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Nos cem anos do samba, Campinas escreve capítulos de alegria e resistência
Pagode da Vó Tiana na Afro Mix 2014( Foto Adriano Rosa)

Nos cem anos do samba, Campinas escreve capítulos de alegria e resistência

Neste domingo, dia 27 de novembro, serão comemorados os cem anos de gravação, por Ernesto Joaquim Maria dos Santos, o Donga, da música “Pelo telefone”, que segundo a tradição marca o início da rica trajetória do samba no Brasil. O ritmo que celebra a vida, a diversidade e os dramas do brasileiro difundiu-se e adquiriu diferentes formatos, de acordo com a realidade local. Em Campinas o samba também tem escrito capítulos de alegria e resistência.

De fato, pela atuação de nomes como Aureluce Santos, Ido Luiz, Valéria Santos e Ilcéi Mirian e por eventos como “Escuta o cheiro”, o samba vive um momento vigoroso em Campinas, mas como tudo o que diz respeito à cultura afro-brasileira o ritmo apenas se impôs na cidade após uma longa trajetória de resistência. Em um dos seus textos sobre o assunto (“O samba em Campinas: sua evolução e diversificação ao longo do século XX”), a historiadora Olga Rodrigues de M.Von Simson não mede palavras ao afirmar, junto com o co-autor Carlos Roberto Pereira de Souza: “A maioria dos senhores de escravos campineiros proibia a dança do samba, considerada uma manifestação de caráter libidinoso, tanto pelos padres da Igreja Católica, como pelos proprietários de cativos, principalmente devido a um passo importante da dança – a umbigada – que integrava essa manifestação vinda da África Ocidental, dança que, em sua origem, era realizada com caráter religioso e em honra à deusa da fertilidade”.

Após a abolição, as restrições diminuíram, e a umbigada, com um outro formato, era comum em datas festivas para o povo negro em Campinas, como os dias de Santa Cruz ou  São Benedito. Aos poucos as rodas de samba se impuseram, além dos limites impostos pela sociedade escravocrata, e no início com a forte presença do bumbo. Olga Von Simson e Carlos de Souza notam que grupos negros de Campinas levavam essa modalidade de canto-dança para a festa anual de Bom Jesus do Pirapora e, com isso, o “samba de bumbo acabou se tornando uma marca identitária do samba de Campinas”. Entre estes grupos estavam os sambas da Tia Aurora, de Aparecidinha, da Treze de Maio e do Ernesto Estevam.

Samba de bumbo, jongo com Dito Ribeiro, umbigada “disfarçada”, as raízes do samba campineiro suportaram as sutilezas do preconceito e foram dando os seus frutos no século 20. Personagens como Aluísio Jeremias e outros eram os “guardiões” do legado musical afro na cidade. Rodas de samba floresceram, aqui e ali, como o Carvalhinho no Taquaral e nos cortiços Porteira Preta, Barroquinha e Sampainho, no Cambuí. Até no arraial de Sousas, hoje distrito, o samba sempre rolou solto, como contam Olga Von Simson e Carlos de Souza.

"Nosso objetivo é evidenciar a cultura negra e fazer um evento de oportunidades e trocas. Queremos que todas as etnias se encontrem aqui", diz Ilcéi Mirian sobre a Feira Afro Mix   (Foto: Adriano Rosa)

“Nosso objetivo é evidenciar a cultura negra e fazer um evento de oportunidades e trocas. Queremos que todas as etnias se encontrem aqui”, diz Ilcéi Mirian sobre a Feira Afro Mix (Foto: Adriano Rosa)

O samba do século 21 – A redemocratização depois de 1985 favoreceu o processo de resgate e valorização das raízes mais profundas da cultura brasileira, e também em Campinas as expressões da cultura afro, o samba entre elas, encontraram maior espaço de liberdade para atuar. Grupos importantes foram nascendo e um marco foi a criação, em 1995, do Quarteto de Cordas Vocais, por Adriano Dias, Rodrigo Duarte, Allessandro Dias e Deo Piti.

Multi-instrumentistas, os componentes se fortaleceram na execução e no repertório do samba tradicional. Já acompanharam grandes nomes como Demônios da Garoa, Velha Guarda da Portela e Mangueira, Bezerra da Silva, Chico Cezar, Belchior, Almir Sater, Oswaldo Montenegro e Renato Teixeira. O Quarteto tocou no histórico lançamento da candidatura de Dilma Rousseff à presidência, em 2010, e na embaixada do Brasil em Genebra, Suíça. Daniel Romanetto costuma acompanhar o quarteto com seu cavaquinho mágico.

