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Na Itália, antes e depois do coronavírus
Matera, na Basilicata, Sul da Itália (Foto Daniela Prandi)

Na Itália, antes e depois do coronavírus

Por Daniela Prandi, 

especial para a Agência Social de Notícias

Matera, na Basilicata, Sul da Itália, me recebeu em novembro de 2019 com uma efervescente agenda cultural. Eram os dois últimos meses da cidade como “Capital Europeia da Cultura” e a programação era tanta e tão variada. A terceira cidade habitada mais antiga do mundo, depois de Jerusalém e Alepo, tem um centro histórico preservado e um incrível conjunto de cavernas que receberam os primeiros habitantes, 8 mil anos atrás, um cenário já usado muitas vezes no cinema. O mais recente filme rodado aqui foi o novo 007, que iria estrear em abril. (James Bond, porém, foi vencido pelo coronavírus.)

No Ano Novo, no centro histórico abarrotado apesar do frio abaixo de zero, o clima era de alegria e confraternização. Música, fogos de artifício, abraços, estava fácil acreditar em um 2020 com muitas realizações. Mal sabíamos que tudo estava para mudar.

Na escola de italiano, os alunos, a maioria refugiados de diversas partes do mundo, se esforçavam para aprender as minúcias da língua de Dante. Verbos e advérbios, preposição, passado, passado próximo, expressões, as lições andavam bem e aos poucos assistir a um filme dublado em italiano, como é o costume aqui, já não era mais tão difícil. Logo após  o carnaval, estávamos prontos para aprender a conjugar o verbo no futuro, mas a professora avisou que a escola iria fechar. Sem futuro, por enquanto.

Um vírus na China, de repente, mudou o mundo. Uma das alunas, que é do Casaquistão e mora há dois anos em Matera, relatou que as pessoas estavam olhando diferente para ela. Mas eu não sou chinesa, lamentou. Um dia, ao cruzar com uma das muitas excursões de turistas que lotavam o centro histórico de Matera nos finais de semana, meu primeiro impulso foi mudar de caminho. Eram chineses, todos de máscaras, como é o costume deles, que as usam por causa da poluição. A ameaça, porém, veio da China, mas seriam os italianos os próximos a sofrer discriminação. Pessoas que visitaram a Itália neste começo de ano levaram o vírus para diversas partes do mundo, Brasil inclusive. Pelo menos é o que dizem. Italianos se tornaram, assim, indesejáveis.

Matera, "Capital Europeia da Cultura" em 2019 (Foto Daniela Prandi)

Matera, “Capital Europeia da Cultura” em 2019 (Foto Daniela Prandi)

Depois das escolas e universidades fecharem, foi a vez dos restaurantes, das lojas, dos cafés, dos hotéis e pousadas. Matera mudou completamente. Já não era possível tomar o sorvete de sábado à tarde, ver o pôr do sol no centro histórico e reunir os amigos para a pizza. A ordem era ficar em casa. Só se pode sair para ir ao supermercado mais perto de sua casa, à farmácia (que eu ainda não precisei) ou passear com o cachorro (que eu não tenho). Em uma espécie de “estado de sítio”, perdemos, de repente, o direito de ir e vir.

Enquanto isso, no Norte, a região da Lombardia, a mais rica e mais populosa, rapidamente, se transformava na Wuhan italiana. Como as pessoas não respeitaram a quarentena imposta pelo governo, que funcionou para conter a epidemia na China, o contágio aumentava a cada dia, as mortes começaram e o crescimento foi exponencial, conforme exaustivamente explicado na TV. E ficamos especialistas em analisar a curva de contágio. Na mais recente tentativa para fazer as pessoas ficarem em casa e, assim, impedir o vírus de circular, o governo apelou para o exército, anunciou multa de 3 mil euros e até cinco anos de prisão. Denunciar quem está na rua sem motivo é incentivado, e muitos estão, sim, fazendo delações. Vizinhos, que antes faziam questão do “ciao”, do “buongiorno”, da “buona giornata”, agora passam de máscaras, cabeça baixa, atentos para a distância de segurança.

A maioria dos mortos são idosos e o presidente Sergio Mattarella, advogado de 78 anos, tem lamentado a perda de toda uma geração. Vão-se a memória, vão-se o nonno e a nonna, vão-se artistas, escritores e intelectuais, enquanto as crianças, presas em casa, não entendem muito bem o que está acontecendo e a razão de não poderem visitar os avós. A Itália jamais será a mesma depois da pandemia.

Escrevo em meio a um confinamento praticamente total (em duas semanas saí de casa apenas três vezes para comprar alimento). A Primavera chegou, os pássaros voltaram, as árvores estão florindo, mas eu não posso ver. O bosque a uma caminhada de onde moro provavelmente está verdejante, mas permanece fechado. O centro histórico, tão perto de casa, é cada vez mais longe. O que eu vejo, todos os dias, é a entrevista coletiva da Defesa Civil, ao vivo, na TV, pontualmente às 18h, onde se contam os números de mortos e contagiados. Dizem que um dia vai cair. Dizem que será logo. Dizem. E a gente espera.

Sobre Daniela Prandi

Daniela Prandi, paulista, jornalista, fanática por cinema, vai do pop ao cult mas não passa nem perto de filmes de terror. Louca por livros, gibis, arte, poesia e tudo o mais que mexa com as palavras em movimento, vive cada sessão de cinema como se fosse a última.