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PRA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DE TUDO [PRIMEIRO ATO]
"E se eu postar meus desenhos, como o Valter Hugo Mãe?" (Flores em p&b, autoria desconhecida)

PRA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DE TUDO [PRIMEIRO ATO]

Por Rafa Carvalho

Neste texto em 2 atos, veremos mais da vida vária. Pautas como “dia dos namorados”, Novos Baianos, ex’s, Maria Ribeiro, Paulo Betti, artistas globais, zodíaco e pós-modernidade. Novelas, Faustão. Dicas para melhorar o seu negócio. Xico Sá. Medicina literária. As artes plásticas de Valter Hugo Mãe. Além das temáticas como depressão, autoestima e paradoxo. Prêmios, festivais. Maternidade, paternidade. Filhos. Preços do pão de queijo nas rodoviárias. Escândalos. E muito mais. Tá perdível. Não ache.

Às vezes eu me sinto mal.

Alheio demais. Mais que um alienígena. Uma espécie de indigente mesmo. Invisível. Mas sempre tem alguém que diz: calma. Dizem que esses são os sintomas que qualquer pessoa visionária tem. Como se você fosse uma. Talvez só seja louco, como minha vó. Ou talvez: vinha avó fosse visionária. Vocês veem, tudo é dúbio.

Eu perco o último ônibus e me pego na Avenida Cruzeiro, buscando um conhaque pela madrugada. Passo entre os mendigos se deitando, alguns com cobertores. “Indigentes de verdade”. Essa noite alta esfria à capital. Bate uma saudade máxima do filho, família. E este é um primeiro ponto.

O tempo todo pelo terminal, um ícone pop, sertanejo, universitário, sei lá o quê, me sorri nas propagandas incansáveis da telefonia móvel. Momentos antes, eu tomava uma cerveja na fé de Santa Cecília, falando sobre a única mágoa de não estar no main stream: não chegar ao povo, junto com a novela, ou com o Faustão. Quando eu estudava antropologia fui ser figurante, no Projac, pela experiência. Via os artistas passando nos carrinhos de golfe, plenos, bajulados. E isso não me comovia. Mas saber que a gravação do Domingão chegaria muito mais às pessoas com quem cresci, do que qualquer texto ou canção que eu fizesse, sim.

E este é um segundo ponto. Não é a dor de não ter tanta grana, trampo com reconhecimento, nem é nada sobre fama. É só querer ser útil. Pra algo. Alguém. Entendem? Mas aí vem um e diz: calma. Que Van Gogh não vendeu trabalho algum enquanto vivo. Que o Picasso trocou obras hoje milionárias por almoço. Que a igreja primeiro assassinou seus santos e santas, pra mais tarde consagrar suas vidas. E pessoas morreram de pés juntos, jurando coisas muito simples – porém “afrontosas” – que apenas bem depois se confirmaram.

Ainda assim: tudo oscila no mundo. O não vira sim, que vira não mais adiante. O ovo era bom, depois vilão. E hoje, ele é maravilhoso novamente. A Terra, por exemplo, é redonda? De repente, alguém levanta da tumba essa suspeita. O disco de vinil que estava condenado volta com tudo. Logo ali vem o K7. E pronto: seja como for, o planeta gira.

Geraldo Vandré bem fez o anúncio: a vida não se resume a festivais. É isto. Se naquele ano do prêmio aberto de poesia, o juri não gostasse de rimas, seu poema brilhante – mas rimado – pode não ter vencido por esta sinergia. Detalhes. Vejam: tudo humano, é uma questão de pessoa. Nossa ilusão é pensar que qualquer coisa valha mais – ou seja mais legítima – que isto: recortes.

Nada nosso é íntegro.

Mas dói. Vir de uma seletiva nacional, por exemplo, cantando em francês pra plateia lotada no segundo mais antigo teatro do Brasil, ser ovacionado por ela e não ir à Paris, dói. Magoa. Mesmo com a vaia do público lhe suportando, dizendo que você ganhou, este é um jeito doído de cair. Ser terceiro, quando dois ganham. Ou ficar com seu livro em segundo, de mil e mais, quando só um é que vale. Segundo na maratona por Euclides da Cunha numa adolescência, na seleção pra residência que lhe levaria à Amsterdã. Segundo, segundo. Segundo, segundo quem? De novo, não é sobre deixar todos para trás. É sobre sentir-se útil.

Às vezes a gente quer um carro, uma roupa de grife, alimento prum ego. Às vezes, a gente só sonha partilha. Minhas camisetas têm doze, treze anos. Meu gol bola já nem paga IPVA. Todas minhas calças são maiores de idade. E neste momento – eu reviso este texto e acrescento um adendo: um prendedor de roupas, vermelho, segura o elástico esgarçado, de minha samba-canção.