Em 2000 o Quarteto de Cordas Vocais começou um, também histórico, projeto de revitalização do samba em Campinas, o Revivendo o Samba, que levou milhares ao Centro Cultural Evolução e ao Tonico´s. O Revivendo o Samba foi o portal para a emergência de grandes nomes do samba hoje na cidade, como a própria Aureluce Santos.

Aureluce sempre gostou de cantar, mas começou a pensar em abraçar profissionalmente o talento quando se aposentou como funcionária da Unicamp. “Comecei com algumas canjas e vi que as pessoas gostavam, que elas se emocionavam. Isso me marcou muito e me animou a continuar”, conta Aureluce, considerada uma verdadeira diva do samba campineiro. Ela diz gostar “da velha guarda, Cartola, Noel, que são muito bons e mexem com o povo”.

Em 2002 Aureluce estava integrada ao Núcleo de Sambistas e Compositores do Cupinzeiro e, em 2004, ao Grupo Chega de Demanda. Depois ela passou a ser acompanhada pelo próprio grupo, formado por Edson (surdo), Jean (cavaco), Jeferson (pandeiro) e Vinícius (violão sete cordas), além do acompanhamento por sopro, bateria, guitarra e baixo.

Ido Luiz e Valéria Santos também começaram a exitosa parceria no começo do século 21. Alquimia pura no palco, como no show Coisas Nossas, configurado como um projeto acústico e intimista. Em suas apresentações, passaram a reverenciar nomes que consideram marcantes, como Tim Maia, Clara Nunes, Djavan, Marisa Monte, Maria Bethânia, Cartola, Martinho da Vila e Elis Regina.

Sinuca de Bico e Velha Arte do Samba são outras referências desse momento de resgate e consolidação do samba em Campinas,  a partir da década de 1990 e começo do século 21. Eles continuam tocando e alegrando vários espaços. O Sinuca de Bico, por exemplo, é presença constante no Possante Bar, que sempre oferece um menu sofisticado da MPB, o samba e seus temperos especiais incluídos.

Quarteto de Cordas Vocais no Tonico´s, um dos redutos do samba em Campinas (Foto Adriano Rosa)

Quarteto de Cordas Vocais no Tonico´s, um dos redutos do samba em Campinas (Foto Adriano Rosa)

Rodas de samba e nova geração – Outro marco importante para o “novo samba” de Campinas foi a criação, em 2004, do Pagode da Vó Tiana, uma roda de samba inicialmente de fundo de quintal, daquelas de reunir os amigos na Vila Teixeira. O nome foi uma homenagem à avó de Alex Mortão. “Infelizmente a Vó Tiana não viu o projeto, pois morreu antes”, lamenta o neto.

Mas a ideia prosperou, virou o Pagode da Vó Tiana que, após algumas incursões a céu aberto, passou a acontecer em lugar fechado, na sede da Associação de Moradores. Uma vez por mês, o Pagode reúne muita gente que ama o samba e que já se deliciou com apresentações de feras como Almir Guineto, Monarco, Mauro Diniz, Jorginho do Império e Osvaldinho da Cuíca. “Não somos fundamentalistas, tocamos os clássicos mas também estamos abertos ao povo, é importante a renovação”, define Alex, o idealizador do Pagode, que tocou recentemente em mais uma edição do Afro Mix.

As rodas de samba se popularizaram e uma das mais efervescentes é a Escuta o Cheiro, fundada em outubro de 2008, em uma casa caiada em Sousas, por Silo e Bruno Sotil, Marcio Belardini, Paula Ubinha, Carla Fiore e Tatiana Braga. Dois em um, nasceu na mesma data o, claro, Casa Caiada, grupo formado para animar a roda, sempre incrementada com boa comida.

Escuta o Cheiro passou a mobilizar muitos fãs nas reuniões mensais. O Casa Caiada, por sua vez, rapidamente se firmou como outra referência da nova geração do samba campineiro. Com o apoio do Fundo de Incentivo à Cultura de Campinas (FICC), o grupo gravou o primeiro CD de sambas inéditos pelo selo Fábrica Discos. Em um trabalho permanente de pesquisa e aprimoramento, o Casa Caiada superou fronteiras e passou a se apresentar em um muitos locais. Já fez, inclusive, duas turnês em Angola, uma das matrizes do ritmo que se tornou paixão nacional verde-amarela, o samba.

