convidados a participar da organização do Fórum Mundial da Água. A nossa posição sempre foi muito clara, de defesa dos serviços públicos de saneamento. Quando o Fórum toma essa decisão, ele sinaliza uma política a favor da parceria público privada no saneamento e recursos hídricos, que a nosso ver não é solução para os grandes desafios que temos no setor”, afirma o presidente da Assemae, Aparecido Hojaij, que é analista de Saneamento Ambiental do Serviço Autônomo de Água e Esgotos de Jaboticabal (SAAEJ) e vice-presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Mogi-Guaçu.

O presidente da Assemae nota que a entidade questiona a privatização do saneamento ou as chamadas parcerias público-privadas porque esses formatos de gestão “não atingem as camadas que mais precisam dos serviços e também comprometem o controle social desses serviços”. O saneamento, sob gestão privada, complementa, “passa a ser visto como um serviço que precisa dar lucro e o processo de inclusão social no saneamento acaba não acontecendo”.

Aparecido Hojajij observa que já existem forças pela privatização em curso no Brasil, que em dois anos recebe o Fórum Mundial da Água. O presidente da Assemae lembra que no último dia 13 de setembro o presidente Michel Temer anunciou um pacote de privatizações e concessões de várias empresas públicas. Entre as medidas anunciadas, a concessão das empresas estaduais de água e esgoto de Rondônia, Pará e Rio de Janeiro.

“Não podemos aceitar mais este retrocesso. Precisamos voltar a resistir ao avanço da privatização no saneamento”, reitera o presidente da Assemae, que não descarta a realização de um fórum paralelo ao evento de 2018, em Brasília, como forma de reafirmar a posição contrária à privatização dos serviços de água e esgoto no Brasil. Hojaij adiantou que falará com a Frente Nacional de Saneamento e o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (Conic), entre outras instâncias, sobre essa possibilidade.

O presidente da Assemae complementa lembrando que o relator especial das Nações Unidas para o setor de saneamento, o brasileiro Léo Heller, divulgou recentemente um estudo mostrando que existe uma clara tendência, em esfera internacional, de reestatização dos serviços de saneamento e recursos hídricos. Nos últimos 15 anos, de acordo com o relatório, houve ao menos 180 casos de remunicipalização do fornecimento de água e esgoto, em 35 países, incluindo grandes cidades como Berlim (Alemanha), Buenos Aires (Argentina), La Paz (Bolívia), Maputo (Moçambique) e até Paris, a capital da França, onde está a sede do Conselho Mundial da Água.

“A empresa privada não investe o suficiente e adota política de exclusão de populações mais pobres, impondo tarifas mais altas. Além disso, não atingem as metas dos contratos”, disse Heller no seu relatório, em que pondera ainda que o próprio Banco Mundial, histórico defensor das privatizações no saneamento, já reconheceu que as privatizações não são uma “panaceia para todos os problemas”. O relator também se mostrou preocupado com as tendências privatizantes no Brasil, como o anúncio pela nova direção do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) de que apoiaria o governo do Rio de Janeiro na privatização da Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae), o que depois foi confirmado pelo anúncio do presidente Temer.

“Não podemos ir na contramão da história e caminhar para a privatização, enquanto no mundo todo está ocorrendo justamente o contrário”, conclui Aparecido Hojaij, reiterando que a Assemae ampliará a discussão sobre suas claras posições a respeito do impacto negativo, em sua opinião, da presença da iniciativa privada no setor de saneamento. Um setor com muitos desafios no país, que apesar da abundância de recursos hídricos tem menos da metade dos esgotos urbanos com tratamento.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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