Você vê sua comunidade um pouco melhor, com a poesia. Alguém lhe contou que devorou seu livro em dois dias. O pai de uma amiga surpreendentemente lhe lê e embarca afinal à literatura, perto lá do fim da vida. As irmãs do bairro, mulheres jovens negras de nosso tempo, vêm lhe abraçar pedindo licença pra cantar sua música, num evento. Contam de como você lhes é referência. E uma pessoa agradece, por sua arte a ter ajudado, num não suicídio. Todos estes também são pontos. Cada qual destes, muito relevante.

Mas entendam: dói. A gente toca pra dez pessoas. Sete. Três. Toca pela cerveja, uma janta. Toca pelo convite de alguém, pra poder tomar um banho numa casa. Usar o tanque e lavar roupa. Passar uma noite fora do chão. A gente toca por uma calçada, na frieza nórdica, pra ver todos os pais lhe ignorarem. E ganhar a cumplicidade unânime das crianças, que passam arrastadas por mãos e pressas adultas. Que com os olhinhos nas cabeças contorcidas radiantes, dão-nos todo o mantimento necessário, pra afugentar a fome, o medo, o nada. E a aparência inteira, das indignidades.

Sim. A gente toca pra isso. E pega metrô. E perde o ônibus e divide o conhaque com o mendigo. E desenha às horas frias umas coisas cubistas, num bloquinho. E se eu postar meus desenhos, como o Valter Hugo Mãe?

A melhor coisa que eu já fiz na vida, foi um filho. Aos trinta e três anos, penso que envelheci. Estou longe demais, para acontecer. O mercado não me quer. Algum de nós, ao mínimo, se anarcisou demais. É certo. Mas nisso de sentir-se útil, coadjuvar na geração de um filho, me fez sentir assim: útil. Mãe, pai, avós: cada uma dessas presenças manifestas no arrepio dos meus poros. Sou todas elas juntas. Mais que dúbio, isso é vário. E em mim, eu sei, fomos além. Casas de alvenaria, carros para o transporte, universidade. Voos. Saí daqui, levando todas elas ao Japão. Vejam gente: este mundo é nosso.

Mentiam pra nós.

E ao passo em que saí, eu também sempre voltei. Cada vez mais. Assumi aqui. Não morri como meus amigos. Nem assaltei como meus primos. Passeio o neném na mesma quebrada em que passeei.

Agora talvez você, filho, possa chegar aonde esse pai velho não conseguiu. Acho que ainda mentem pra mim, sabe? Ou eu é que sou teimoso demais. Não deixe que mintam pra você, filho. Nem seja teimoso demais: persevere. Só não leia isto antes da hora. Nem me sinta nenhuma pressão. Que ninguém me cobrou nada, filho. Aqui, na rodoviária, cercado de gente muito mais velha que eu – e mesmo que os seus avós. Essas pessoas pobres, solitárias. Com um frio que eu só imagino, na frieira dos chinelos. Com essa dor cobrindo tudo, do branco na cabeça até o branco talco das elefantíases. Essas pessoas não me cobram nada, filho, tais quais. Nem elas, nem o moleque preto que agora há pouco foi “sutilmente” retirado pelos seguranças do recinto.

E eu, não cobro você.

Eu me sinto mal, às vezes. Mas não posso. Não ao ponto de deixar-me atrás. Sem perseverar. E insistir. Não por mim, só. Mas por você que me contorce o corpo todo, filho, como uma criança dinamarquesa às ruas de Århus. Você que é apenas uma pessoinha, e contudo: como é bom parar o negócio todo, por você. Perder o prazo, a hora da burocracia, o edital. Pra tocar, meu filho.

Só pra você.

Você: é o ponto. Filho. Você, e essa gente toda.

Podia ganhar um Nobel. Mas como for, tomara que se lembre de mim, como o cara que dividia o conhaque com o mendigo. Chegando ou não ao Faustão, filho. Lembre-se sempre das pessoas. Seja uma também. Sem dó. Com dor. Sinta-se mal, às vezes.

E nisto, de sentir-se útil, talvez você seja pai, numa boa hora. Eu só consegui assim, Fé: com você.

Que a poesia é inútil, filho. Que seu pai, é só isso. E não cabe.

Só queria ter cabido no ônibus. Aquele último ontem. Que se foi lotado, à meia-noite. E não é que eu reclame da cadeira, do banheiro, do aroma das coisas. Nem é que eu não possa mais passar um frio, comer porcaria, viver mais perrengues.

Era só pra não ter que amanhecer, sem lhe ver sorrir.

[Fim do Primeiro Ato]

Sobre Rafa Carvalho

Rafa Carvalho é poeta apesar de tudo. Em 15 anos de carreira, são 21 países, por quase todos continentes, trabalhando com Arte, Educação e fazendo de tudo, porque tudo é o que a Poesia pode ser. E, para quem acha que Poesia não é profissão, ele já trabalhou de garçom em inúmeros estabelecimentos, na demolição civil escandinava como imigrante parcialmente legal e, atualmente, está desempregado.