As rodas de samba são um espaço em evolução na cidade, e entre outras se destaca a Sibipiruna, de Barão Geraldo. Convívio, espaço de diálogo e troca de afetos, tolerância, algumas marcas do projeto Sibipiruna, promovido todo primeiro domingo de cada mês, em um local pertinho da Moradia Estudantil da Unicamp em Barão Geraldo.

Com certeza pela presença da Unicamp, que tem uma respeitada e agitada Faculdade de Música, e também pela PUC-Campinas, Barão Geraldo se consolidou no século 21 como um dos territórios mais elétricos do samba local. São vários endereços do samba no distrito, como a Casa de São Jorge e o Buteco do Jair. Mas outros bairros também abrem as portas para o samba, como a Guanabara com o Villa Bambu, o Proença com a Vó Dalva, o Taquaral com o já citado Possante Bar, de novo Sousas com a Casa Rio e Joaquim Egídio com o Boteco do André.  Em todos eles, alegria, carinho e pesquisa.

Grupo Bambas de Rua, Andreia Preta, Vanessa Costa e Bruna Volpi são outras novas estrelas do firmamento do samba em Campinas, assim como Maíra Guedes e os Baluartes, que estão gravando o primeiro CD. Muita pesquisa, música autoral.

Pesquisa é uma palavra importante para Ilcéi Mirian. Historiadora de formação, durante um bom tempo deu aulas na rede pública. Mas a música se impôs e, depois de aulas de violão com o professor Dino, descobriu, ou foi descoberta, pelo cavaquinho. Nenê do Cavaco é uma de suas referências.

Em 2002 Ilcéi lançou, pela gravadora Camerati (de Campinas), o CD “Samba de batom”, com faixa-título de autoria da dupla de conterrâneos Rinaldo e Ido Luiz,  além de Belchior e José Luiz Pena em “Comentários a respeito de John” e outros compositores como Mauro Diniz, Markinhos Sargento, Prince, Boca, Vagner Boneto, Valdir de Oliveira, Diva, Moreira, Armando Moreli e Nyva. O CD teve produção executiva de Belchior e foi lançado no Tonico’s Boteco.

Estação Cultura é um dos espaços principais de celebração do samba em Campinas (Foto José Pedro Martins)

Estação Cultura é um dos espaços principais de celebração do samba em Campinas (Foto José Pedro Martins)

Depois vieram os shows “Tributo a Adoniran Barbosa”, “Da Senzala à Casa-Grande: A Miscigenação na MPB”, “Cantando a História do Brasil” e “Não Me Leve a Mal, Hoje É Carnaval”, sempre  com acompanhamento pelo grupo Bambas do Samba. Em 2008 “Histórias & canções de Clara Nunes –  Ilcéi Mirian e Bambas de Samba”, no Teatro do Centro de Convivência. Em  2009 recebeu a Velha Guarda da Rosas de Ouro no Tonico’s.  Em 2010 de novo a inspiração em Clara Nunes, com o show “Clara: Mineira, Guerreira”, com direção de Marcos Ferreira, no Sesc Ipiranga, em São Paulo, acompanhada pelo grupo Bambas de Samba. No mesmo ano o segundo CD,  com produção de T. Kaçula, o “Minha identidade”, também lançado no Tonico´s.

Sempre a preocupação com a contextualização, com a expressão da importante daquela música, daquele compositor, para aquele momento da vida campineira e brasileira.  Incansável, Ilcéi ainda é co-fundadora da Feira Cultural Afro Mix, uma iniciativa que já completou doze anos. Um espaço de diálogo e fortalecimento da identidade cultural afro-brasileira.

É o mesmo que vem fazendo a Comunidade de Jongo Dito Ribeiro na Fazenda Roseira, outro lugar encantado do samba em Campinas. É o mesmo que fazem todos aqueles, de qualquer geração, que rendem tributo ao samba, esse elo entre pessoas, idades, raças, credos e ideias: o ritmo que faz pulsar o coração do Brasil.  (Por José Pedro Martins)

 

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